O garoto trabalhou um pouco mais que as outras vezes; tirou o pó do balcão e de todas as prateleiras, encheu-as de doces e pães e varreu o chão, limpou as vitrines e por fim organizou todo o estoque. Antonella logo surgiu atrás do balcão, com uma cesta forrada por um pano branco.
— Aqui, querido. Leve-a para Héctor. — Disse a moça, sorrindo timidamente e Heitor consentiu. Seguiu para a rua e pôs-se a caminhar.
O frio parecia queimar seu rosto, a rua estava mais vazia que durante a ida à padaria. Até as árvores pareciam imóveis, talvez pelos galhos e pelas folhas congeladas. Mas não nevava mais, o céu parecia limpo e por vezes o garoto pôde ver aves cortando os ares.
Chegou, então, na velha biblioteca. Estava com o mesmo aspecto de abandono. Qualquer um que passasse em frente diria que ela se encontrava fechada há anos e, dessa vez, até o parque em frente estava vazio. Heitor abriu a porta e o barulho metálico que anunciava a entrada de alguém soou pelo silenc
Finalmente o dia vinte e nove de março chegou. A neve começou a dar uma trégua e de manhã já se podia enxergar o verde da grama e das copas das árvores pontudas — marca registrada de Romana. — Heitor e já estava a caminho da padaria, o cocheiro era um velho carrancudo, o mesmo que o trouxera da rodoviária quando chegaram a São Havier. Sua mãe já estava na padaria, precisara ir mais cedo por algum motivo que preferiu não contar ao garoto. O frio já não era tão insuportável quanto os dias anteriores e a carruagem parecia dançar sobre o chão de pedras. O cocheiro finalmente ergueu uma das mãos com as rédeas e os cavalos, depois de um relinchado alto, puseram-se a comer o pouco capim que o velho lhe dera. — Quinhentas pratas, garoto. — Disse, erguendo a mão enrugada. — Obrigado! O velho voltou a chacoalhar as rédeas e logo a carruagem, junto dos trotes, sumia no fim do quarteirão. Heitor ajeitou a mochila às costas e entrou na padaria. Por algum motivo já e
Alguns minutos depois estavam todos sentados nas rochas, na margem e ao lado do píer. Haviam feito uma fogueira onde todos procuravam se aquecer. Liz e Victória e Mirela ainda bebiam o conhaque e já estavam meio fora de si. A líder do bando levantou-se, então, tão de repente quanto o farol, que surpreendeu Heitor ao lança-lo um feixe de luz, ofuscando o rosto embriagado da menina.— Vamos jogar alguma coisa? — Disse Victória, aos soluços.Afonso deu um gigantesco sorriso e completou:— Eu nunca!Heitor erguer as sobrancelhas. “E nunca?” Que diabos é isso? O amigo pareceu notar sua ignorância e continuou:— Eu nunca... beijei uma garota na praia...Victória sorriu e puxou a garrafa para a boca, bebeu e passou para as amigas que fizeram o mesmo.— Você já? — Questionou Liz, olhando furiosa para
Depois de despedir-se de Héctor, Heitor seguiu para a porta. O peito ainda doía com a notícia que acabara de ler. Brigada, seu país natal... tomado pelos turcanos... O devaneio durou muito. Ali, em pé na calçada, Heitor percebeu o quanto esses malucos fariam para impor sua ideologia e, enquanto olhava para o fim da estrada, pensava o quão perto estava do exército inimigo. Quanto tempo até uma invasão? Isso tudo parecia exagerado? Não mais...Segundos depois o garoto reparou mais à frente. A praça estava mais cheia que nunca, diversas crianças corriam em brincadeiras e, mais ao fundo, Heitor reconheceu Afonso e Áurea. Os dois estavam sentados lado a lado. A menina sorria e Afonso parecia animado também. Era impressionante como Afonso zombava da garota pelas costas e na sua frente fingia amizade, ou amor... Heitor não sabia, mas seguiu em direção
Finalmente chegou à padaria, haviam dois clientes aguardando a frente do balcão. Uma mulher que parecia ter menos de vinte anos e um velho rapaz, de barba volumosa e um cheiro fortíssimo de cerveja. Antonella surgiu da porta atrás do balcão minutos depois, duas sacas de pães sob os punhos e um olhar frio e vazio. Os cliente saíram aos agradecimentos e Antonella virou-se para a pequena estante atrás do balcão. Não parecia de fato procurar algo, parecia mesmo estar evitando a conversa com o filho, alguma coisa havia acontecido.— Mãe? Preciso avisar uma coisa... — Arriscou Heitor, aproximando-se do balcão e sentando-se sobre um banquinho de madeira escura.— Sim...? — A mulher não se deu o trabalho de virar-se e encarar-lhe face a face.— Eu fui convidado para uma festa... Não é longe daqui. É na casa de uma amiga.&m
As sobrancelhas da menina subiram deliberadamente e seus olhos grandes, agora estavam cheios de lágrimas. Olhou para os lados, buscando a saída, mas pareceu atordoada de mais para pensar. Heitor recebeu as súplicas transvestidas no olhar de Áurea, mas não fez nada e nem faria. Afonso tão pouco se importou. Deixou Victória entrelaçar seu dedos aos dele e esse foi o estopim; Áurea disparou para a porta, incapaz de segurar as lágrimas e sumiu no jardim. Icaro partiu em seguida, parecia o único a se importar com a garota. Não que Heitor não se importasse, só não podia ignorar tudo que a garota lhe causara no baile, e depois dele também. Porque o que lhe doía mais que a mentira era a sua indiferença.O jogo acabou naquele momento. Os garotos passaram o resto da festa dançando e minutos depois muitos outros alunos chegaram. A música altí
O peito de Heitor contorceu-se e o já tão familiar arrepiou circundou sua coluna. Áurea estava tão diferente estes tempos. Passara as férias sozinha, numa espécie de retiro espiritual que em nada lhe acrescentava se não um sentimento vazio e amargo, parecido com a solidão. Eles se falavam com uma razoável frequência, mas sempre como amigos, claro. Aliás, criaram uma espécie de laço amigável que fizera o garoto temer uma futura impossível saída. Mas chama-lo para o quarto andar? Aquele corredor era completamente vazio, não poderia haver assunto algum que não se pudesse ter no pátio ou mesmo na sala de aula. Alguma coisa parecia estranha, mas não lhe parecia um bom momento para otimismos. Com toda a certeza a garota estava com algum problema, o silêncio durante a aula de hoje parecia significar bem mais agora... Com toda a certeza o assunto, se triste, envolveria a aproximação de Afonso e Victória. Áurea não deixara de amá-lo, não deixara de amá-lo em momento algum. Ne
Eram pouco mais de oito horas e os dois acabavam de chegar à padaria da mãe de Heitor. Antonella ergueu as sobrancelhas ao ver Afonso, não era comum o garoto levar amigos para lá. Deu o sorriso gentil de sempre e puxou a mochila do garoto. — Olá, rapazinho. Deixe que eu guardo essa mochila. — Antonella costumava ser mais gentil que o normal quando se tratava de visitas (exceto a velha Valentina, pois a odiava). Afonso agradeceu e sentou-se num banquinho próximo ao balcão. — Espere uns minutinhos. Vou buscar o livro. — Disse Heitor, enfiando-se na portinhola do balcão e seguindo para o estoque. Heitor deixava ali o livro, pois sempre que saía do colégio dirigia-se para a padaria e, estrategicamente, o morrinho era muito próximo de lá. Deixava-o sempre em uma das prateleiras, perto das sacas de farinha de trigo. Podia ouvir o bater de utensílios na cozinha — que ficava no cômodo ao lado — em que Antonella trabalhava incessantemente. Encontrou o pequeno livro no lugar q
Heitor não disse nada, nem poderia. Aquilo definitivamente não era do seu gosto, mas o que lhe machucava era não poder fazer nada. Sabia o perigo que corriam, sabia exatamente o que poderia acontecer com sua mãe, com ele, com Omar. Mas sair agora, sozinha. Isso não era razoável; era uma loucura! Logo perdeu o fio de pensamento quando a mulher agachou novamente.— Eu vou voltar. Prometo. — Os seus olhos encheram de lágrimas. Agora pareciam os olhos que Heitor tanto conhecia, estes eram os olhos gentis, bondosos e esperançosos que sempre lhe davam força e, por algum motivo, o garoto entendeu que aquilo era o que deveria ser feito.Antonella pegou as chaves sobre uma das prateleiras e endireitou a bolsa de um ombro só. Deu uma última olhada para seu filho e partiu; pela porta dos fundos e sem olhar para trás. Heitor levantou em seguida, correu para a porta e trancou-a. Em segui