Narrado pela personagem principal, Tamara Ivanov.
As cinco da manhã todos estávamos acordados. As crianças não iriam a escola por meu pedido. Boris se levantava do sofá de vez em quando e ia até a janela olhar para a usina. Voltava a cada vez com uma expressão mais preocupada.
— O Viktor disse que não era nada de mais, certo?
— O tio Viktor é só zelador — Olga falou enquanto penteava o cabelo de uma boneca.
Eu ouvia o que eles diziam, mais ao mesmo tempo minha atenção estava concentrada em outras coisas. Eu queria saber de algum pronunciamento do governo, algo mais seguro. Mas nenhum noticiário da Ucrânia falava sobre Chernobyl. Era como se nossa cidade e o que aconteceu estivesse isolada do resto do mundo, e isso me preo
Haviam se passado 36 horas desde a explosão, a fumaça negra ainda continuava saindo da usina. E apesar de sabermos que de nada adiantava ficar em casa, Boris e eu ficamos em uma espécie de quarentena, revesando o sono um do outro.Yuri se queixou durante e noite com dores de cabeça e vomitou tudo que comia, mas durante a manhã parecia melhor. Eu não sabia que a dose de radiação que ele havia recebido implicaria em consequências piores depois.Acredito que os comprimidos de Iodo de Lesya nos ajudaram muito.— Tamara, já se passou muito tempo. Está óbvio que a situação foi controlada. Caso contrário saberíamos. Preciso ir trabalhar, e você deve sair com as crianças e procurar um médico disponível para Yuri.— Tem razão.
— Você ouviu? — entrei já perguntando a Boris.— Sim.Coloquei Olga no chão e sem dizer mais nada o abracei. Ele apenas me abraçou com mais força contra o seu peito e passou os dedos por meu cabelo.— Sinto muito.— Você disse que ficaria tudo bem!Boris segurou meu rosto com as duas mãos e me encarou nos olhos. Tentei me desvencilhar e sair de perto dele, as lágrimas marcavam minhas bochechas e os soluços saiam sem controle da minha garganta.— Tamara, me escute! Por favor me escute!Continuei tentando me soltar, mas ele me segurou com mais força.
Já era noite quando nosso ônibus chegou ao ponto de evacuação. Muitas pessoa já se organizavam por lá como podiam. Descemos exaustos da viagem, mas isso nem se comparava com nossa dor psicológica.— Não vejo a hora de ir pra casa — Yuri disse.— Nem sabemos mais se teremos casa.— Aqui está uma bagunça. Aleksey e eu vamos nos encontrar no hotel em que ele está hospedado. Venham comigo.— Tem certeza, Yulia? Não queremos incomodar.— Vocês me ajudaram esse tempo todo, eu nem sei o que teria feito sem sua ajuda.Todos assentimos. Seria melhor para as crianças e para nossa família. Mesmo que toda essa confusão durasse mais de trê
O tio de Yulia ficou muito confuso ao ver toda aquela gente entrando na sua casa, mas era um senhor amável e não fazia muitas perguntas. Tinha perdido a esposa há apenas dois anos e seu único filho pagava a uma vizinha que fosse lá todos os dias entregar o almoço, a janta e dar uma olhada nele.Nos primeiros dias tudo que conseguimos fazer foi tomar longos banhos e dormir. Nos apertamos em um único quarto, mas ficamos felizes por estarmos juntos e longe da radiação de Chernobyl. Algumas vezes até sorrimos ao vermos as travessuras das crianças com o velho senhor Igor, ou quando Yulia e Aleksey ficavam sonhadores pensando no bebê.Apesar de tudo, eu só queria voltar para Chernobyl. Não via a hora de receber a notícia de que tudo estava resolvido e que nossa casa nos esperava. O problema é que as informações que tínhamos sobre lá eram
Capítulo narrado pelo ponto de vista do personagem Boris.Desde que Tamara e Yulia voltaram do hospital, as coisas conseguiram ficar mais tensas e estranhas entre as pessoas na casa. Elas passaram o dia quase todo lá, e Yulia parecia muito dopada de calmantes quando entrou.Por mais que eu perguntasse à Tamara o que o médico havia dito sobre a saúde de Yuri, ela se recusava a dar maiores informações, ficava estranha e somente falava que ainda era muito cedo para saber quais efeitos a radiação teria sobre o corpo dele.Mais de uma vez ouvi Yulia e Aleksey brigando e até chorando nos dias que se seguiram, mas Tamara insistia para que eu não me metesse naquele assunto, então achei melhor ficar mais calado.O tempo, por sinal
Narrado pelo ponto de vista do personagem Boris.Tamara só me atendeu depois da quarta vez que liguei. Eu sabia que estava fazendo isso porque brigamos antes de eu vir de Brovary para Kiev me voluntariar, mas mesmo que ela só pensasse em me atender na décima vez, eu continuaria discando o número no telefone público até que a próxima pessoa da fila me acertasse uma pedra na cabeça.— Sim?— Senhor Igor, boa tarde. Passe para minha esposa, por favor. Aqui é o Boris.— Que Boris?O lado bom de se hospedar na casa do tio da Yulia era que ele sempre esquecia das brigas e confusões, o lado ruim é que também sempre se esquecia de você.
Narrado pela protagonista, Tamara.Eu não poderia dizer o que me doeu mais naqueles dias: saber que nunca iria voltar para casa, que Yuri podia ter câncer, que o filho da Yulia podia nascer com graves problemas ou que no meio de tudo isso Boris havia voltado para limpar Chernobyl.— Não faz sentido ele ter ido, já que não vamos voltar.— Você sabe porquê ele foi, seu marido é um herói. Eu teria feito o mesmo se não fosse a gestação da Yulia — Aleksey falou.— Slavutych... Será como uma sombra do que Chernobyl foi. Nunca será minha cidade.— Cui
Em 1987 nossa cidade da esperança estava pronta, ela havia sido construída as pressas para abrigar os sobreviventes e evacuados e por isso era horrível.Cada pais da União Soviética havia construído uma parte da cidade, e por esse motivo ela era bem bagunçada e as construções diversificadas. Era como se em uma rua você estivesse na Bielorrússia e na seguinte na Estônia.Eu sei que estava sendo mal agradecida, afinal ganhamos uma casa e não precisaríamos mais viver de favor, e até que nossa casa era de bom tamanho. Mas eu não conseguia simplesmente não comparar nossa refúgio com Chernobyl, e não deixava de pensar no fato de que eramos muito sortudos antigamente porque a região de Pripyat era um modelo de modernidade na Ucrânia Soviética.Slavutych era o que era, e nunca seria m