Por Maria Clara (Macla)O sol estava escaldante naquela tarde, mas o riso de Carlinha fazia qualquer coisa valer a pena. Ela corria na minha frente, os cachinhos balançando enquanto ela brincava de não pisar nas linhas do calçamento. A gente descia o morro tranquilamente, como duas amigas – ou quase mãe e filha, dependendo de como se olhava. Carlinha tinha uma energia contagiante, e estar ao lado dela era como uma pausa nos problemas do mundo.— Vamos logo, tia Macla! Quero pegar o maior sorvete que eles tiverem! — ela gritou, olhando por cima do ombro.— Calma aí, princesa, eu só tenho duas pernas! — brinquei, apressando o passo.Paramos na sorveteria pequena no pé do morro. Era um lugar simples, com cadeiras de plástico e um balcão de vidro exibindo os sabores coloridos. Escolhemos os nossos sorvetes – chocolate para ela e morango para mim – e sentamos em uma mesa perto da janela.— Tá gostoso, Carlinha?— Tá uma delícia! Obrigada por me trazer, tia Macla. A mamãe e o papai quase nu
Por TonhãoO quartinho era um buraco sujo, cheio de mofo e com um cheiro insuportável de cigarro velho misturado com rato morto. Mas era o que a gente tinha, e pra mim, tava bom demais. O moleque que chamavam de "Gordo" já tinha dado uma geral, tirado as tralhas que tinham por lá, e deixado o espaço minimamente habitável. O colchão jogado no chão era pra menina, e eu não tava nem aí se ela ia gostar ou não. Era ali que ela ia ficar até os otários dos pais dela entenderem que não se mexe com Tonhão.Segurei a pirralha pelo braço enquanto ela me olhava com aqueles olhos grandes de quem achava que ia me intimidar. Só rindo mesmo.— Quem é você? — perguntou, a vozinha firme apesar do tremor.Parei no meio do quartinho e me abaixei, ficando na altura dela. O sorriso no meu rosto era uma mistura de ironia e raiva.— Quem eu sou? — cuspi as palavras, aproximando meu rosto do dela. — Eu sou o desgraçado que odeia os filhos da puta dos seus pais.Ela arregalou os olhos por um segundo, mas log
Por Hannah Luiza (Halu)Não conseguia mais controlar o choro. Os soluços tomavam conta do meu corpo, e a sensação de vazio parecia me engolir. Meu coração estava em pedaços, e a imagem de Carlinha não saía da minha cabeça. Como ela estaria agora? Assustada? Sozinha? Com frio? Eu sentia como se cada segundo sem respostas fosse uma eternidade de sofrimento.Eu estava jogada na cama, ainda vestida com a mesma roupa de ontem. Não tinha forças para trocar, para comer ou sequer pensar direito. Minhas mãos tremiam enquanto abraçavam a almofada, buscando algum tipo de conforto inexistente. As lágrimas escorriam sem pedir permissão, e o peso da culpa me esmagava.Ouvi passos se aproximando, mas não tive energia para olhar. Era Matheus. Ele sentou-se ao meu lado, suspirando profundamente antes de falar: — Halu... me desculpa. — A voz dele estava baixa, quase um sussurro. — Eu não deveria ter me estressado com você. A culpa não é sua.Demorei alguns segundos para processar as palavras. Quando f
Por BrunaO som da porta se fechando atrás de mim ecoou pelo pequeno quartinho, abafando o burburinho que vinha de fora. O cheiro de mofo e poeira era sufocante, mas eu não me importava. Tudo o que me interessava estava ali, naquele canto miserável, onde uma garotinha de olhos arregalados e rosto sujo me olhava como se eu fosse o próprio diabo.Carlinha estava sentada no colchão velho, com as perninhas encolhidas contra o peito, abraçando-se como se isso fosse suficiente para protegê-la. Patética. Aquela pirralha não fazia ideia do que estava acontecendo ao redor dela. Só sabia repetir como um papagaio o que Halu devia ter enfiado na cabeça dela.— O que você tá fazendo aqui? — ela perguntou, com a voz tremendo, mas carregada de uma coragem que, sinceramente, me irritou.Eu me aproximei devagar, cruzando os braços enquanto lançava um olhar cínico.— Isso importa? Você vai fazer o que eu mandar, pirralha melequenta.Ela piscou rápido, mas não desviou o olhar. Quanta petulância. Antes
Por Matheus (M.T)O calor da tarde estava de rachar enquanto eu e Luizinho atravessávamos o beco, a favela fervendo como sempre. O cheiro de fumaça, fritura e suor parecia grudar na pele. Quando a gente chegou no barraco onde os caras estavam, o clima já tava pesado. O lugar era apertado, cheio de caixas empilhadas e um ventilador capenga girando devagar. Do lado de fora, soldados armados olhavam de um lado pro outro, atentos a qualquer movimentação. Eu e Luizinho entramos, cumprimentando os homens com aquele toque de mão firme, cheio de respeito. Não era só uma visita amigável; era uma reunião estratégica. A tensão no ar era visível. — M.T, cadê a Halu? — perguntou Tigrão, um dos chefes aliados. Ele era um cara parrudo, com uma cicatriz atravessando o rosto, e sempre fazia questão de mostrar que não tinha medo de ninguém. — Esperava ver ela aqui. Essa treta toda é tanto dela quanto nossa. — Halu tá resolvendo uns bagulhos. — Minha resposta foi direta, mas minha voz saiu seca, car
Hannah Luiza (Halu)A mensagem chegou no meu celular enquanto eu organizava algumas coisas na sala. Assim que li, senti meu sangue ferver."Se quer sua filha viva, vem sozinha. Se entrega e ela tá liberada. Prometo."Tonhão, aquele desgraçado. Sabia que ele era ardiloso, mas mexer com minha filha? Não era só coragem; era um pedido de morte. Respirei fundo, tentando controlar o tremor das mãos. Não ia deixar ele pensar que tava me dobrando.Peguei uma folha de papel e comecei a escrever pro Matheus. Ele precisava saber, mas também não podia me impedir. Ele faria de tudo pra tentar me segurar e, sinceramente, eu não tinha tempo pra discussões. Era a vida da minha filha na balança.Dobrei o papel com cuidado e deixei na mesa, o coração pesado. Olhei em volta da sala, sentindo aquela pontada no peito que só vem quando você sabe que pode não voltar. Respirei fundo e saí, tentando não pensar demais.— Patroa, tá indo aonde? — perguntou Pé de Pano, acendendo um cigarro perto do portão.— Re
A noite tinha chegado, e o quartinho onde eu estava com Carlinha parecia ainda menor. O cheiro mofado misturado com o som abafado dos passos lá fora criava um clima de tensão insuportável. Minha filha estava sentada no colchão velho, com os olhinhos brilhando de medo. Eu, por outro lado, tentava manter a postura, mesmo com a angústia me corroendo por dentro.— Mãe, tô com fome. — Carlinha murmurou, abraçando os joelhos.Meu coração apertou. Eu queria tanto poder pegar minha menina e levá-la pra casa, mas aquele lugar era uma prisão. Não tinha comida, não tinha conforto, não tinha esperança. Só o silêncio perturbador e as ameaças que rondavam.— Eu sei, filha. — Respondi, alisando os cabelos dela. — Prometo que vamos sair daqui. Só mais um pouco, tá bom?Ela assentiu com um aceno tímido, mas eu sabia que ela não acreditava em mim. Nem eu sabia como sair daquela situação. Mas tinha que parecer confiante por ela.O tempo passava devagar, cada segundo pesando como uma tonelada. Foi quando
A água gelada escorria pelo meu rosto, me fazendo arfar de susto. Pisquei algumas vezes, tentando entender o que estava acontecendo, e então vi Bruna parada à minha frente, segurando o balde vazio e rindo.— Sua piranha desgraçada. — Minha voz saiu carregada de raiva.Ela gargalhou alto, um som cheio de escárnio, enquanto me olhava de cima com aquele ar de superioridade que sempre me irritou.— Tu não tá em posição de falar nada, sua vagabunda. Tá gostando do tratamento que o meu homem tá te dando? — Ela rebateu, cruzando os braços.Senti o gosto amargo da raiva subindo pela minha garganta. Odiava a forma como ela falava, como se estivesse no controle.— Como você desceu tão baixo, Bruna? Se juntar com aquele desgraçado só pra quê? Pegar o Matheus pra você? — Cuspi as palavras, sem me importar com o que viria depois.Ela estreitou os olhos, o sorriso desaparecendo por um instante, mas logo voltou com a resposta afiada.— O MT ia me fazer de fiel até você querer voltar pra ele. Aí foi