Capítulo 1
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Alathea não era uma cidade fácil e Kayla tinha plena consciência disso. Após ser empurrada de forma bruta por um homem que passou na sua frente na fila, praguejou mentalmente e ferveu de raiva por não poder revidar como queria: com palavras.
As pessoas sempre diziam o quão honroso era o trabalho de um Receptor, mas a verdade era que elas estavam agradecidas por não serem um e se aproveitavam disso. O homem que comprou os últimos pães que eram para ter sido de Kayla era o exemplo perfeito.
Quando ele saiu, Kayla olhou de forma suplicante para a comerciante que fez uma cara tristonha e disse que por hoje não tinha mais. Sentindo-se um pouco derrotada, Kayla caminhou para fora da feira. Olhou para cima e suspirou. Hoje não era seu dia.
Para começar, acabou acordando tarde, consequentemente chegando tarde à feira. Quase não conseguiu comprar as porções de arroz que a mãe pediu, e só teve êxito por ter corrido uns bons metros até à fila. Já na padaria teve a vez roubada e ainda por cima não conseguiu comprar os pães.
Estava caminhando pela calçada quando um homem montado a cavalo parou de forma abrupta ao seu lado. Parecia ser um cavaleiro do castelo.
— Pode me dizer onde fica a estrada para o Campo das Luzes? — ele questionou.
Sem poder dizer nada em voz alta, Kayla apontou com o dedo à direção certa. Curioso, o cavaleiro observou:
— Você é uma Receptora? — Kayla confirmou com a cabeça. — Espero que tenha mostrado o caminho certo, garota.
E saiu dali rapidamente.
Kayla revirou os olhos quando teve certeza de que ele estava longe. Pessoas do castelo quase nunca sabiam se localizar por Alathea, e não achou brilhante a ideia de o cavaleiro ter decidido procurar o Campo das Luzes durante o dia, já que só se tornava totalmente visível à noite.
Alathea ficava em um reino chamado Camellia (como a flor Camélia), que era conhecido por quatro cidades principais: Alathea, Murano, Mírade e Alpha, essa última sendo o local de moradia da realeza. Tirando essas cidades, existiam outras, mas que eram somente conhecidas como derivações das principais.
Kayla morava com a família em Alathea desde que se entendia por gente. Sabia que a mãe viera da Alathea 1, uma das derivações, e que o pai viera da 3, mas mudaram quando se casaram.
No momento, a situação estava difícil. Os Receptores já não eram tão requisitados como antigamente e o dinheiro que a maioria recebia não era muito. Essa situação reinava também na casa de Kayla.
A última pessoa para quem Kayla prestou serviços foi para um vizinho seu que morreu há alguns meses enquanto dormia, aos oitenta e sete anos. Ele contratou Kayla para que ela o fizesse companhia enquanto ele falava sobre seus problemas e histórias da própria vida. Era muito sozinho e gostava de tagarelar. Como os Receptores tem uma grande habilidade de encontrar soluções para os problemas que ouvem, Kayla conseguiu fazer com que o velho se sentisse bem consigo mesmo antes de morrer, e ela teria gostado mais do serviço se pudesse ter se comunicado com suas próprias palavras também.
Seu trabalho era somente ouvir. Ouvir, ouvir e ouvir. Era, como todos os outros Receptores, terminantemente proibida de falar em público. E era por isso que não via a hora de chegar em casa e poder conversar com seus irmãos.
Respirou com alívio ao atravessar o pequeno portão de ferro de sua casa.
— Oi. — Cumprimentou quando viu sua mãe lavando alguma coisa na pia. — Cheguei atrasada e não consegui muita coisa. Sinto muito... — Confessou com remorso.
Sua mãe, Iridia, olhou-a com repreensão.
— Já disse para não se culpar. Essas coisas acontecem. — Afagou levemente os cabelos da filha. — Temos um estoque ainda. Não se preocupe, minha flor.
Kayla sorriu com o carinho que recebeu.
— Kayla! — Escutou ser chamada. Olhou para o corredor e viu Derek vindo em sua direção.
— E aí, meu príncipe. — Desarrumou o cabelo do irmão.
— Eu disse que ela ia voltar logo seu bobo. — Kianne veio de braços cruzados.
— Deixa eu ficar preocupado em paz! — Derek retrucou.
Kayla riu com a troca de farpas.
Kianne e Derek eram gêmeos (apesar da aparência distinta) e, apesar de viverem implicando um com o outro, era evidente que se amavam muito.
— Como está o papai? — Kayla perguntou.
— Ele foi tomar um banho. Parecia melhor. — Kianne respondeu.
Kayla assentiu e tratou de começar a arranjar o almoço. Logo seu pai, Misael, apareceu na cozinha.
— Oi, minha flor. — afagou o braço de Kayla.
— Como você está? — ela perguntou.
— Forte como nunca. — Porém, uma tosse traiu a resposta dele. — Estou um pouco melhor...
Kayla suspirou.
— Precisamos de antibióticos... — resmungou consigo mesma. — Amanhã mesmo eu vou atrás de serviço e...
Misael interrompeu-a:
— Não quero ninguém se matando atrás de serviço por minha causa. Vou ficar bem.
Apesar da resposta positiva, Kayla ainda se preocupava. Tinha medo de que o problema do pai se desenvolvesse e se tornasse algo mais grave
Sorriu para não transparecer essa preocupação. Voltou a dar atenção ao almoço.
Enquanto os gêmeos tagarelavam ali perto, Kayla se manteve quieta, sendo totalmente o oposto do que quisera fazer minutos antes. O peso da realidade era mais forte.
Apesar de tentar ao máximo não ser uma Receptora dentro de casa, acabou deixando seu silêncio vencer.
Capítulo 2 ~~☾~~ O Edifício Central era a maior construção da cidade. Com seus imponentes dez andares, era comandado pelo representante de Alathea. Todas as cidades tinham seus representantes e cada um de acordo com a Linhagem pertencente. Quer dizer, menos Alathea. Apesar de ser a cidade oficial dos Receptores, jamais colocariam um no poder. Então, quem comandava, no momento, era um Sussurrador, Samuel. Kayla estava logo em frente ao Edifício acompanhada do pai e da mãe. Misael usava mais casacos do que o normal para a temperatura que fazia, mas era necessário. Não havia se recuperado e não queria piorar seu caso. Chamavam essa condição de febre glacial, muito semelhante a uma gripe. Raramente contagiosa, mas quando acometida, a pessoa ficava gelada, passava a sentir muito frio e uma fraqueza enorme. Kayla viu que sua família não era a única ali e sabia que todos eram Receptores porque o silêncio reinava por todo o lugar. Estava prestes a entrar, quando escutou o pai começa
Capítulo 3 ~~☾~~ Seria bom dizer que, depois de uma semana, a convocação que a Família Real fizera havia sido esquecida. Mas não foi. E era pior porque ninguém sabia do que se tratava. Kayla não comentou, mas diversas vezes viu a mãe mexer na caixa de correio. Dos moradores da casa, Iridia era a que mais parecia tensa com isso. Apesar de ter conseguido um trabalho como Receptora por alguns dias, Kayla ainda se sentia um pouco frustrada. Conseguiu resolver o problema do cliente rapidamente e já fora dispensada. Com o dinheiro, conseguiu comprar alguns remédios mais fortes, apesar de ainda não serem os antibióticos de que tanto precisava. Derek e Kianne foram proibidos de ir à escola depois que ficaram sabendo do pequeno surto de febre glacial que havia surgido na casa dos Evans. O pai há tempos não podia ir trabalhar, e como Iridia era quem passava mais tempo com as crianças dentro de casa, era mais propensa a ser a próxima a contrair a doença. A situação não estava nada fáci
Capítulo 4 ~~☾~~ (Kayla) Minha mãe foi dormir convencida de que partiria pela manhã. Eu, até algumas horas atrás, também estava convencida de que ela partiria. Porém, os pensamentos me fizeram mudar de ideia. Logo depois da conversa que a mamãe teve comigo e com os gêmeos, disfarçadamente, comecei a arrumar uma pequena bolsa com o que eu julguei ser necessário em uma “viagem”. Por pouco, Kianne não flagrou minha suspeita movimentação, mas ela passou e foi para a cama. Apesar de ter arrumado essa bolsa com um certo tipo de convicção, foi mais por impulso. Parecia surreal demais me ver indo para o castelo. Parecia um pensamento distante. Porém, a deixei debaixo da cama, ainda arrumada. A cama de Derek era a única de solteiro ali no quarto. Kianne e eu dividíamos uma de casal na outra extremidade. E era ali que eu me encontrava no momento, escutando algo que estava cortando meu coração. Por conta da proximidade dos quartos, eu conseguia ouvir perfeitamente a tosse in
Capítulo 5 ~~☾~~ (Kayla) Enquanto o carro passava por lugares movimentados, comecei a tentar adivinhar quem era o quê. Apesar de todos terem aparências humanas, era fácil detectar determinada linhagem entremeio a eles. Uma mulher sentada bem afastada do restante de um grupo de pessoas praticamente entregava que ela era uma Receptora. Um outro homem mais à frente fazia questão de mostrar sua força descomunal para a moça ao seu lado, o que entregava que ele era um Transformador classificado como mutante. Bom, de resto era simples. Historiadores... Historiadores por toda parte. Alpha era sua cidade de origem. Comecei a me sentir nauseada ao perceber que ficaria rodeada deles por um bom tempo. Estava tão distraída tentando fazer essa agonia passar, que quase não notei quando o castelo se fez presente. E olha que não era uma estrutura fácil de ignorar. Nem fazia ideia da extensão daquilo tudo, mas a cor creme tomava conta de boa parte das torr
Capítulo 6 ~~☾~~ (Kayla) À noite, quem trouxe meu jantar foi a Dawn. Forcei-me a comer, apesar de estar com o estômago um pouco embrulhado e com um nó na garganta. Será que as pessoas ficavam assim todas às vezes em que falavam com o rei? Sentia-me cansada, porém sem sono algum. Não me preocupei em tirar o vestido e nem em averiguar algumas das camisolas dobradas nas gavetas do armário. Simplesmente puxei o cobertor até a cabeça e fechei os olhos. Algumas pessoas pensam que o dom de um Receptor é um simples estalar de dedos e tudo se resolve. A questão é que conseguimos enxergar detalhes que muitas vezes passam despercebidos pelas outras Linhagens, mas, mesmo assim, leva tempo até que consigamos achar uma solução. Não somos isentos de falhas. Se fosse fácil assim, nenhum Receptor estaria passando fome no mundo. Pensar assim me faz imediatamente lembrar da minha família. Teve um tempo que Kianne e Derek “criaram” a teoria de que se fi
Capítulo 7 ~~☾~~ (Kayla) Tomar café com a Família Real foi mais tranquilo da segunda vez. O rei não estava esperando nenhum convidado, então se juntou à interação com a família. A rainha até tentou me colocar no assunto, mas eu não podia fazer mais do que assentir com a cabeça e, vez ou outra, sorrir. Ao acabar, dei um jeito de me escapulir para o jardim. Queria mais um tempo sozinha antes do almoço e da primeira sessão com o príncipe. Noite passada, Dawn veio até meu quarto avisar que o rei só conseguiria entregar as perguntas hoje. Alegou ter tido um imprevisto, então eu não fazia ideia das perguntas que ele tinha autorizado. Mas já estava acostumada com esse tipo de “susto". Era só mostrar ao príncipe e esperar ele responder. O clima estava fresco, e tinha certeza que teria me arrependido de ter colocado esse vestido se eu não fosse acostumada com o tempo frio de Alathea. Vi um banco de jardim bem abaixo do sol. Fui até lá e
Capítulo 8 ~~☾~~ (Kayla) Não posso dizer que estava animada pela próxima sessão com o príncipe... Até porque não estava. Será que ele ficaria insistindo novamente no quesito da minha fala? Esperava que não. Só iria dificultar as coisas. Como foi a primeira sessão, não consegui nada revelador o suficiente com o bloqueio que o príncipe tinha com o dom, então não precisei solicitar novas perguntas. Também usaria algumas pertinentes que ainda estavam naquela lista. Bocejei pela quinta vez. Havia sido acordada bem cedo pela Dawn, que trouxe o restante dos meus vestidos. Diante do meu olhar assustado pela rapidez com que foram feitos, ela explicou: — O castelo dispõe de máquinas de costura automáticas. É só colocar as instruções do vestido a ser feito. Assenti com a cabeça mesmo ainda estando impressionada. E, aproveitando a chegada dos vestidos, peguei um deles para me juntar à Família Real no café da manhã. El
Capítulo 9 ~~☾~~ (Kayla) Não sei por quanto tempo a Dawn ficou naquele abraço, mas, quando se soltou, disse que precisava ir. Não a impedi. Sentei-me na cama enquanto tirava os sapatos. Sentia-me cansada sem ao menos ter feito esforço físico. Puxei um travesseiro para acomodar minha cabeça e fiquei por ali mesmo. Acabei caindo no sono em algum momento e acordei mais tarde com batidas incessantes na porta. Levantei-me ainda meio sonolenta e abri. Era a Srta. Johnson. — O correio vai chegar pela manhã. Pode escrever uma carta para que possamos enviá-la a sua família. Se eles quiserem, podem enviar uma resposta. — Falou rapidamente, e eu mal consegui conter minha empolgação. Aquela notícia tinha varrido qualquer sono de mim. — Ah, e a carta não será analisada para que tenha uma privacidade com sua família, então não escreva nenhuma besteira da qual vá se arrepender. Assenti como agradecimento pelo aviso e