Capítulo 0004

A noite estava encoberta por nuvens densas. O sol ainda não despontara quando me levantei da cama e saí para correr com minha loba, sabendo que a maioria dos outros membros do clã estaria dormindo a essa hora. Estava muito escuro, o que me obrigou a apurar todos os meus sentidos, um ótimo treinamento antes de mais um dia chato de aulas com matérias repetitivas.

Corri velozmente, liberando toda a minha adrenalina, enquanto tentava memorizar os locais onde não havia cheiros recentes de outros lobos. Era a primeira vez que saía na forma de lobo desde que cheguei e precisava mapear a região florestal perto da casa da minha avó para saber onde ir, já que agora precisaria retomar minhas atividades de treinamento solo para manter a boa forma.

"Certo, Lisa! Hora de voltarmos."

Ela estava feliz e eu também. A partir de amanhã, voltaríamos a treinar juntas todos os dias, como costumávamos fazer antes de chegarmos aqui. Tínhamos uma intimidade muito profunda entre nós, mas, acima de tudo, conquistei o profundo respeito de Lisa ao mostrar-lhe que eu não seria um peso, mas sim a força dominante.

Passei pelo pomar dos fundos do quintal e saltei silenciosamente pela janela do meu quarto para só então retomar a forma humana. Dirigi-me ao banheiro para tomar um banho rápido antes de ir para a escola. Não me preocupar em ficar arrumada me poupava esforço e assim eu podia dedicar mais tempo ao treinamento.

— Bom dia, vó. Bom dia, tia!

Ambas já estavam à mesa comendo e conversando sobre uma reunião que o alfa teve com o líder do clã vizinho sobre as recentes invasões nas fronteiras com o mundo sombrio.

— Melhor correr ou vai se atrasar! — alertou minha tia.

— Tem razão! — Peguei um daqueles deliciosos pãezinhos que só minha avó sabe fazer e corri até a porta. — Já vou indo. Até mais!

— Espere! — gritou minha avó. Ela se levantou calmamente, foi até a cozinha e voltou com uma lancheira e um guarda-chuva. — Fiz um lanche para você. Leve o guarda-chuva porque o clima está para chuva.

Eu não conseguia dizer não para minha avó quando ela me tratava com tanta doçura. Após aceitar seus gestos, dei-lhe um beijo na bochecha e agradeci. Até me mudar para cá, eu vinha apenas uma vez por ano para vê-la junto com a minha mãe. Passava apenas uma semana, mas era o suficiente para perceber o quanto ela era afetuosa comigo. Diferente do jeito frio da minha mãe, minha avó era terna e amorosa, e acho que isso contribuiu para minha escolha de vir para cá.

— Bom dia, Eliza! — A voz de Annie soou logo após eu entrar pelos portões da escola. Olhei para trás e vi que ela vinha chegando de mãos dadas com Liam.

— Bom dia! — respondi de volta, esperando que se aproximassem.

Caminhei em silêncio enquanto ouvia Annie comentar sobre como ficou bonito o ensaio da banda e sobre a precisão das partituras que entreguei. Liam não me agradeceu diretamente, mas eu podia ver o olhar de aprovação que ele dava em relação a tudo que ela falava.

O momento de fofura deu lugar a um beijo meloso enquanto ambos se separavam, cada um para sua sala. Liam estava no terceiro ano, enquanto Annie estava no segundo ano comigo.

— Você já sente o vínculo? — perguntei curiosa ao notar a paixão nos olhos dela.

— Ainda não, mas falta pouco. De qualquer forma, não acho que isso vai mudar muita coisa. Eu já o amo demais! — respondeu ela com as bochechas rosadas.

— Então como sabe que é ele?

— Depois que ele fez dezoito anos, deu uma grande festa de aniversário. Nela, ele declarou na frente de todos, inclusive do futuro alfa, que eu sou a companheira dele. Quase explodi de alegria, porque eu já gostava dele.

— Entendi. — Para alguns, o que poderia ser uma dádiva, para outros poderia ser uma maldição. Nem todos tinham a sorte de encontrar um companheiro digno e bom.

— O que você espera do seu companheiro? — perguntou ela, parando no caminho e me olhando fixamente. Estávamos no segundo andar. Caminhei até a janela mais próxima, olhei para os inúmeros rostos entrando no colégio e respondi com sinceridade.

— O que espero é não ter isso. — A maldição do companheiro. Sim, desde que soube que a linhagem da minha mãe trazia isso, eu torcia para ter puxado os genes do meu pai. — Quero poder escolher por mim mesma.

Annie parecia querer dizer algo, mas se calou. Como se a suposta deusa quisesse brincar comigo, senti os pelos dos meus braços se arrepiarem e um cheiro amadeirado alcançar minhas narinas, me obrigando a procurar pelo cheiro. Virei meu rosto em direção ao estacionamento no pátio e notei um homem alto, forte, de cabelos pretos lisos, pele parda e olhos intimidadores mirando na minha direção. Assim que nossos olhares se cruzaram, senti uma força de atração esmagadora querendo me puxar em direção àquele homem enquanto minha loba uivava: “Companheiro!”

Ela repetia isso várias vezes dentro de mim enquanto meu coração disparava a mil. Obriguei-me a desviar o olhar e respirei fundo para tentar conter minha loba, que, tolamente, foi pega nessa porra de maldição.

— Bem... pelo menos você não precisa se preocupar com isso agora. — Annie disse, tomando coragem para responder. — Você ainda tem algum tempo antes do despertar do lobo e, mesmo depois disso, não há garantias de que o encontrará, então talvez você realmente possa escolher.

— Claro... — Virei-me para ela, sorrindo nervosamente. Queria que o que acabara de acontecer fosse apenas uma grande mentira.

Eu diria que ele já estava na casa dos vinte anos e não usava uniforme, então foi apenas uma coincidência vê-lo aqui na escola. Talvez ele ainda não tenha me notado. É isso que eu quis acreditar. Respirei devagar, fechei meus olhos e concentrei-me em me acalmar antes de abri-los e seguir para a sala de aula como se nada tivesse acontecido.

A depender da minha loba, eu estaria correndo velozmente até o pátio para encontrá-lo. Mesmo agora, ela continuava me implorando para ir até ele, mas de forma alguma eu faria isso! Ir atrás do meu companheiro me faria ter que revelar minha loba, algo que não pretendia fazer antes dos meus dezoito anos. De qualquer modo, ele também me viu, então se tiver interesse, virá atrás de mim!

Há quatro classes de clãs que guardam as fronteiras com o mundo sombrio: Lua Nova, Lua Crescente, Lua Cheia e Lua Minguante. Cada uma delas tem características distintas que as diferenciam, desde a coloração predominante dos pelos até as "bênçãos recebidas".

Siram é um clã de lobos da Lua Cheia, a linhagem à qual minha mãe pertence. A coloração predominante dos pelos é de diferentes tons de castanho. Os lobos apenas despertam no auge da primeira Lua Cheia mais próxima ao aniversário dos dezoito anos. Quando despertos, a maior bênção para o clã lhes é concedida: a capacidade de encontrar seu companheiro predestinado, vínculo este que ninguém questiona, apenas aceita como uma dádiva da deusa da Lua.

Contudo, meu pai pertence ao clã Arches, dos lobos da Lua Nova, cuja coloração dos pelos é em diferentes tons de cinza. Neste clã, os lobos podem despertar precocemente após os doze anos e não há um período certo para isso. O lado bom do clã é o chamado "faro do amor". Eles conseguem sentir o cheiro de potenciais futuros parceiros e escolher por si mesmos com quem se unir, sem toda a pressão que o vínculo impõe.

Minha loba, como se o mundo não quisesse que ela pertencesse a um ou outro clã, saiu com o pelo de coloração branca. É grande e ágil, e tem os mesmos olhos esverdeados que eu.

Lisa despertou quando eu tinha doze anos, fazendo-me passar por um dos momentos mais constrangedores da minha vida. Diferente de como é em Siram, eu não tive tempo para me preparar para o momento, e realmente não estava preparada. A primeira transformação aconteceu na minha antiga escola. Ao sentir tremores violentos tomarem conta de mim, corri para o banheiro e me fechei no box. Antes de conseguir tirar minhas roupas, Lisa saiu. Tive que suportar toda a dor em silêncio, enquanto minhas estruturas ósseas e musculares se moldavam à transformação. Dizem que a primeira vez é a mais dolorosa; agora, imagine só fazer isso num cubículo apertado de um banheiro e ter que conter toda a agonia da transformação tentando não quebrar nada. Foi impossível!

Naquele dia, achei que fosse morrer, mas, aos poucos, fui recuperando o controle e consegui voltar à minha forma humana. Quando finalmente me recompus, vi o vaso estilhaçado e a porta do box marcada pelas minhas garras. Eu, minha mochila amassada, e o chão ao redor estávamos encharcados pela água do vaso, enquanto minhas roupas haviam se transformado em meros retalhos espalhados pelo chão.

Reunindo as últimas forças que me restavam, estiquei minha mão até a mochila e peguei o celular. A tela estava completamente trincada, mas, felizmente, ainda funcionava. Liguei para minha mãe, implorando por socorro. Nunca havia experimentado tanta humilhação e desespero em toda a minha vida!

Agora, essa coisa de companheiro veio à tona, fazendo a minha loba me perturbar pelo resto do dia, insistindo que devíamos procurá-lo, de forma que eu não conseguia me concentrar em nada. Pelo visto, herdei o lado ruim dos dois clãs.
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