Início / Romance / Meu Salvador / Capítulo 1 - Sara
Meu Salvador
Meu Salvador
Por: Nessa Cardoso
Capítulo 1 - Sara

"🎶 Levanto de manhã ponho a cara na janela

Olho para rua os olhos cheios de remelas

Vejo vários camaradas andando por ali

Com algumas minas que eu já saí... 🎶”

Tic Tac - Doctor's MC

Diariamente acordo cedo, desço o morro com fone de ouvido escutando meu som, vou à faculdade para meu curso de Secretariado Executivo Trilíngue, onde me esforço para concluir, falta tão pouco, pois já estou no último período, bem perto de atingir meu grande objetivo, poder ajudar financeiramente meus pais. Não vejo a hora, não que isso nos deixe menos felizes, somos felizes com o que temos e com quem somos.

Apesar da correria do dia a dia e das dificuldades, eu não me importava e era muito feliz. Tinha meus pais que me amavam, minha amiga de infância Céia Mara que morava no mesmo morro que eu e minha amiga Simone, que nossa amizade começou na faculdade e às duas juntas eram implacáveis, me incentivavam ao máximo, deixavam meu ego lá em cima, as melhores amigas que eu poderia ter. Fora dona Letícia, patroa da minha mãe que era incrível comigo, uma segunda mãe sem dúvida, pagava minha faculdade, dizia valer a pena investir em mim, porque eu era esforçada e dava-lhe orgulho.

Estudava de manhã, após a aula fazia inglês com o professor Lucas na própria faculdade e trabalhava em uma lanchonete de fast food das 14h às 22h, para poder me bancar na faculdade, sem preocupar meus pais e ajudar em casa quando sobrava, não acho certo dona Letícia ter que fazer mais isso por mim. Chegava cansada diariamente e ainda ficava até tarde ajudando minha mãe com as encomendas de salgados, docinhos ou bolos que às vezes tinha e era muito grande.

Meu professor de inglês, era um homem muito bonito, paulista, moreno, pele queimada de sol, porque adorava surfar, olhos bem escuros, cabelo bem cortado, sedutor, via potencial em mim, por isso resolveu me dar aulas particulares de graça, para aprimorar meu inglês e sempre me incentivava a fazer um intercâmbio para melhorar ainda mais minha pronúncia e ter experiência de vida e profissionalmente evoluir. Ele já fez e me dizia ser uma experiência única, ímpar, se um dia eu ia conseguir ter coragem para isso, não sabia, não queria deixar meus pais, sou muito apegada, eles não têm mais ninguém, só a mim, dedicam sua vida a mim, nos tornou cada vez mais unidos.

Meu pai, João da Silva, 50 anos, negro, olhos castanhos escuros, alto, magro, cabelos curtos, crespos e pretos, bonito, pedreiro em uma construtora no centro da cidade no Rio de Janeiro, levantava-se bem cedo, para chegar no horário na empresa para poder ir para obra onde fosse designado, era trabalhador e não gostava de dar motivos que o desabonasse.

Minha mãe, Maria dos Santos Silva, 45 anos, branca, olhos verdes, baixa, corpo escultural, cabelos compridos, lisos e pretos, diarista em condomínios de luxo, em Copacabana, Ipanema e Barra da Tijuca, cada dia estava em um lugar, saia às 16h e ainda ia para casa fazer suas encomendas de bolo, salgados e doces de festa. Fazia porque gostava dessa área e para aumentar nossa renda, vendia muito lá no morro mesmo, mas também vendia no asfalto, sempre indicação da d. Letícia, nossa fada madrinha.

Apesar da vida simples que levavam, sempre foram moradores do Morro do Peri, no Rio de Janeiro, muito antes de eu nascer teve uma batida da polícia atrás da bandidagem que acabou com toda minha família materna e paterna durante o tiroteio, meus pais se salvaram porque estavam trabalhando fora do morro na hora. Logo depois da chacina foi implantada a UPP (Unidade Pacificadora da Polícia), o morro ficou mais “tranquilo”. Meus pais ficaram sem ninguém, desolados, só tinha um ao outro. Resolveram se casar logo, já que perderam todos os entes queridos, não quiseram esperar nem mais um minuto. Minha mãe não conseguia engravidar, passou cerca de 5 anos tentando e nada, d. Letícia, uma das patroas de minha mãe chegou a pagar tratamento para ajudar. Depois que o médico deu por encerrado o tratamento, minha mãe fez uma promessa para Nossa Senhora de Aparecida que se conseguisse engravidar, daria seu nome para a criança. Cerca de 1 ano depois, engravidou sem fazer tratamento e desistiu e quando nasci me deu o nome de Sara Aparecida. Cuidavam de mim com tanto zelo e cuidado com medo de me perder, porque na hora do parto deu uma complicação e minha mãe precisou tirar o útero e não poderia mais ter filhos. Cresci ouvindo que eu tinha que estudar para ser alguém e ter uma vida melhor, sem riscos.

Mesmo com todo o receio, certo medo de meus pais, pude aproveitar minha infância, enquanto eles trabalhavam, de manhã ia para escola e a tarde ia para o Aprendiz, era um instituto para crianças carentes, onde aprendíamos esportes, danças, línguas, eu fazia inglês, espanhol e ballet, Céia fazia junto comigo e tinha nosso amigo o Joaquim, que chamávamos de Joca, praticava Jiu-Jitsu. Com o tempo Joca foi se mostrando violento e agressivo, até que foi convidado a se retirar por machucar um aluno que parou no hospital em estado grave. Sentimos muito e não entendíamos por que ele ficou dessa forma, só era carinhoso comigo e com a Céia. Sempre dizia que ia casar comigo quando fossemos adultos, mas nessa de ter saído do instituto acabou se encaminhando para o lado errado, foi para o caminho do tráfico, infelizmente, embora eu não gostasse dele para sermos um casal, disse que não me casaria com alguém dessa vida fácil e quando completou 15 anos sumiu do Peri, sem mais nem menos.

Apesar de eu morar, nunca me envolvi com tráfico, prostituição, com a “vida fácil”, minha vida era estudar, trabalhar e casa. Como toda boa carioca, gostava de um bom samba, carnaval e funk, mas não me divertia muito, somente quando dava e tinha algum dinheiro sobrando, geralmente aos sábados quando minha folga era no domingo.

Queria poder comprar uma casa para meus pais, fora do Peri, sei que tinham um pouco de trauma da chacina, mesmo que não tenham vivenciado, mas perderam todo os parentes, tinham muito medo da violência, embora morar na “favela” não fosse tão ruim como os outros pensam, tem muita gente de bem na comunidade, trabalhadora, tem a escola para os jovens para aprender atividades diversas, cursos profissionalizantes, aonde iniciei meu curso de inglês e surgiu a vontade de fazer secretariado trilíngue, fora o baile que eu pouco frequentava, mais mesmo assim era uma delícia, adorava dançar e fazia muito pouco por falta dos dois tempos. Mas tinha a sombra de como perdi minha família que nem cheguei a conhecer, e tinha medo de perder os que eu conhecia. Mas, como se diz aqui no morro, “Segue o baile”.

Chegou o domingo de folga, Simone e Céia insistiam para que eu fosse ao baile, dizia ser para comemorar que logo estávamos formadas, estava cansada, queria dormir cedo, mas não teve jeito. Fui. Estava de jeans escuro, cropped de crochê branco, anabela preta de verniz, cabelo solto, maquiagem leve, porque não estava empolgada, cansada mesmo.

Quando entrei vi um negro, alto, forte, olhos castanhos e cabelos castanhos num black de responsa, lábios carnudos me olhando, sabia que conhecia de algum lugar, me era muito familiar…

— O novinha! Vai ignorar o parça aqui? — disse com aquela voz aveludada. Parei e fiquei olhando para ele, porque sabia que o conhecia, se fosse outro passaria direto. Reconheci.

— Joca???

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >
capítulo anteriorpróximo capítulo

Capítulos relacionados

Último capítulo