Bendita cura

Nunca tive uma vida fácil, pelo contrário, era humilhado vinte e quatro horas por dia, por não conseguir emprego. Mesmo depois de formado, o mercado de trabalho ainda não havia me abrido portas para que pudesse mostrar minha eficiência. Tudo isso no auge dos meus 23 anos. Poderia narrar uma história piegas de quem viveu eternamente frustrado, mas antes disso, vamos por partes. Nesse exato momento, vos conto essa história do mais belo paraíso, rodeado por flores de todas as cores, formas e tamanhos. Apenas uma luz branca e intensa o tempo todo ilumina o lugar e uma voz firme conversa comigo. É voz de homem, não sei se é Deus.

               Desculpem minha indelicadeza, me chamo Erick Drumond. Há dez anos, quando esse desfecho começou, percebi que era bem diferente dos meninos da minha rua, especialmente os da minha idade. Adoravam jogar bola e empinar pipa, atividades essas que eu sentia repulsa. Sempre fui delicado, sensível, exalava trejeitos bem femininos, mais tarde corrigidos por meu pai através de muitas surras e espancamentos. Minha mãe era evangélica de uma denominação pentecostal. Caia no Reteté, afirmando estar recebendo o Espírito Santo, nos cultos, e falava línguas estranhas. Nunca acreditei naquilo. Para mim, não passava de uma farsa, ou uma peça teatral mal ensaiada. Meu pai era recém convertido, mas não ia sempre aos cultos, e meu irmão mais novo ficava com meus avós. Eu era obrigado a ir pacificamente, sem esboçar contrariedade.

                A medida que o tempo passava e eu crescia, evidencia-se o que eu seria. O desejo por garotos eclodiu, de fato, quando completei 15 anos: era uma tentação ver tantos “irmãos” lindos no culto e não poder beijá-los. Certo dia, na escola, mais precisamente quando voltava para casa, fui seguido por um colega de classe. O nome dele era Robson. Mais alto e bem mais robusto que eu, Robson me acompanhou até perto da rua onde eu morava, e, sem dizer uma palavra, me encurralou abruptamente contra um beco deserto, beijando-me na boca. Foi uma das sensações mais excitantes e eufóricas que já tive. Não sabia resumir a situação. Talvez o medo falou mais alto. Namorei Robson escondido por quase um ano, até que ele se envolveu com uma menina, engravidou-a e se casaram assim que a criança nasceu. Se mudaram para outra cidade e nunca mais o vi.

            

               O distanciamento inevitável de Robson causou-me muita tristeza, a ponto de eu ficar acamado por semanas. Minha mãe desconfiava que tinha algo errado, mas não comentava nada comigo. O único conselheiro e ouvinte dela era o papai. Passaram-se cinco anos, até que entrei na faculdade. Cursava Administração, mas não por vontade própria, e sim por imposição do pai. Ele achava que homens de bem deveriam ter profissões que dessem lucro, poder e status social. Mas eu queria mesmo era Cinema, ou talvez Teatro. Eu não era feio, até que tinha boa aparência. Só não gostava do meu nariz, que era um pouco irregular e estava começando a engordar.

               Meu comportamento, como dissera antes, era muito afetado, mas foi corrigido pelas suas surras que levei do papai e da mamãe. Não estava mais tão pintoso como antes. Todo mundo na rua me hostilizava quando passava, me chamando de veado, baitola e coisas afins. Já era motivo de vergonha e constrangimento para meus pais. Até Sr. Mário, o pastor da igreja que mamãe frequentava, já estava percebendo que eu era gay. Ele, talvez, tenha sido, em partes, o responsável por tomar a decisão mais dura e difícil que já tomei. Pastor Mário me obrigou a passar longos meses em jejum constante, orar duas horas por dia. Aquilo era demais para mim! Mexia com meu psicológico. Meus pais, em vez de me aceitarem como eu, me rejeitavam o tempo todo.

              No dia da minha formatura, nenhum familiar compareceu as festividades. Entrei no baile sozinho. Não tinha amigos. Ao chegar em casa, não aguentei e explodi: “- Sou gay, sim, não é isso que vocês querem ouvir? Então está aí a confirmação. “

             Gritei tão alto que metade da rua ouviu. Na verdade, aquilo não era mais novidade para ninguém. Minha mãe desabou em lagrimas e chorou como se o pai dela tivesse morrido; o pai simplesmente avançou na minha direção e me agrediu violentamente. Fiquei todo roxo, cheio de hematomas espalhados por todo o corpo. Mas a dor maior não era a externa, era a dor na alma. Nunca pedi para sentir atração por homem. Nas minhas orações, quando sentia que Deus me ouvia, sempre perguntava a ele por que eu havia vindo gay. Ele me deu resposta num sonho: sonhei que nascer homossexual fazia parte de um plano divino para testar a tolerância, compaixão e amor ao próximo, coisa que quase ninguém faz nos dias de hoje.

               As agressões e a péssima convivência com meus pais só pioravam a cada dia. Tudo isso misturado ao fato de eu já ter me formado e não conseguir emprego. Eu não aguentava mais. Era um fardo pesado demais para levar sozinho. Meu pai chegou a me expulsar de casa, embora minha mãe fosse contra.

              Meu irmão olhou para mim com os olhos lacrimejantes e nada disse, mas percebi, pela sua expressão, que ele sabia que eu estava agonizando e morrendo por dentro, aos poucos. Nunca disse nada em relação a minha orientação sexual, e até suspeitava que ele me apoiava.

              Arrumei minha mochila velha e surrada, coloquei meus pertences e sai. Papai continuou imóvel na sala, frio como sempre. Mamãe pareceu desmoronar, chorou um oceano de lágrimas, mas retrocedeu quanto a minha aceitação. Eu não ia mudar minha essência. Se não fosse para viver livre como um ser humano deve viver, é preferível ele mesmo encontrar sua liberdade. Meus pais passaram anos procurando uma cura espiritual para minha homossexualidade, e ela nunca veio!

           Quando caminhava bem distante da minha casa, no caos do centro da cidade, passava por um viaduto bem alto. Em baixo era a rodovia principal. Buzinas ensurdecedoras indicavam a movimentação intensa dos veículos. Olhei lá embaixo e vi pessoas caminhando apressadas nas calçadas, pouco se importando com os outros. Ao direcionar a visão para o horizonte, pude contemplar um pôr do sol belíssimo, o mais lindo que já vi. Os raios solares brilhavam como ouro e uma brisa leve e fresca me chamava. Abri os braços, como se atendesse a um convite para a liberdade e me joguei, de corpo e alma. Em menos de três segundos já não pertencia ao mundo da hipocrisia. Meus pais, ao saberem do meu ato de rebeldia, incitado por eles mesmo, ficaram tão desnorteados que ambos enlouqueceram.  Meu irmão chorou muito. Até hoje acende velas e dedica suas orações para mim.

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