Depois de termos batido e chamado bastante, pensei que Ulisses não fosse conseguir abrir aquela porta à força mas em algum momento a guarnição, que provavelmente nunca havia sido trocada, cedeu.
Chamamos várias vezes e ele não respondeu, então entramos. As luzes estavam apagadas, mas a televisão em volume baixo iluminava a sala. Tropecei em alguma coisa mas Ulisses me segurou me impedindo de cair, olhei para baixo e vi garrafas de bebidas alcoólicas.
— Pierre? — Chamamos Ulisses e eu várias vezes.
— Vamo ficar perto um do outro, tá bom? — sussurrou Ulisses ao meu lado.
— Tá bom.
Sentimos um cheiro ruim que vinha da cozinha e lá nos deparamos
— Por que vocês não me falaram? — perguntou Suzy — Eu com certeza teria ido com vocês. — Você já tinha saído e disse que o Paulo tava te esperando e que tava muito cansada. — explicou Ulisses. — O importante é que deu tudo certo e que a primeira consulta dele com psiquiatra já tá marcada. Eu e o Ulisses vamos com ele. — Vocês têm certeza que vão junto com ele? Os dois? — Qual o problema de a gente ir os dois? — perguntei. — Não corre o risco de vocês dois serem expulsos junto com Pierre, não? — Oxente! E por que a gente seria expulso? O piso era claro, as cadeiras acolchoadas, brancas; Na parede um único quadro minimalista com desenhos de folhas em preto e branco, era nele onde eu tentava manter minha atenção, até conseguia exceto quando sentia o aperto mais forte em minha mão. Estávamos os três na recepção do consultório do doutor Pedro Lopes. Eu sabia que Pierre estava nervoso pelo jeito como olhava para baixo e segurava forte a minha mão. Era uma quarta-feira e pelo visto eu perderia todo o dia de trabalho, pois além de acompanhar Pierre no psiquiatra pela manhã, à tarde eu estaria no curso. Em qualquer outro ambiente de trabalho eu já teria sido demitida a muito tempo, mas Ulisses sentado ao meu lado não parecia se importar com isso, pelo contrário ele parecia tão preocupado com Pierre quanto eu, a julgar por suas sobrancelhas levemente franzidas e o48. Nova Cláusula
— Não titia!... Não puxe não! — falei levando a mão ao cabelo — É o coque frouxo, tia. — Ah, desculpe… — disse ela rindo — Mas porque é que você não solta esse cabelo, garota? — Sei lá… É mais prático. — Tem certeza que é mais prático ou você não gosta do seu cabelo? — disse minha tia puxando a presilha e soltando meus cachos. — Ô titia!... Dá trabalho deixar arrumadinho. — Melhor que cabelo arrumadinho é cabelo natural. Você vai pra uma festa né pra igreja, não. — Falta de convite pra igreja, não é. — rebateu minha mãe. — A empresa tá fazendo quantos anos? — perguntei.— Quinze anos. — respondeu Ulisses olhando o trânsito à frente.— Tu tá nela a quanto tempo?— Um uns nove anos, incluindo meu período de estágio e como atendente.— Tu sempre trabalhou nessa empresa?— Eu fiz faculdade particular e meus pais se viravam nos trinta pra pagar, além das despesas que eu tinha aqui na cidade enquanto eles estavam em Santos.— Santos é muito longe daqui? Fomos em toda parte menos ao bar já que beber não era do feitio de Ulisses e o banheiro masculino por razões óbvias.— Manda uma mensagem pra ele — sugeriu Suzy.— Por que tu não manda?— Olhe, eu vou mandar mas não se acostume não, viu? Resolva seus próprios problemas.— Qual o problema de tu falar com ele?— Lis, quem tem o rabo preso com ele não sou eu não, é você.— E quem disse que eu tenho rabo preso com aquele tabacudo?... Sabe de uma coisa? Eu mesma 50. Rainha do Gelo
51. Choque do Trovão
— Não sei onde é que eu tô errando. — disse Ulisses para mim e para Suzy no bar.— Quer que eu faça uma lista? — perguntei.— Vai Lis, eu tô falando sério.— Eu também. Na verdade a gente já falou demais e tu nunca quer ouvir. — Senti Suzy pisando no meu pé de leve — Oxe… Por que tais pisando no meu pé eu tô mentindo, é?— Lis, vamo conversar sobre isso em outro momento. Acho que agora o Ulisses precisa é de apoio.— Apoio? Eu mesma não vou apoiar essa safadeza, não.
Chegamos antes de Ulisses no bar. Amarramos os balões azuis nas costas das cadeiras e até mesmo nos copos. O bolo era de prestígio com duas velinhas brancas no topo, uma com o número três e outra com o número um. Pedimos cervejas e uma porção de batata frita. Conversámos empolgados sempre de olho na entrada do bar esperando Ulisses chegar, ele costumava ser pontual, mas agora eram nove da noite e ele ainda não havia chegado. Eu só poderia ficar até às onze e meia, mas não queria sair sem lhe dar um abraço de feliz aniversário e entregar a ele a minha lembrancinha nada ortodoxa. — Será que aconteceu alguma coisa? — questionou Paulo segurando o celular no ouvido, ele tentava ligar para Ulisses pela quarta vez e só caía na caixa postal. — O que a gente faz, hein? —
— Eu posso ir com Paulo e Suzy. — falei. — Eles moram do outro lado da cidade e a sua casa é na direção da minha. Não faz sentido eles te levarem. — respondeu Ulisses prendendo o cinto. — Pelo menos tu ia poder ficar um tempo sozinho. — E pensar bosta? Melhor ter você aqui falando bosta pra me irritar. — disse sorrindo. — Tu é que só fala merda, menino! O tempo todo! Tem vergonha nessa tua cara. — falei furiosa. Abrindo um sorriso largo ele deu partida no carro. Mas na verdade toda viagem foi em silêncio, eu não tive coragem de interromper seus pensamentos, ele estava alheio ao que acontecia ao redor, com o cenho franzido e dirigindo no auto