Depois de despedir-se de Héctor, Heitor seguiu para a porta. O peito ainda doía com a notícia que acabara de ler. Brigada, seu país natal... tomado pelos turcanos... O devaneio durou muito. Ali, em pé na calçada, Heitor percebeu o quanto esses malucos fariam para impor sua ideologia e, enquanto olhava para o fim da estrada, pensava o quão perto estava do exército inimigo. Quanto tempo até uma invasão? Isso tudo parecia exagerado? Não mais...
Segundos depois o garoto reparou mais à frente. A praça estava mais cheia que nunca, diversas crianças corriam em brincadeiras e, mais ao fundo, Heitor reconheceu Afonso e Áurea. Os dois estavam sentados lado a lado. A menina sorria e Afonso parecia animado também. Era impressionante como Afonso zombava da garota pelas costas e na sua frente fingia amizade, ou amor... Heitor não sabia, mas seguiu em direção
Finalmente chegou à padaria, haviam dois clientes aguardando a frente do balcão. Uma mulher que parecia ter menos de vinte anos e um velho rapaz, de barba volumosa e um cheiro fortíssimo de cerveja. Antonella surgiu da porta atrás do balcão minutos depois, duas sacas de pães sob os punhos e um olhar frio e vazio. Os cliente saíram aos agradecimentos e Antonella virou-se para a pequena estante atrás do balcão. Não parecia de fato procurar algo, parecia mesmo estar evitando a conversa com o filho, alguma coisa havia acontecido.— Mãe? Preciso avisar uma coisa... — Arriscou Heitor, aproximando-se do balcão e sentando-se sobre um banquinho de madeira escura.— Sim...? — A mulher não se deu o trabalho de virar-se e encarar-lhe face a face.— Eu fui convidado para uma festa... Não é longe daqui. É na casa de uma amiga.&m
As sobrancelhas da menina subiram deliberadamente e seus olhos grandes, agora estavam cheios de lágrimas. Olhou para os lados, buscando a saída, mas pareceu atordoada de mais para pensar. Heitor recebeu as súplicas transvestidas no olhar de Áurea, mas não fez nada e nem faria. Afonso tão pouco se importou. Deixou Victória entrelaçar seu dedos aos dele e esse foi o estopim; Áurea disparou para a porta, incapaz de segurar as lágrimas e sumiu no jardim. Icaro partiu em seguida, parecia o único a se importar com a garota. Não que Heitor não se importasse, só não podia ignorar tudo que a garota lhe causara no baile, e depois dele também. Porque o que lhe doía mais que a mentira era a sua indiferença.O jogo acabou naquele momento. Os garotos passaram o resto da festa dançando e minutos depois muitos outros alunos chegaram. A música altí
O peito de Heitor contorceu-se e o já tão familiar arrepiou circundou sua coluna. Áurea estava tão diferente estes tempos. Passara as férias sozinha, numa espécie de retiro espiritual que em nada lhe acrescentava se não um sentimento vazio e amargo, parecido com a solidão. Eles se falavam com uma razoável frequência, mas sempre como amigos, claro. Aliás, criaram uma espécie de laço amigável que fizera o garoto temer uma futura impossível saída. Mas chama-lo para o quarto andar? Aquele corredor era completamente vazio, não poderia haver assunto algum que não se pudesse ter no pátio ou mesmo na sala de aula. Alguma coisa parecia estranha, mas não lhe parecia um bom momento para otimismos. Com toda a certeza a garota estava com algum problema, o silêncio durante a aula de hoje parecia significar bem mais agora... Com toda a certeza o assunto, se triste, envolveria a aproximação de Afonso e Victória. Áurea não deixara de amá-lo, não deixara de amá-lo em momento algum. Ne
Eram pouco mais de oito horas e os dois acabavam de chegar à padaria da mãe de Heitor. Antonella ergueu as sobrancelhas ao ver Afonso, não era comum o garoto levar amigos para lá. Deu o sorriso gentil de sempre e puxou a mochila do garoto. — Olá, rapazinho. Deixe que eu guardo essa mochila. — Antonella costumava ser mais gentil que o normal quando se tratava de visitas (exceto a velha Valentina, pois a odiava). Afonso agradeceu e sentou-se num banquinho próximo ao balcão. — Espere uns minutinhos. Vou buscar o livro. — Disse Heitor, enfiando-se na portinhola do balcão e seguindo para o estoque. Heitor deixava ali o livro, pois sempre que saía do colégio dirigia-se para a padaria e, estrategicamente, o morrinho era muito próximo de lá. Deixava-o sempre em uma das prateleiras, perto das sacas de farinha de trigo. Podia ouvir o bater de utensílios na cozinha — que ficava no cômodo ao lado — em que Antonella trabalhava incessantemente. Encontrou o pequeno livro no lugar q
Heitor não disse nada, nem poderia. Aquilo definitivamente não era do seu gosto, mas o que lhe machucava era não poder fazer nada. Sabia o perigo que corriam, sabia exatamente o que poderia acontecer com sua mãe, com ele, com Omar. Mas sair agora, sozinha. Isso não era razoável; era uma loucura! Logo perdeu o fio de pensamento quando a mulher agachou novamente.— Eu vou voltar. Prometo. — Os seus olhos encheram de lágrimas. Agora pareciam os olhos que Heitor tanto conhecia, estes eram os olhos gentis, bondosos e esperançosos que sempre lhe davam força e, por algum motivo, o garoto entendeu que aquilo era o que deveria ser feito.Antonella pegou as chaves sobre uma das prateleiras e endireitou a bolsa de um ombro só. Deu uma última olhada para seu filho e partiu; pela porta dos fundos e sem olhar para trás. Heitor levantou em seguida, correu para a porta e trancou-a. Em segui
A neve caía sobre as lágrimas congeladas de Heitor. Nada mais o incomodava. O peito doía e os olhos ardiam, mas nada nem ninguém conseguiria fazê-lo esquecer os sons dos disparos. O garoto não levantou em momento nenhum, já não mais sentia as mãos que agora estavam soterradas na neve. Áurea e Omar estavam ali também e, talvez por solidariedade não fizeram objeção alguma em congelar ali, junto ao garoto.Alguns aviões cortavam os ares de vez em quando, carregados com a bandeira purianista e bombardeando casas ao longe, mas nada disso o faria levantar dali. O medo de morrer pareceu sumir durante aquele momento. Não poderia se dar ao risco de levantar, não poderia ver ali o corpo de sua mãe. A mulher que sempre o protegera não fora protegida e tudo aquilo parecia esmagar seu cérebro ao mesmo tempo. O ar parecia cada vez mais rarefeito e isso
— Que bom! Veja, parece que Matarás continua intacta. Só espero que deixem-nos entrar... — O velho arrumou a pequena casaca e apoiou-se na lateral da embarcação para observar a ilha. Havia um sol muito forte ali, banhava seus ombros de forma muito reconfortante, pois aliviava a lembrança da quase hipotermia do dia anterior. O barco aproximou-se lentamente do píer e dois guardas matarasos já os esperavam. — Documentos por favor! — Gritou um deles. — Sim, claro! — Omar berrou de volta, enquanto laceava a corrente entre o barco de o poste no píer. — Aqui. O guarda mais velhos aproximou-se do primeiro e juntos leram os três documentos. — E o garoto? — Disse o mais velho, apontando para Afonso. — Ah... — Omar aproximou-se do guarda. — Nós fugimos de São Havier, entende? Houve uma invasão e nós... nós conseguimos escapar. — Sem documentos serão deportados. — Disse de forma mecânica o guarda mais novo. — Estão comigo! — Berrou
As pernas do garoto doíam como nunca antes, mas não o impedia de estar ali, sobre a varanda. Observando a esfera esbranquiçada que banhava-o ali ou em Romana.O ódio pela velha Valentina assolava por vezes, quando a coluna parecia querer se soltar do resto do corpo. Aquele tempo todo Heitor acredito que a raiva de sua mãe pela velha era pura birra. Agora sabia que não. Dispor de serviços absurdos como aqueles, em troca de almoço e uma cama. Uma mulher rica feito ela?O vento sacudiu as imensas cortinas e pegadas descalças fizeram-se ouvir. Áurea estava acordada e o seguira até o andar maias alto. Pusera-se ao seu lado e observou por um bom tempo a lua pelo vidro da janela.— Eu trouxe isso. — Sussurrou a menina, entregando-lhe o livro que ganhara do falecido Héctor: “Príncipe Levi e suas estrelas”. Os dois estavam lendo aquele livro juntos e, aparen