O homem nos encara com olhos semicerrados, como se tentasse reconhecer o passado estampado nos nossos rostos. Ou talvez como se já soubesse exatamente quem éramos, e só não soubesse o que fazer com essa informação.— Eu me lembro de você — ele diz, lentamente. — Você… era só uma filhote quando foi embora com sua mãe.— E agora voltei — respondo, erguendo o queixo. — Não por saudade. Mas por necessidade.Ele balança a cabeça, como se tentasse processar tudo de uma vez só.— Por que agora? — pergunta. — Depois de tanto tempo? Sua mãe quase foi morta e imagino que ainda seja banida!— Porque agora eu posso — digo. — Porque não dá mais pra fugir do que ficou pra trás.O homem desvia o olhar por um instante. A tensão entre nós é densa, como se o ar carregasse tudo o que foi enterrado aqui. Memórias. Mágoas. Verdades demais.— Não esperava vê-la de novo — ele confessa. — Muito menos assim.— Eu também não esperava voltar — admito.— E o que está procurando aqui?— Meu pai.O silêncio que se
O caminho para casa é tortuoso, para dizer o mínimo. E não apenas pelas trilhas sinuosas ou pelo cansaço acumulado, mas principalmente porque tivemos que ir arrastando um estorvo. Realmente um estorvo. Quando ameacei esse maldito alfa, não sabia que ele era o pai da Zoe. Caso contrário, teria matado. Que desgraça. Ele anda com um ar presunçoso irritante, como se tudo fosse uma grande piada particular. E talvez, na cabeça dele, seja mesmo. — Se eu pudesse, arrancava o pescoço dele — mando mentalmente para o Lord. — Arrancar o pescoço? Isso é pouco para o que quero fazer com ele — ele responde, com aquele tom calmo que sempre precede ideias absurdamente violentas. — Talvez desmembrar e moer os restos, porém o manter vivo o suficiente para ele comer. É nessas horas que lembro o quanto meu amigo pode ser criativo quando está com raiva. Mas não o julgo. Pelo contrário. — Ainda vai ser pouco pelo que ele fez com a minha parceira — completa. E é esse o ponto. Tudo o que esse m
— Onde vamos enfiar esse traste? — Zoe pergunta, ajeitando o casaco enquanto encara o pai caído.— Cela do fundo da caverna — respondo. — Aquela com cheiro de mofo e uma goteira que parece tortura sonora.— Perfeito — ela murmura. — Mais poético que ele merece.Lord solta um resmungo de aprovação e pega o alfa pelo colarinho como se fosse um saco de lixo. Literalmente.— Eu até pediria ajuda, mas esse aqui é leve pra tanto ego inflado — ele comenta, com um leve sorriso cínico.Gabi caminha um pouco à frente, abrindo caminho com a elegância de quem sabe que está carregando a arma mais importante de todo o continente na bolsa, entre um tônico anti-inflamatório e um frasco de óleo de lavanda.Chegamos à cela. A porta de ferro enferrujado range alto quando Alex a abre. Lord arremessa o alfa lá dentro com um barulho seco que ecoa nas paredes de pedra.— Bem-vindo à sua suíte presidencial — digo. — Vista com paredes de rocha natural e sons ambiente de gotas caindo eternamente.Zoe bate duas
Lívia fez questão de repassar tudo que ocorreu enquanto estávamos fora. A organização do Fisp está perfeita, melhor impossível.Minha amiga sabe cuidar muito bem de um evento, e está preparada para ser coroada como melhor organizadora da alcateia.Lord está apoiado na parede com a minha mãe em seus braços. O chá que ele fez estava ótimo e o bolinho que minha mãe fez, ainda melhor.— E o prisioneiro?— Está sendo monitorado. Quero passar lá ainda hoje com a adaga para mostrar alguns pontos importantes pra ele. — Alex fala.Se eu não o conhecesse até acreditaria, porém o conheço. Tão bem quanto me conheço.Então entendo suas palavras como “vou dar uma surra nele antes de decidir alguma coisa”.Bem, só precisamos dele vivo, não é mesmo?— Tem um tônico que quero fazer, conhecido como tônico da verdade. Vai fazer ele abrir a boca, mas preciso de um prazo de dois dias. — Gabi aparece do nada, equilibrando uma bandeja com mais bolinhos e um vidrinho cor de âmbar já rotulado com um adesivo e
Do lado de fora, Liz e Lord ainda estão juntos, e a cena é até bonita. Minha mãe parece mais leve, mais presente, e Lord… bem, ele está tentando parecer desinteressado enquanto segura delicadamente uma xícara de chá com os dedos, como se não fosse um lobo enorme capaz de esmagar crânios.— Então você faz chá, mata traidores e cuida de senhoras? — Lívia comenta passando pela varanda.— Multitarefas. — Ele responde sem levantar os olhos.— Um homem completo.— Um lobo completo. — Ele corrige, e minha mãe sorri deixando um beijo suave em seus lábios.A tarde vai se arrastando. Em algum momento, Alex, Gabi e eu voltamos pra parte interna da casa. Nos sentamos no sofá enquanto Gabi revira a bolsa em busca de alguma coisa.— E a adaga, Gabi?— No fundo da bolsa — ela responde. — Entre os tônicos de dormir e o de encolher verrugas.— Perfeito — murmuro. — Nada como um artefato milenar guardado entre um antisséptico e um hidratante mágico.— Organização é tudo — ela retruca. — E antes que per
O bolinho da minha mãe ainda tá no meu prato, uma metade esquecida entre goles de chá e conversas abafadas. — Ele tentou cuspir no chão da cela — comenta Lord, com a sobrancelha arqueada e uma expressão que mistura nojo e diversão. — Errei a mira e joguei água fervendo na perna dele. Uma pena. — Uma pena mesmo — digo, saboreando mais um gole do chá. — Devia ter acertado a cara. — Isso seria uma ofensa à água fervendo — completa Gabi, sentando-se ao meu lado com a elegância de quem guarda uma adaga entre frascos de hidratante e tônicos explosivos. Alex não diz nada. Está com os olhos fixos na fogueira, a mandíbula travada. Eu o conheço o suficiente pra entender que está se contendo. Que se deixasse, já teria voltado naquela cela e enfiado a adaga milenar em algum lugar bem doloroso — só pra ver se o sujeito falava alguma coisa. — Dois dias — Gabi fala, como se estivesse lendo os pensamentos dele. — E prometo que ele vai falar tudo. Alex assente com a cabeça, mas não responde
Desde que me entendo por gente, há tinta preta espalhada pelo meu corpo. Os anciãos dizem que estou destinada ao mais poderoso dos alfas, pois jamais viram marcas tão extensas quanto as minhas.Quando uma fêmea nasce destinada a um alfa, ela carrega uma marca — quase como uma tatuagem. Quanto maior a marca, mais forte o lobo que a reivindicará. As minhas se espalham por toda parte, cobrindo minha pele como um mapa do destino. Apenas meu rosto ficou imaculado, mas o resto... cada centímetro carrega o sinal da minha sina.Eles podem nos sentir assim que completamos vinte anos. Seguem nosso rastro, atravessam matas e montanhas para nos levar para sua alcateia. Hoje é minha vigésima volta ao sol. O dia em que encontrarei meu lobo.O dia em que finalmente aprenderei a me transmutar.O dia em que verei minha outra forma pela primeira vez.Mal posso esperar pela lua. Sinto a impaciência pulsar em meu peito. Quero que ela suba depressa no céu, que banhe a terra com seu brilho prateado e traga
O cheiro dela.Forte. Viciante.Está me deixando louco. Transtornado.Na forma humana, ainda consigo conter meus instintos. Agora? É impossível. Meu lobo ruge dentro de mim, exigindo que eu me aproxime, que tome o que é meu. Mas não posso. Preciso lembrar por que não podemos tê-la, por que devemos protegê-la até de nós mesmos. Mas de nada adianta. Minha fera já decidiu. Ela nos pertence. E vamos tomá-la.O aroma dela se espalha pela floresta densa e escura, infiltrando-se em cada fibra do meu ser. O ar da noite está carregado, pesado, e a lua cheia brilha entre as copas das árvores, testemunha silenciosa do que está prestes a acontecer. Meu corpo se tenciona.Rosno. Ciúmes. Ódio.Não sou o único alfa aqui. Não sou o único que sente esse perfume intoxicante. Outros o percebem. Outros o desejam. Mas ela é minha. Sempre foi. Sempre será.O instinto me guia. Meus pés se movem antes mesmo que eu perceba. Avanço sem hesitar, rompendo galhos e folhas secas pelo caminho, até encontrá-la.Ela