Capítulo 19LunaAcordei com o corpo dolorido e o som abafado de vozes na sala ao lado. Ainda havia cheiro de pólvora no ar, e meu coração demorou a aceitar que eu estava viva, inteira, respirando. As imagens da noite anterior vinham em flashes cortantes: os gritos, os tiros, o sangue e Chiara, caída no chão, os olhos arregalados antes de eu arrastá-la para longe da linha de fogo. Eu tinha reagido. Tinha salvado alguém. E agora... não havia mais como fingir que eu era só uma espectadora dessa guerra.Vesti uma camiseta larga e prendi o cabelo num coque desleixado antes de sair do quarto. A casa parecia uma fortaleza silenciosa. As janelas reforçadas, os guardas em alerta, e no meio daquele caos contido, ele estava lá.Dante.De costas, falando com um dos homens sobre reforçar o perímetro. Usava uma camisa escura com as mangas dobradas, o cabelo ainda molhado do banho. Quando me viu, dispensou o outro com um simples gesto.— Dormiu? — perguntou, a voz mais baixa do que eu esperava.— T
Capítulo 20LunaO silêncio no salão parecia algo sagrado.Não era o tipo de silêncio confortável, nem tampouco aquele tenso que antecede uma briga. Era um silêncio de perda. De quem recebeu uma notícia que não queria ouvir, mas não podia negar.Chiara foi a primeira a se afastar da sala de reuniões. Eu a segui com o olhar, vendo as mãos trêmulas dela segurando o celular como se ainda esperasse que a mensagem desaparecesse, que fosse um engano. Mas não era.A mensagem tinha sido clara."Ela foi encontrada. Morta. No rio. Sinais de tortura."Júlia. A informante de Dante infiltrada entre os homens de Rivas havia mais de dois anos. Uma mulher forte, discreta, com uma coragem silenciosa que eu só agora compreendia. E agora… morta. Um corpo jogado como lixo, como aviso.— Ele a expôs de propósito — Dante disse, a voz baixa, grave, com os olhos fixos em um ponto invisível à frente. — Fez com que ela fosse descoberta. Sabia que estávamos perto demais de algo. Precisava cortar a linha.— Você
Capítulo 21LunaA madrugada arrastava seus minutos como se o tempo tivesse perdido a pressa. Eu não conseguia dormir. Nem queria. A imagem de Júlia, ainda que eu nunca a tivesse conhecido direito, queimava sob as pálpebras. Era como se cada pedaço daquela tragédia tivesse se entranhado em mim como um lembrete cruel de que qualquer um podia ser o próximo.Andei pelo corredor escuro da casa. Todos dormiam, ou fingiam dormir. Chiara me disse antes de se recolher que a dor às vezes descansava melhor no silêncio. Eu só não sabia mais descansar.Passei em frente à porta do escritório de Dante.Trancada.Era claro. A mente dele era um cofre. E o mundo ao redor, uma ameaça.Mas naquela noite, algo me puxava. Uma inquietação. Um sentimento estranho de que eu precisava ver além da máscara.Voltei até a cozinha. Peguei uma das cópias da chave mestra, que Chiara guardava para emergências. E aquela era uma.Emergência do coração.O clique da fechadura foi quase inaudível. Entrei devagar. Nenhuma
Capítulo 22DanteEla invadiu meu espaço como se sempre tivesse pertencido a ele.Eu estava revendo arquivos, tentando traçar o próximo movimento, quando ouvi a porta do meu quarto bater. E ali estava ela — os olhos queimando, o rosto pálido, mas a postura firme. Luna estava mudando. E, talvez, isso fosse o que mais me assustava.— Você sabia — ela disse, a voz carregada. — Sabia que ele matou sua irmã. E não me disse nada.A dor estava ali, evidente demais pra esconder. Suspirei, sentindo a tensão atravessar meu peito como um ferro quente.— Não é o tipo de coisa que se compartilha com alguém que ainda está decidindo de que lado quer ficar.Ela se aproximou, os passos curtos e decididos. — Eu escolhi, Dante. No momento em que te salvei. No momento em que vi Chiara no chão e não fugi. E você ainda me trata como uma peça descartável.Me levantei devagar. — Eu trato você como alguém que pode morrer a qualquer momento por estar ao meu lado. Não é proteção, Luna. É sobrevivência.Ela me
Capítulo 23LunaNão precisávamos de provas pra saber. Era como sentir a vibração de um terremoto prestes a começar. E eu sabia que ele não deixaria barato. Ainda mais agora que eu tinha cruzado a linha, não só traído, mas me entregado ao inimigo.Me levantei devagar, tentando não acordar Dante. Peguei a camisa dele do chão e vesti, os botões tortos e a gola larga caindo sobre meu ombro. Fui até a janela.A cidade estava viva. Impassível. Como se não tivesse ideia do que estava prestes a acontecer.Encostei a testa no vidro, deixando o frio me trazer de volta à realidade. Eu era parte da guerra agora. E aquilo ali, aquela noite com Dante, tinha sido só uma trégua. Um respiro antes da próxima batalha.— Você anda como se o chão estivesse prestes a desabar — a voz dele me fez estremecer.Me virei e encontrei Dante recostado na cabeceira da cama, os olhos semicerrados, mas atentos. O lençol cobria parte do corpo, mas nada escondia o jeito como ele me olhava. Com uma intensidade que me de
Capítulo 24MarceloNada é mais eficaz do que a verdade misturada à mentira. O veneno só funciona bem quando disfarçado de remédio.Espalhei os boatos com precisão cirúrgica.Usei meus contatos em Curitiba, gente que Dante achava que havia descartado. Um entregador que já fora motorista de confiança, uma secretária que só pensava em sair da periferia, e um velho aliado que devia favores demais para me negar qualquer coisa.A mensagem era simples: um carregamento de armas viria pelo litoral, uma remessa grande demais para passar despercebida. Com nomes falsos, rotas falsas, e um destino que fazia sentido demais para não ser crível.Dante é inteligente. Mas inteligência demais faz o homem querer controlar tudo. E controle, nesse jogo, é ilusão.A verdadeira armadilha é dar a ele aquilo que espera.Enquanto isso, minhas sombras se moviam. Gente infiltrada. Códigos alterados. Informações comprometidas.E no centro de tudo isso… ela.Luna Santiago.A mulher que ousei transformar e que agor
Capítulo 25LunaDuas horas da tarde. Minha mão rabiscava distraída o nome de um dos envolvidos na última operação. A tinta azul manchava o papel, borrando letras que eu não me importava mais em organizar. Meus dedos doíam. O peso do que carregava nos ombros começava a se espalhar pelo corpo inteiro.— Você vai sair — Dante disse, a voz baixa, mas firme. Ele estava encostado no batente da porta, braços cruzados, a expressão neutra demais para ser apenas natural. — Mas não sozinha. Giovanni e Luca vão com você.Levantei os olhos do caderno, minha caneta parando no meio de uma linha. A forma como ele disse aquilo... cuidadosa, contida.— Está me dando liberdade... ou testando minha lealdade?Ele não riu. Não fez nem um gesto. Só me olhou. E esse olhar... era cru, direto, que parecia me atravessar.— Estou te dando escolha. É diferente. Você sabe disso.E eu sabia. A diferença era sutil. Mas real. Liberdade, naquele mundo, era um conceito vago demais. Sempre vinha cercada de olhos, de ar
Capítulo 1LunaTrabalhar para um mafioso nunca foi parte do meu plano de vida, mas planos mudam quando a sobrevivência fala mais alto que a moral. E eu sobrevivo. Sempre. Meu pai dizia que a vida era como um jogo de xadrez. Você não precisa ser a rainha, só precisa saber quando mover suas peças. E eu vinha movendo as minhas com cuidado, desde o dia em que entrei no escritório de Marcelo Rivas: olhos baixos, ouvidos atentos, boca calada. Marcelo era exigente, imprevisível, mas ele confiava em mim. O suficiente para me manter por perto, o suficiente para me fazer sentir indispensável.O relógio marcava 20h47 quando deixei minha mesa, já com os sapatos nas mãos, e segui pelos corredores silenciosos do prédio. Era tarde demais para estar ali, mas um relatório urgente precisava ser entregue antes da reunião da manhã seguinte. A cidade do lado de fora parecia quieta, mas São Paulo nunca dorme de verdade. Sempre há alguém observando, esperando, tramando. E naquela noite, senti isso mais do