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Ato 1 – Vida de Pirata

Algumas vezes as pessoas desejam que suas vidas deem voltas. No trabalho, com a família ou no relacionamento. Mudanças são engrenagens que nos mantêm vivos, nos liberam do tédio. A forte esperança de que tudo vai mudar nos torna pessoas melhores. Porém, quando todas as esperanças nos são arrancadas e a vida parece não fazer mais sentido, precisamos de uma mudança abrupta em nossa existência, mesmo que seja uma daquelas que nunca antes sequer desejamos ou imaginamos ser possível.

Não era novidade alguma o que ele iria fazer ao chegar em seu apartamento. Suado, encharcado, sujo, exasperado e sangrando por um projétil que lhe arranhara o rosto, perto dos olhos num tom verde-folha acastanhado, logo acima da bochecha e abaixo das olheiras que começavam a se formar com o passar dos meses, Peterson, ou melhor, Peter, como era chamado por seus companheiros, saiu do elevador. Ele atravessou o limpo e refinado corredor do prédio onde tinha um apartamento. Não que ele morasse ali, mas morou no passado. O corpo sujo do homem formava um contraste gritante com o recinto por onde passava, que levava à porta de um luxuoso apartamento no centro da cidade irlandesa de Bray, no condado de Wicklow.

O homem encharcado e cansado estava andando com os olhos verdes entreabertos. O rosto de traços quadrados, não muito marcantes, tinha a expressão amargurada. O maxilar carregava a barba que crescia alinhada ao rosto. Ele se permitia deixar um cavanhaque curto e claro. Peter trazia uma profunda agonia cravada no rosto em praticamente todas as expressões. Os lábios do rapaz eram comuns, porém, quando vistos no conjunto do rosto, ficavam atraentes e eram de boas proporções. O cabelo castanho-avermelhado e liso na altura das orelhas estava completamente bagunçado. O suor lhe colava a camisa branca no peitoral malhado quando ele parou em frente à porta ao fim do corredor do prédio.

As mãos trêmulas movimentam o molho de chaves com pressa, mas sem sucesso em encontrar aquela determinada chave que precisava no momento. Estaria ele sendo observado por satélite? Não era possível: ninguém sabia a localização da antiga morada dele. Além do mais, os despistara há horas, ele tinha certeza. De qualquer forma, ele ainda poderia estar sendo perseguido?

Quando finalmente conseguiu encontrar a chave do apartamento no meio do atilho, o celular niquelado de Peter tocou uma melodia do tempo dos corsários. Não, no momento ele não queria um copo de rum como a música oferecia, ainda mais vindo de quem o identificador de chamadas acusava na tela: era o número do celular de Phil, um comparsa e amigo de infância. Irritado, Peter atendeu o telefone, gritando em uma voz mal-educada e irritadiça que ecoou pelo corredor requintado vazio. Era um grito de raiva, mas, ao mesmo tempo, aquele eco se mostrava extremamente preocupado:

– Phil?!

– Pete? – do outro lado da linha, era uma voz feminina e melodiosa. Tratava-se da esposa de Phil, Bevin.

– Bevin? – respondeu Peter, sobressaltado, arrependendo-se por ter gritado ao atender: esquecera-se que Phil deixara o celular em casa naquela manhã.

– Pete, onde está Philip?

– Bevin, é uma longa história.

– Estou no píer. A lancha dele não está aqui.

Agora que sabia que o amigo pegara a lancha, Peterson conseguiu deduzir mais ou menos a localização de Phil, mas esta não era hora de Bevin compartilhar dessa verdade com Peter. Debilmente, ele tentou disfarçar o que estava acontecendo, dizendo estas palavras enquanto enfiava a chave no trinco e girava, abrindo a grande, branca, alta e grossa porta do apartamento:

– Bevin, a bateria do meu celul... – e ele desligou na cara dela.

Peter finalizou a ligação nervoso, afundando o dedo na touch screen repetidas vezes, mas o celular travou enquanto a porta se abria na escuridão do apartamento. Queria tanto que aquela coisa desligasse que jogou o celular novinho contra a parede do saguão do apartamento, coberta por um granito alvo que refletia a tímida luz vinda do corredor do prédio. O granito da parede continuou intacto, velando o celular quebrado no chão.

Peter atravessa a entrada, tranca a porta, desvia da parede de granito e alcança a sala de um apartamento amplo e escurecido, batendo apressadamente a mão nos interruptores, acionando os belíssimos lustres de cristal que, do alto, iluminaram o salão de estar e o próprio saguão de uma alvura sem igual. A sala, cheia de itens tecnológicos em tons prata e preto. Paredes, inviolavelmente brancas. Uma delas tinha uma textura grossa ao toque, como se várias gotas de chuva ácida tivessem passado por ali, uma outra era coberta de espelhos que davam a impressão de aumentar o tamanho do local, como se o mesmo já não fosse suficientemente grande.

Os estofados eram de couro legítimo num tom creme e aconchegante. Pés quadrados niquelados e almofadas brancas como flocos de neve caíam suavemente sobre eles, três de cada lado em cada um dos enormes sofás de quatro lugares, posicionadas milimetricamente apoiadas no encosto do assento, uma ao lado da outra em um ângulo torto propositadamente.

Um tapete de urso polar se estendia no meio da sala, entre os sofás que ficavam um defronte ao outro, a qual pertencera a um urso que, teoricamente, o próprio Peter caçara em uma viagem que fez com os amigos à região ártica. Na verdade, fora Phil quem fizera a maior parte da tarefa, perseguira aquele urso como um caçador de verdade, mas insistiu em presentear Peter com a pele do animal, pois Bevin era ecologicamente correta demais para aceitar que o marido matara um urso polar, então Phil sempre concedia as honras ao amigo, possivelmente para fugir de uma surra da geniosa esposa.

Uma mesa de centro ficava sobre o tapete de pele de urso e era um cubo transparente de acrílico com um simples e limpo cinzeiro de cristal em cima. Além da parede com espelhos, havia outra bem singular em meio às alvas, uma que não era bem uma parede, mas sim um enorme aquário com pedras multicoloridas ao fundo. Na água límpida, um pequeno e frágil peixinho dourado nadava solitariamente, de cauda volumosa, quase do mesmo tamanho que o corpo, tão laranja que beirava ao vermelho intenso.

Peter segurou a forte raiva que sentia e encarou o pobrezinho. O peixe movimentou-se em resposta: deu um giro no aquário como quem desiste do rumo que havia tomado anteriormente e sobe lá do fundo do aquário até a altura dos olhos de Peter. Parecia conversar com ele num movimento circular indicativo de onde estava a comida, como se aquele peixinho dourado fosse mesmo inteligente e estivesse falando que sentia fome. O homem pegou um potinho amarelo, abriu o aquário e despejou um pouco de ração para o pequeno animal que tinha uma casa relativamente grande para si, assim como o próprio Peter.

Após alimentar o peixe, Peter respirou mais aliviado: talvez estivesse, definitivamente, em segurança. Devagar, ele seguiu pelo corredor do apartamento, um longo, largo, fracamente iluminado, com algumas portas, quase todas fechadas. Os pés encharcados roçavam contra as paredes do coturno que, por sua vez, sujava o soalho carpetado em tom bege. Dessa forma, o andar cansado e pesaroso dele emitia um barulho engraçado ao mesmo tempo em que molhava toda a casa, deixando o rastro do seu dono. Ele puxou a camisa branca, agora transparente e colada ao peitoral devido à quantidade de água que o tecido fino carregava em si, tentando desgrudá-la do torso malhado que, à meia luz do corredor, parecia um sofá cheio de gomos particularmente convidativos.

Estava farto de tudo aquilo. Reclamava mentalmente, imaginando até quando Murphy iria continuar colocando-os nas enrascadas que ele inventava. Desta vez ele quase perdera a vida. Tudo bem que Peter não era muito apegado à vida, mas há formas mais honrosas de se morrer do que abatendo lanchas, trocando tiros e fugindo no Mar da Irlanda.

Os passos de Peter guiaram-no para o quarto ao final do corredor: lugar aconchegante com formas circulares de gesso serpeando pelo teto, como se fossem degraus baixos decorados por dentro com luzes neon azuis. Sobre a cama box havia uma quantidade volumosa de travesseiros combinando com a colcha preta impecavelmente esticada como se não fosse tocada havia muito tempo. Encharcado, ele se deitou naquele quarto que para muitos parecia confortabilíssimo, mas para ele parecia uma prisão. Uma prisão da alma.

No teto, ele viu o próprio reflexo no espelho envolto de luz azul. Aquela mesma luz azul que ela tanto insistira para ser instalada ali. Ele fitou os cabelos castanho-avermelhados arrepiados para o alto e observou os próprios olhos no reflexo, os quais nunca estiveram num verde-folha seca tão intenso, e só agora se dera conta da ferida na bochecha esquerda. Ele elevou a mão até o ferimento que agora ardia muito mais pelo simples fato do cérebro de Peter ter a visão da existência daquilo misturado à presença da água do mar que ainda umedecia a ponta dos dedos que tocaram a ferida.

A bala passara mais próxima do que ele pensou. O que ele estava fazendo? Ele tinha uma casa confortável, muito dinheiro, teria a mulher que quisesse, então... por que insistia naquela vida? Os trabalhos não eram mais os mesmos, tudo estava ficando cada vez mais perigoso... mais ilegal... como se por acaso existissem níveis de ilegalidade. Então... por que motivo continuar naquela vida de pirataria?

Ele não queria assumir, mas sabia o motivo. A única companhia de Peter era aquele peixe dourado, Melody, que ele mesmo dera de aniversário para sua finada filha, Eileen. Sempre que ele via aquele peixe, aquela casa, aqueles móveis e a cama de casal, vinha-lhe uma sensação lúgubre de nostalgia. Peterson não gostava de voltar para casa, entretanto aquele era o único lugar onde podia se esconder dos piratas inimigos.

Sim, piratas. Aquela era sua vida. Não, eles não eram piratas comuns. Peter, Phil, Murphy e Cody. Amigos de infância curiosos e aventureiros que um dia se viram totalmente presos ao mundo do crime. No início da carreira, eles eram honrados caçadores de tesouros no fundo do mar. Exploradores, apenas. Às vezes conseguiam achar embarcações valiosas, vendiam as peças e joias que encontravam em navios submersos, doavam alguns para museus e se consideravam verdadeiros piratas que agiam dentro da lei. Eram apenas caçadores de tesouros que se auto titulavam piratas...

Entretanto, agora eles pisaram fora da linha tênue entre legalidade e ilegalidade, licitude e ilicitude, certo e errado. Envolveram-se tanto que não havia mais saída. Peter já se acostumara tanto à vida aventureira de pirata que não se dera conta do perigo em que se encontrava. Talvez os amigos estivessem colocando a vida de suas respectivas famílias em evidência mais que o necessário. Agora, além de ultrapassarem a linha da ilegalidade, atravessaram aquela do que era razoável e do que era insano: estavam prestes a ir direto para o outro lado da fronteira da vida. Claro que era tudo culpa de Phil e, principalmente, de Murphy.

As pálpebras de Peter se fecharam e os pensamentos do pirata voaram longe, ou melhor, talvez nem tão longe assim, geograficamente falando. A mente do homem vagueou até o pub da Strand Road, no hotel The Martello, nomeado em homenagem à Martello Tower de Bray que Bono comprou certa vez. Coincidentemente, Bono era o cantor favorito de Anne. Tudo era uma coincidência enorme, pois foi naquele bar que Peter conheceu sua finada esposa, sua amada, sua musa, sua princesa, Anne. Entretanto, naquele dia ele não tinha nada de príncipe encantado, nada de cavalo branco, nada de armadura brilhante... Na época, ele não fazia o tipo “príncipe”.

Naquela noite, Peterson estava disposto a beber até morrer: acabara de perder o emprego e chamou Phil para compartilhar a derrota. O som das pessoas comendo e conversando enchia o ambiente de forma animada, talheres roçando nos pratos, taças colidindo refinadamente, mulheres e homens falando sobre o trabalho daquela sexta-feira e contando planos para o final de semana. Porém o clima no fundo do bar era desanimador.

No último assento ao fundo, num sofá encostado à parede, estava Peter. Desanimado, derrotado, a cabeça entre as mãos, uma delas segurando um cigarro apagado, pensando se iria voltar a fumar ou não. Já havia enxotado duas garçonetes só com o olhar de fúria doentia que lhes lançou quando apenas estavam tentando avisar que aquela área era destinada a não fumantes.

Após afugentar uma terceira garçonete picotando o cigarro com as mãos e jogando para cima os pedaços de fumo, os olhos de Peter conectaram-se por alguns segundos com os de uma mulher sentada numa alta cadeira junto ao bar. O que ele viu, mesmo que por um momento fugaz, foi a imagem de alguém que, mal sabia ele, nunca esqueceria: uma bela mulher, cabelos ruivos levemente encaracolados com um caimento natural nos ombros despidos, olhos cor de mel cheios de vida, um olhar pesada e requintadamente maquiado coberto de audácia na direção de Peter, um sorriso marcado pelo atrevimento dos dentes que mordiam o lábio inferior, a boca colorida por um batom vermelho, que se soltou em uma gostosa risada devido à atitude de Peter para com a garçonete.

Os olhares desconectaram-se. Ele alternou o olhar entre a própria mesa, a mulher, o chão e depois fitou a bebida dela: laranja em baixo, vermelho acerejado em cima, decorada com três cerejas em um palito ao lado de uma fatia fina de laranja e um canudo transparente que a delicada mão da mulher segurava balançando tão devagar que era um movimento quase imperceptível. Foi quando Philip entrou bem na frente da linha de visão do depressivo Peterson.

– Pete, desculpe, Bevin estava tomando banho e eu precisei trocar a fralda do Owen enquanto isso – disse Phil, oferecendo a mão para cumprimentar Peterson que, por sua vez, enojado com a notícia, dispensou o cumprimento: apenas retirou os cotovelos da mesa e esperou que o amigo se sentasse junto a ele. Phil logo o fez, continuando a falar – eu sinto muito pelo seu emprego.

– Besteira. Me pague uma bebida forte. Será uma bela recompensa.

– Aonde estão Murphy e Cody numa hora dessas? – disse Phil, chamando uma garçonete, que olhou carrancuda e deu as costas para ele.

Phil ficou sem entender a reação da mulher e ajeitou a camisa social branca, arregaçando as mangas compridas e abrindo os dois primeiros botões revelando parte do peito esbelto. Os dedos passaram por entre os cabelos curtos e lisos, castanho-claros, e depois foram segurar o queixo coberto da barba por fazer enquanto ouvia a resposta do amigo.

– Cody está grudado na Lan House com a legião dele numa batalha online de um RPG qualquer e Murphy está gastando dinheiro com mulheres em algum lugar por aí – disse Peter, tendo certeza apenas da localização de Cody, apesar de que a de Murphy, mesmo que dita aleatoriamente, tinha noventa e sete por cento de chance de estar correta. Os outros três por cento era: dormindo.

– Murphy combinou comigo que viria – Phil agora estava com um semblante indagador.

– Você conhece aquele idiota – suspirou Peter com fraqueza.

– Certo... então eu mesmo falo.

– Aceitam algo, cavalheiros? – disse uma garçonete ao chegar, esta era diferente das outras que Peter havia tratado mal anteriormente.

– Uma garrafa de cerveja e dois cop...

– Um dry Martini, por favor. Duplo. Não, triplo. Digo, me dê a garrafa de gin logo de uma vez – pediu Peter, derrotado, interrompendo o pedido brando do amigo.

– Certo – concordou Phil. A voz soou baixa e vaga, meio que ao acaso, olhando surpreso para Peter. – Uma porção de fritas, um Martini duplo e uma taça de sidra, por favor – trocou o pedido, a garçonete anotou e saiu. Philip se empertigou na mesa, olhou bem no rosto jovem de traços quadrados de Peter antes de tocar no assunto. – Murphy está com umas ideias. Coisa boa. Quer dizer... Sinceramente, Peter, você sabe que seu trabalho no porto sempre foi uma droga, carregar navios com contêineres... é simplesmente tudo muito entediante.

– Assim você me anima – ao responder isso os olhos de Peter eram de um tédio completo e absoluto. Realmente o trabalho no porto é uma penúria, mas não era necessário que Phil ficasse enfatizando isso, mesmo que fosse verdade.

– Peter você nasceu para navegar, todos sabem disso! – enfatizou Phil, batendo a mão na mesa animadamente. – Digo, quando você era bebê, seu móbile tinha navios! Seu pai foi um almirante famoso da marinha irlandesa, você tem conhecimentos navais invejáveis e sabe disso, não adianta me olhar com essa cara.

Peterson fazia um movimento negativo com a cabeça, ficando um pouco cabisbaixo, e girava os olhos na direção do amigo, lendo-o. Ele já sabia que quando Phil falava naquele tom visionário iria pedir alguma coisa. Peter tinha certeza disso, só não sabia ainda de que se tratava o pedido.

– Diga logo o que você e Murphy querem Phil, antes que eu desista de lhe ouvir e me entregue completamente ao Martini que está vindo – disse Peter, aturdido. Não gostava de ser conhecido como o filho do almirante Browne por isso que, agora lhe ocorrera, amava o trabalho sem graça e escondido no porto.

– Veja... – Phil deu um suspiro e fechou os olhos. Depois, chegou mais perto do amigo apoiando os cotovelos mais ao meio da mesa. – Você sabe muito sobre navegação. Cody é inteligente, pode aprender as coisas rápido e inventar métodos para que eu aprenda mais rapidamente ainda. Murphy tem facilidade de fazer contatos e conversar com pessoas.

Neste momento a garçonete chegou com as bebidas, pousando-as na mesa, entretanto os amigos não tocaram nas taças, tampouco agradeceram a moça. Estavam olhando um ao outro. Peter tentou entender o que estava acontecendo ali e, após a saída da garçonete, perguntou:

– Onde você quer chegar?

– Escute... Murphy está com uns contatos em vários locais, ele já tem tudo planejado. Faremos uma equipe que procura navios encalhados no fundo do mar. Esses navios têm tesouros perdidos que pertencem a quem os encontrar. Ficaremos ricos! – Phil parecia empolgado, mas a energia da empolgação dele não foi transmitida a Peter, que olhava o amigo sem interesse algum. Peter pegou o Martini balançando negativamente a cabeça, bebendo-o. Phil continua:

– Olha, Peter, eu sei o que você está pensando. Eu mesmo não sou muito adepto de ideias insanamente empreendedoras e megalomaníacas do Murphy, mas desta vez, desta vez ele está muito “pé no chão”, como dizem. É concreto. Eu examinei tudo, documentos, ideias, liguei para os contatos e vi que é real. Existe mesmo gente pagando pessoas para que recuperem relíquias perdidas no fundo do mar. Até mesmo governos de países pagam por isso, a fim de restaurar a própria história.

Peter terminou de apreciar um gole do Martini. Seus olhos não queriam encarar o rosto empolgado de Phil então, sem perceber, olhou para aquela mulher ruiva por alguns instantes. Estranhamente, ela parecia prestar atenção no que acontecia na mesa dele. Peter achou que talvez eles estivessem incomodando a moça.

Delicadamente, ela se levantou com a bebida na mão e, surpreendentemente, foi na direção da mesa dos dois amigos. Phil estava de costas e não viu a aproximação da moça, apenas tomou a taça de sidra e bebeu devagar o conteúdo. O corpo da mulher serpeou pelo caminho, usava jeans azul marinho, botas cano alto de couro tom de café, salto alto e bico fino. Uma blusa negra de um tecido leve com mangas do meio dos braços para baixo guarnecia o torso da moça, deixando à mostra o pescoço, clavículas e ombros delicados e alvos. As mangas longas encobriam os braços até a altura dos pulsos. Mais de perto, possuía um perfume fresco. Com muita educação, ela abordou os rapazes.

– Desculpem-me, cavalheiros. Posso sentar com vocês? Não pude evitar, por acaso ouvi a conversa. Vocês são caçadores de tesouros?

Phil olhou para a estonteante mulher e levantou-se, pegando de supetão a delicada mão da moça, que estava pousada em sua fina cintura, cumprimentando-a mesmo que ela não tivesse oferecido o cumprimento.

– Sim, somos – disse, sacudindo a mão dela rapidamente. A bebida na outra mão da mulher só não derramou porque o copo estava pela metade.

– Não, não somos – interveio Peter, olhando irritado para Phil.

– Não escute o que ele diz, está irritado porque perdeu o emprego – Phil sorriu sem graça, oferecendo uma cadeira para a mulher sentar, entretanto ela sentou no confortável sofá ao lado de Peter.

– Sinto muito pelo seu emprego – disse a mulher, uma voz macia e caridosa.

A delicada mão dela pousou o restante da bebida gelada, que ela já trazia na mão, sobre a mesa, abandonando-a, tocando a cabeça quentinha de Peter, passando as unhas delicada, casual e rapidamente por entre os cabelos curtos castanho-avermelhados levemente espetados de Peter, dando um passeio até a nuca, segurando-a com firmeza, depois acariciando fugazmente as costas dele sobre a camisa preta, velha e empoeirada que usava no ex-serviço. Foi tudo bem rápido e ela disse:

– Espero que os negócios de caça ao tesouro prosperem...

Peter não ouviu os desejos de prosperidade; estava tentando segurar o arrepio extasiante que invadiu o corpo dele ao toque rápido e casual da mulher. Phil observou aquela aproximação entre os dois e ficou sem ação. Peter não era um sujeito que tinha muita sorte com as mulheres, mas parece que o pessoal da distribuição dos bilhetes de azar tinha tirado férias bem na hora em que Peterson era o próximo da fila. Agora era a hora da sorte e ela vinha a galope. Sorte não somente quanto à beleza da moça...

– Bom, andei por aí por muito tempo procurando e bem quando eu desisto... Encontro vocês! Eu tenho um serviço para vocês. Caso estejam interessados, é claro.

– Sim, estamos! – disse Phil, num sobressalto, pois ainda estava impressionado como aquilo era uma coincidência tremenda.

– Meu nome é Anne Devoy, muito prazer. Meus avós são colecionadores de peças raras e antigas, ultimamente eles têm procurado ouro antigo.

– Ouro sempre é ouro, antigo ou não – interrompeu Phil, bebendo mais um gole da sidra que tinha nas mãos. – Prossiga... – ele gesticulou de acordo.

– Bem... – a mulher olhou para Phil, meio desconcertada com a interrupção, mas continuou a dizer – Eles estão de olho em uma embarcação do rei Salomão, sabe, aquele rei que ia partir o bebê para encontrar a verdadeira mãe?

Phil engoliu em seco preocupando-se mentalmente com seu filho Owen enquanto Peter bebeu mais um gole de Martini, pensando em quanto dinheiro ainda tinha no bolso para pagar a próxima dose; agora, que perdera o emprego, precisava se preocupar com esse tipo de coisa.

Ambos conheciam aquela história na qual a mãe verdadeira preferiria ver o próprio filho nas mãos de outra mulher a vê-lo morto. Apenas Phil sacudiu a cabeça afirmativamente enquanto Peter olhou aturdido para a bela ruiva que estava ali com eles.

– Então... De acordo com escritos antigos, igualmente de acordo com a Bíblia Sagrada, foi ele quem construiu o Templo de Jerusalém. Sabe? Meus avós são colecionadores. São também católicos fervorosos e, estudando a Bíblia, n’O Primeiro Livro dos Reis, me mostraram que os navios do rei Salomão foram a Ofir e trouxeram de lá quatrocentos e vinte talentos de ouro. Hoje, como certamente vocês sabem, acredita-se que Ofir seja a Austrália e também se acredita que alguns desses navios carregados com muitos talentos de ouro afundaram durante a rota de Ofir a Eziom-Geber. Agora eles querem, de todo jeito, descobrir mais sobre isso e colecionar todo este ouro – ela sorriu. – Na verdade, apenas algumas peças e eles já ficariam felizes.

Os olhos de Phil estavam vidrados na mulher misteriosa enquanto os de Peter vidraram no Martini. Houve um silêncio, que ficou um pouco constrangedor. Phil nem fazia ideia de quanto valia um talento, mas era ouro e ouro atualmente vale bastante. O importante a se descobrir agora era o peso.

– E então? Aceitam o trabalho?

– Na realidade, são apenas lendas – Peter interveio. – Na época era comum os reis dizerem que transportavam mais do que na realidade existia nas embarcações, provavelmente para alimentar os próprios egos. Além do mais, trata-se de uma história bíblica então... não, obrigado – respondeu Peter friamente, emburrado, tomando mais um gole do Martini, recebendo um tapa na cabeça e derramando a bebida, reclamando na sequência – Hey!

– Meu amigo está fora de si, não ligue para o que ele diz! Sabe, Senhorita Devoy, ficaríamos honrados em aceitar o trabalho.

A mulher sorriu animada enquanto Peter lançou a ela um olhar furtivo e completamente desmotivado.

– Temos um acordo – ela sorriu esticando a mão para Peter e, prontamente, Phil se apressou em apertá-la, fechando o acordo entre eles.

Peter ainda lembrou de que toda aquela fortuna que ele tinha hoje era devido àquele aperto de mão entre seu melhor amigo e sua futura esposa. A busca foi um sucesso: embora não houvesse muito ouro, o navio que encontraram no fundo do Oceano Índico tinha muitos tesouros históricos. Ganharam uma porcentagem da preciosa quantia, o que foi suficiente para comprarem muitos equipamentos, lanchas e outros itens menos necessários.

O romance de Peter e Anne surgiu no fim daquela noite, quando a mulher e o pirata, durante longas e quentes horas, entregaram-se um ao outro, escondidos nas areias da praia de Bray. Anne acompanhou de perto o trabalho dos piratas durante as buscas que levaram alguns meses. Após algum tempo, Peter pediu Anne em casamento. Anne simplesmente aceitou e eles realmente foram felizes para sempre. Muito felizes.

Ela era uma mulher fascinante e cheia de segredos, além de bonita e carinhosa, qualidades essas que Peter jamais se cansou de elogiar. Mas agora ele perdera a beleza, o carinho, o fascínio; ele jamais descobriria todos os segredos de sua amada.

Não era essa a vida que ele desejava...

Peter acordou assustado: nem percebera que estava dormindo. O cabelo ruivo, já não tão curto quanto naquela lembrança, tinha as pontas espalhadas sobre a cama. O interfone tocou mais uma vez. De um salto, Peter se levantou, atravessou o apartamento até a cozinha, enorme, quase do tamanho da sala de estar, também com itens tecnológicos, eletrodomésticos enormes e armários para todos os lados. Era uma cozinha bem planejada em tons laranja, branco e prata, a luz do sol poente do fim da tarde de Bray invadia o recinto.

Peter atendeu o interfone. Em silêncio, aguardou “quem quer que fosse” falar a senha e escutou a voz de Phil:

– Lero-lero.

Peter não respondeu, apenas escutou Cody reclamar de a senha ser muito idiota e apertou o botão para que os amigos subissem. Como a maioria dos piratas, aqueles quatro andavam em bando e Peter não se assustou quando viu não dois, mas três homens adentrarem à sala, um de cada vez, pela porta que ele segurou aberta para recebê-los.

O primeiro a entrar foi Philip que, com o passar dos anos, cultivara uma barriga de tamanho médio devido ao casamento. É o que dizem: os casados sempre ficam barrigudos. O cabelo dele continuava castanho-claro, curto e liso: os fios brancos ainda não tinham surgido. O olhar de Phil tinha um brilho diferente, muito característico de um homem realizado. Ele trajava camisa branca comum, jeans azul claro comum e tênis branco comum, como era de costume.

Cody veio na sequência. O garoto era o mais magro dos piratas assim como o mais jovem dentre eles. Tinha cara de rato, cabelos ruivos curtos, brilhantes e encaracolados, olhos negros e sonhadores que pareciam olhar ininterruptamente para a lua. O nariz curto sempre estava entupido e isso se refletia na voz roufenha:

– Com licença, Peter... – disse educadamente ao entrar dando duas batidinhas no ombro do amigo, que retribuiu.

O garoto usava jeans larga, tênis surrado All Star na cor clássica, uma camisa preta com os seguintes dizeres silcados em branco: “I know H.T.M.L. (How to meet ladies)”. Uma camisa manga curta de flanela, xadrez, em tonalidades preta e vermelha, e uma mochila grande, pesada e preta completavam o “look” do jovem gênio.

Depois Murphy chegou. Ele era ligeiramente mais baixo que Cody, os cabelos lisos num castanho intenso, bastante escuro, ajeitados para frente e que rebeldemente desciam às sobrancelhas ligeiramente grossas posicionadas acima de um olhar castanho sempre estreito e de brilho astuto que encantaria até a mais fervorosa militante do movimento feminista. A boca sempre guardava um sorriso enviesado revelando os dentes da frente com um discreto vão por entre eles.

– Isso está nojento – disse Murphy, enfiando o dedo na ferida do rosto de Peter, que deu um ganido de dor e, de forma rebelde, retirou o rosto de perto da mão do amigo que, por sua vez, limpou o sangue do dedo na camisa branca de Peter, agora seca.

Murphy dependurou os óculos escuros na gola da própria camisa verde-exército. Ele usava calça jeans preta e botas de cano alto mal amarradas, na mesma tonalidade da calça. Carregava também uma pochete de perna à prova d’água, preta, onde levava uma arma menor e outros itens de emergência para as “missões”.

Os três estavam bem arrumados se comparados ao estado de Peter, que nem ao menos tomara um banho desde que chegara. Nem mesmo lavara o rosto para limpar a ferida do tiro que passara raspando por ele.

Enquanto Peter fechava a porta, Cody foi cumprimentar Melody, o peixe dourado de Peter. Philip deu a volta pela sala para se sentar num dos dois sofás e Murphy saltou sobre o encosto do outro, caindo confortavelmente deitado nele, cruzando os pés sobre o braço do estofado e fazendo uma busca criteriosa pelo controle remoto por entre as almofadas brancas.

– Não, o controle fica ali, sobre a lareira – advertiu Phil, grande conhecedor da casa de Peter: ele e a esposa faziam visitas frequentes ao local antes da morte de Anne e Eileen.

Peter trancou a porta, foi em direção a Phil e, no caminho, empurrou os pés de Murphy para o chão.

– Tire isso daí antes que eu mesmo arranque seus pés.

– Ih, cara, relaxa, relaxa... – disse Murphy retirando as botas de cano alto e voltando a pisar, com meias brancas, no sofá claro – ‘Tá pronto pra hoje à noite?

– Hoje à noite? – disse Peter, exaltado. – Murphy! Você pirou de vez?

Peter tentou descobrir um argumento no olhar de Phil, mas o amigo não correspondeu. Infelizmente, Phil sempre tinha a melhor das desculpas: ele precisava do trabalho, pois era de onde tirava o sustento da família. Afinal, tinha dois filhos e esposa.

– Aliás, por que não nos encontramos no QG? – perguntou Peter. Murphy e Phil trocaram olhares significativos. Aquele resolveu explicar:

– O QG explodiu. Pegou fogo. Puf! – Murphy fazia um movimento de chamas com as mãos. Os dedos erguidos movimentavam rapidamente para frente e para trás e ele falava sem nenhum pesar nas palavras que proferia, como se contasse que fora comprar batatas na feira da esquina.

O silêncio reinou e foi fulminante. Peter sabia exatamente que Murphy estava distorcendo as palavras e que na realidade o quartel-general deles não explodiu, mas sim explodiram o lugar.

– Quem?

– Os clientes – disse Phil, interrompendo o olhar maníaco de Murphy, que começava a representar a fumaça da explosão movimentando no ar uma das almofadas do sofá.

Peter, nervoso, arrancou a almofada da mão de Murphy e anunciou:

– Estou fora – ele jogou a almofada no chão e saltou sobre a mesma, indo na direção do corredor.

– O quê? – perguntaram Murphy e Phil, em coro.

– Não, espera aí! – disse Murphy levantando-se do sofá e segurando Peter pelo braço. – Você não pode sair agora, cara. Temos clientes! Vamos ser mortos se não fizermos as missões!

– Não, Murphy – disse Peter com frieza, puxando o braço de modo a se soltar do amigo, falando com eloquência apontando no peito dele enquanto dizia –, você  tem clientes e você vai ser morto se não fizer as suas missões.

– Peter... – tenta argumentar Phil, mas Peter não permite.

– Eu estou farto disso! Farto! Eu já tenho propriedades, dinheiro, ações na bolsa de valores... já abri mão de muitas coisas por essa porcaria de grupo pirata. Abri mão de coisas que nunca mais terei a oportunidade de ter novamente e... Não vou abrir mão do que me restou: a minha própria e estúpida vida! Não preciso mais trabalhar para você, Murphy. Não assinei nenhum contrato, nada vai acontecer comigo se eu sair. Vocês que se virem e arrumem outra pessoa. Estou fora.

Peter retomou o rumo em direção ao corredor, mas deu de cara com Cody: ele estava segurando um estetoscópio nas orelhas e pousou a outra ponta do instrumento sobre o vidro do aquário de Melody. O rapaz observava os movimentos do peixe e parecia escutar atentamente ao estetoscópio. A cena foi tão bizarra que Peter ficou sem ação, parou ali, confuso, de modo que Murphy e Phil puderam alcançá-lo.

– Peter, venha cá, vamos conversar sobre isso – tentou Phil. Peter finalmente lhe deu ouvidos. O amigo sabia que aquela iria ser a última oportunidade para argumentar com Peter, então tinha que convencê-lo de uma só vez. – Veja, somos uma equipe, cada um de nós faz uma coisa, Pete. Sem você o grupo se desmancha.

– Pois é, Phil, mas eu quase acabei morto hoje mais cedo, o que quer dizer que se eu saísse do grupo por morte ele iria se desmanchar do mesmo jeito. Então por que me preocupar? Por acaso a saída por morte não tem problema enquanto a saída voluntária é rechaçada?

– Rechaçada? Que porcaria de palavra é essa? Aliás, desde quando ela está no seu... vocabulário... – interrompeu Murphy, Phil e Peter o olharam repreensivos e ele foi se calando. Phil tentou novamente.

– Não é isso, não é isso. É que... Bom, você é insubstituível! E, cara, se você sair nosso grupo já era! E me diz onde que eu vou arrumar um trabalho decente pra sustentar...

– Ah, por favor, Phil! – interrompeu Peter, dando uma gargalhada cínica. – E este trabalho por um acaso é decente?

– Não se trata disso! Eu me refiro à grana!

– Venda o carro do ano, as joias, a casa imensa em Londres, a lancha. Por falar em lancha... sua mulher me ligou mais cedo, ela estava furiosa.

– É, eu já conversei com ela – o olhar de Phil o acusava: Bevin brigara feio com ele e o motivo vinha logo na sequência nas palavras de Peter:

– Aposto que ela concorda comigo. Ela não iria se opor à venda dessas coisas inúteis que vocês têm em troca de uma vida de paz e tranquilidade...

– Mas já estamos enterrados até o pescoço com esses trabalhos e com esses caras! Se sairmos a morte será instantânea!

– Ah, Phil! Não fale isso! Você sabe muito bem que com a grana podemos morar longe o bastante dos olhos e das armas deles!

– Mas não da influência deles.

– Ah, cale a boca!

– Cale a boca você. Você está perdendo os argumentos, Peterson. Aceite: não há saída para nós.

– Não há nada que eu tenha de aceitar! Phil! Eu não importo em usar meus conhecimentos navais para procurar tesouros no fundo do mar junto com meus amigos, o que eu me importo é no que esse serviço se tornou. Somos piratas. Piratas de verdade!

– É, e somos os melhores! – disse Phil, animado.

– E você se orgulha disso? – contrapôs Peter, claramente irritado. Phil havia perdido o juízo? – Somos criminosos!

– Peter... Acorda! – disse Murphy, quebrando o silêncio em que estava e irrompendo na conversa, tentando a chantagem que sempre funcionava com todo mundo: a chantagem monetária. – Você está louco? Lembra da missão de hoje? São diamantes!

– Eu não quero diamantes! Eu só quero minha antiga vida de volta! – gritou Peter aprumando o corpo.

O grito saiu alto porque Peter estava sem paciência alguma e foi um berro tão excessivo que Cody tremeu com o som propagado até o ouvido do garoto através do poderoso estetoscópio que usava. Ele tirou o aparelho das orelhas, pousando-o apoiado na nuca, e perguntou:

Hey, o que houve?

– O Peter ‘tá pulando fora do trabalho! – disse Murphy, irritado.

– O quê? Mas por quê? – Cody, incrédulo, tentou compreender os motivos.

– Peter, por favor, seja racional – disse Phil, tentando ajudar. – Veja bem, você é o cara que mais tem a manha em navegação... sem você no grupo estamos fritos.

– Fato – disse Cody, pegando o bonde andando.

– Cara, você não vai querer ver seus amigos morrerem, vai? – completou Phil.

– É, Peter. Não vai querer ver seus amigos mortos por sua causa, mortos como sua mulher e sua filha! – disse Murphy, sem pensar.

O clima ficou pesado instantaneamente. É difícil até explicar o que exatamente se passou na cabeça de Peter naquele instante, mas certo é que aquilo o fez cerrar os punhos violentamente.

Cody e Phil apenas saíram do caminho enquanto Peter fitava Murphy furiosamente. Não demorou um segundo e Peter enfiou um soco bem no olho esquerdo de Murphy, que cambaleou e caiu para trás. Eles se engalfinharam no chão gritando um com o outro aos socos enquanto Cody e Phil tentavam apartar a briga.

A lancha cortava o mar da praia de Bray em direção a Dublin. A poderosa embarcação prateada levava quatro homens. As camisas e cabelos deles sacudiam ao sabor do vento noturno enquanto a lancha deixava um rastro branco nas águas escurecidas pela noite. A luz da lua cheia banhava as águas juntamente com as luzes da cidade ao longe, iluminando o caminho. Navegaram por algum tempo quando duas outras lanchas negras se juntaram ao grupo. Murphy informou que aquelas lanchas foram contratadas como seguranças devido aos acontecimentos anteriores.

– Eu só quero lembrar a você que esta vai ser a última, ok!? Esta vai ser a última enrascada a que o Murphy me leva – dizia Peter para Phil, que estava sentado num canto da lancha tentando escrever alguma coisa num livreto preto.

– Ok, cara... – suspirou Phil com um semblante cansado, levantando, marcando com o dedo a página em que escrevia e saindo de perto de Peter, que estava falando ininterruptamente aquele mesmo conteúdo em diversas frases diferentes, tautologicamente, desde que saíram do apartamento.

Murphy estava pilotando a lancha confortavelmente esparramado na cadeira do Capitão com o olho esquerdo sustentando um grande roxo ao redor, tão escuro que beirava o preto. Mesmo com o olho roxo, mantinha aquele sorriso enviesado satisfeito e triunfante, o olhar fixo e empreendedor na direção que deviam tomar enquanto Phil chegou estupefato ao lado dele sentando-se num banco próximo.

Ficar ao lado de Murphy era algo bom, pois ele era bem silencioso na maior parte do tempo. Bem, isso quando ele não estava tentando convencer os amigos de algum plano maluco. Pelo menos durante a execução do plano Murphy deixava os amigos em paz, concentrando-se no que importava: fazer o plano dar certo. Assim, Phil pôde reabrir o livreto com tranquilidade e voltar a escrever sobre tudo o que acontecia. Porém a escrita foi interrompida pelos resmungos em reclamação ditos por Peter.

– Eu queria que ele ficasse calado – reclamou Phil para Murphy, que respondeu:

– Para você poder se concentrar e conseguir escrever no seu diário?

– É o diário de bordo! – mentiu Phil, irritado, porém ele não enganava ninguém: era notório que, desde a infância, Phil mantinha um diário pessoal, com os relatos da vida dele. O pirata dizia que a psicóloga ordenou que ele escrevesse para livrar-se da carga negativa que os pais colocaram nele quando era mais novo. Todos desconfiavam que isso era mentira, afinal, não houve em tempo algum pais mais amáveis que os de Phil.

– Ok – disse Murphy, rindo com o canto dos lábios.

– Escuta, o Peter está falando que vai ser a última missão que ele vai – Phil mudou de assunto, olhando para Peter lá atrás, que agora alugava Cody com aquele discurso insuportável.

– Relaxa, Phil – respondeu Murphy com tranquilidade enquanto um sorriso enviesado surgia mais uma vez no canto dos lábios. – O mau humor dele vai passar quando ele bater os olhos nos diamantes.

– Mas você falou da mulher dele, cara; da mulher e da filha dele! Mortas!

Murphy continuou olhando para frente, o sorriso ia-se desmanchando à medida que Phil falava.

– Aliás, você não tem uma esposa. Não sabe o que é perder uma – completou Phil.

– Philip... – Murphy disse, sério. – Eu não tenho e nem tive uma esposa, tampouco perdi uma por óbvio..., mas isso não significa que eu não perdi uma mulher que amei.

– Você? Amando? Conta outra! – comentaou Phil em um tom de brincadeira não correspondido por Murphy, que permaneceu sério.

O silêncio se alongou por quase um minuto. Bom, silêncio entre os dois, pois Peter continuou com aquele monólogo entediante para um Cody muito concentrado num notebook, aquiescendo com a cabeça a qualquer coisa que Peter dissesse.

– Porque sua avó, Cody, sua avó é uma desmiolada que permite que você ande com aquele maluco ali que está pilotando essa banheira!

Phil movimentou a cabeça negativamente, guardou o "diário de bordo" no bolso interno do sobretudo negro, cruzou os braços e soltou um suspiro cansado.

– Bom, mas uma filha você não tem, por isso não sabe o que é perder uma.

– Sabe... – Murphy disse e novamente o sorriso malandro habitual desenhou-se na face. – Dizem por aí que eu tenho uns dois ou três filhos espalhados pelo mundo..., mas esse fato não foi comprovado! – os dois riem. Murphy adorava uma mentira bem contada. – Daqui a pouco estaremos chegando. Mande aquele idiota do Peter calar a boca. Peguem as armas.

Phil deu um tapa leve no ombro do amigo e seguiu para o fundo da lancha enquanto Murphy pegou um tapa-olho no bolso da calça e colocou-o vagarosamente, apenas para tapar o roxo do olho.

– É hora do show... – murmurou.

No meio do mar da Irlanda, as três lanchas estavam por se encontrar com mais duas num local próximo à Ilha de Man, entre a Irlanda e a Grã-Bretanha. Enquanto se aproximavam do lugar, Murphy, falando baixo e empunhando uma submetralhadora, repassava pela última vez as instruções aos piratas:

– Piratas... Lembrem-se do plano. Fiquem calmos durante a transação. Caso algo errado aconteça, atacaremos a embarcação a estibordo. Nossos seguranças irão atacá-los se sentirem ação ofensiva do cliente. Apenas apontaremos as armas e o resto será feito como mágica, assim como das outras vezes.

– Humpf... Mágica... – resmungou Peter pegando o armamento.

Quando Peter segurou a arma, ficou com uma sensação estranha, porém, não era necessariamente um sentimento ruim. Era algo como uma antecipada nostalgia. Talvez ele não devesse parar de entrar naquelas furadas com os comparsas. Afinal, a única coisa que o mantinha vivo era a sensação que ele tinha quando saía com aqueles três para uma enrascada. Aquela sensação de perigo iminente. A sensação que tinha quando era obrigado a improvisar alguma coisa a cada segundo para salvar a própria vida. Salvar a própria vida por mil vezes para compensar o que ele não pudera fazer pela esposa e, se ele errasse, se ele falhasse... quem sabe se encontraria com ela e a filha nos céus?

Desviar de balas. Sentir a vida passando por entre os dedos e segurá-la dentro do corpo no último segundo. Passar aperto. Ter adrenalina correndo nas veias... Era isso que as preenchia. Era isso que preenchia o tempo, o peito, o ser, a vida de Peter.

Ele não soube quanto tempo ficou perdido nos próprios pensamentos, mas ouviu o grito desesperado de Murphy:

– Pulem na água!

Ao virar, foi como em câmera lenta. Ele viu todos os amigos saltando da lancha enquanto um dos seguranças que estavam com eles terminava de carregar uma bazuca. Peter ia se jogar no mar sem prestar atenção em mais nada e, ao virar, a perna dele ficou enrolada numa corda: não sentiu o que estava acontecendo. Saltou. A corda se prendeu no tornozelo dele. O puxão da corda fez com que Peter sacudisse a perna presa quando já estava com o resto do corpo dentro d’água. Não ousou emergir e, bem quando o sujeito atirou, Peter conseguiu se soltar da corda. Começou a mergulhar o mais fundo possível. No mesmo segundo, dava para perceber um reflexo alaranjado de fogo acima da superfície da água, mas antes de virar o rosto para olhar, um pedaço de alguma parte da lancha lhe acertou a cabeça... desacordado, soltou a arma que segurava... talvez aquela seria realmente a última viagem de pirataria com os amigos...

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