No dia seguinte, Charlotte acordou tardiamente, já passava das três da tarde, pegou o celular e tinha três chamadas perdidas de Alan, ignorou. Buscou comida na cozinha e sentou em sua varanda, perto de suas flores e cactos.
Sempre havia mariposas voando, amava esses animais, aquele era um delicioso fim de tarde, ela tomava chá de cidreira, que servia tanto para aquecer as suas tardes frias quanto para trazer acalanto a sua alma inquieta e solitária. Desde o último inverno, as tardes dela eram assim, ora sua mente vagava além dos altos prédios, ora ficava simplesmente observando as mariposas que pousavam tão tranquilas próximas de sua poltrona, é que, apesar de muito frio, ela estava lá sentava em sua varanda, trajando um leve vestido azul-claro, como sempre descalça, pois gostava de sentir o frio nos pés, sentia-se mais viva, ou talvez apenas tivesse se acostumado com a dor, porque era a dor que sentia em seu coração.
Naquela tarde em especial, sentia-se nostálgica de uma maneira indolor, seus medos e seus traumas flutuavam na sua frente como fantasmas visitantes, mas não a machucavam, apenas lhe olhavam com olhos de quem vai embora, como aquelas despedidas demoradas e necessárias. Ela lembrou do pai apertando seu braço com força, mandando que ela não fizesse barulho, a casa estava quieta com um ar meio fantasmagórico e sua mãe regava as flores no jardim, margaridas, suas prediletas, como sempre, distraída, perdida em seu mundo. Se a mãe de Charlotte não estivesse tão inerte em sua loucura, vivendo à base de antidepressivos, teria percebido o olhar de medo da filha, as marcas em seu corpo e as madrugadas que ela acordava gritando, se a menina não sentisse tanto medo do pai, sua mãe não teria morrido daquela maneira triste, pelo menos era a culpa que ela carregava em seu coração.
Com o passar dos anos, Charlotte aprendeu a esconder suas mágoas e suas lágrimas. Diversas vezes fechou os olhos e repetiu-lhe: “o passado não vai afetar minha vida”, mas repetia em vão, pois o passado sempre a visitava na forma de pesadelos. Seu celular tocou novamente, ela o atendeu era Alan.
— Vamos sair agora!?
— Acabei de acordar.
— Te pego em meia hora. — Desligou antes que ela pudesse recusar.
Charlotte definitivamente não tinha vontade de sair, mas sentiu vontade de ver Alan novamente, sua insistência a deixava vaidosa, e ela nunca se sentido assim antes, tomou um banho rápido, vestiu a primeira calça (jeans) que viu pela frente, uma camiseta preta de Guerra nas Estrelas e jaqueta de jeans rasgado, sem maquiagem e rabo de cavalo. Alan chegou e tocou três vezes a campainha, ela olhou o relógio e pensou “Que pontual”.
— Como você subiu?
— Subornei o porteiro. — Disse ele, despreocupadamente.
— Isso não é legal sabia? E aqui não tem porteiro, onde nós vamos?
— O senhor dos manjericões, vamos caminhar na praça e ver o pôr do sol.
— Mas não tem sol, aliás está bastante frio.
— Mas é claro que o dia está com sol, ele apenas está escondido.
— A pronto, donde vim me meter, bora logo, isso sim.
— Eu vou ser seu delicioso acaso, disse ele, enquanto abria a porta do carro para Charlotte entrar. Eles chegaram na praça e caminharam em silêncio por bastante tempo, o clima estava meio acinzentado e tinha folhas caindo das árvores, na verdade, estava um dia lindo para bater algumas fotos e ela se arrependeu de não ter levado sua câmera.
— Eu amo essa paisagem melancólica. — Disse ele sendo sincero e quebrando o silêncio.
— Eu também gosto, mostra o quanto somos humanos e solitários, no fundo, todos procuramos algo inalcançável.
— Você tem jeito de escritora, e a alma de uma verdadeira poetisa.
— Gosto de escrever vez ou outra, mas nunca escrevi nada tão bom. E o que você faz da vida?
— Eu sou engenheiro, é só isso, minha vida é bem desinteressante, só trabalho diariamente, e às vezes saio para conhecer moças bonitas e fazer com que elas se apaixonem por mim loucamente, agora é a sua vez. Quando vai me mostrar seus escritos?
— Não tem nada de interessante sobre mim, como você já sabe, eu moro lá na Vila Mariana, trabalho à noite lá no Arco, mas estou de férias, volto em duas semanas. E isso é tudo, não escrevo profissionalmente nem nada, só para passar o tempo.
Alan tinha um ar misterioso que encantava Charlotte, além de lindos olhos abismais, porém, ela tinha um gosto muito próprio para coisas e pessoas, pois sempre se encantou com tudo que aparentava ser incomum.
— Vamos para Angra? Eu tenho uma casa lá, um pouco mais afastada, e tem uma vista incrível para a praia. — Convidou ele, não conseguindo disfarçar a empolgação na voz.
— Eu não sei, tenho algumas coisas para fazer amanhã, depois te respondo.
— Saiba que sou muito persistente.
— Já percebi isso.
Com as mãos no bolso do casaco, Charlotte debruçou sobre a grade de proteção de um canteiro para observar um buraco no chão que podia ser de um tatu ou de uma toupeira, olhou bem para o chão mais de uma vez, pois jurava ter visto olhinhos lá no buraco. As folhas das árvores caíam em seus cabelos e o vento os faziam se mover de uma maneira lenta, quase magica, que Alan, hipnotizado, lembrava dos quadros impressionistas em exposição no D’Orsay e rezava para que ela nunca tivesse ido lá, de modo que ele poderia levá-la pela primeira vez.
Então, os dois caminhariam de mãos dadas às margens do canal Saint-Martin. Seus pensamentos foram interrompidos quando ela se desequilibrou e por pouco não caiu de cara no chão, ele a segurou a tempo e os dois ficaram com os rostos bem colados, o tempo parou naquele exato momento e ambos podiam ouvir seus batimentos cardíacos acelerados, beijaram-se carinhosamente, foi em uma tarde de inverno entre folhas secas e brisa que essa história teve início.
Na manhã seguinte, o celular de Alan despertou pontualmente. Ele, porém, já estava de banho tomado e pronto para sair, pegou uma mochila com algumas roupas, alguns pertences e saiu depressa para não pegar muito trânsito. No caminho, parou em uma padaria, comprou tudo de apetitoso que viu e foi para a casa de Charlotte, queria chegar antes dela acordar, bateu na porta três vezes e esperou, sem resposta e já impaciente, bateu outras três vezes seguidas, com força, até finalmente ouvir algum barulho vindo de dentro do apartamento. Ela abriu a porta, de cara amassada e ainda com a mesma roupa do outro dia, ele imediatamente disse, antes que a garota ainda sonolenta pudesse manda-lo embora: — Bom dia, trouxe um lanche. Ela ficou perplexa com a quantidade de comida e ainda mais com a hora, eram apenas oito horas da manhã de um pleno sábado. — O que está fazen
Naquele momento, nada realmente importava, tampouco fazia sentido, ela tinha os pés no chão e não acreditava em destino, e sim em ações e consequências. Até então, ainda estava lentamente absorvendo a péssima notícia da soltura do seu pai, que estava preso já tinha muito tempo, ela nem queria imaginar se ele fosse atrás dela, sua cabeça doía, ela lembrava com detalhes o que aconteceu. Era tarde da noite, ela acordou e se deu conta que seu pai não foi até seu quarto, sentiu um alívio que logo foi interrompido por gritos vindos do andar de baixo, parecia o grito de uma criança. Ela saiu correndo, pelo longo corredor escuro e desceu descalça, pela escada fria, ouvindo mais barulhos vindos do porão, quando abriu a porta, se deparou com uma menina loira, nua e toda ensanguentada. Seu pai estava por cima dela, abrindo suas pernas com violência o máximo que conseguia e a menina gritava muito, com as mãos amaradas sem poder se defender. Charlotte ficou lá na porta parada sem
— Alô, Charlotte, me desculpa pela hora, mas tenho notícias. Que pode te alegrar ou não, dependendo do teu estado de espírito, Edgar está morto, o corpo foi encontrado pela polícia, provavelmente tenha sido algum outro preso, ouve uma tentativa de fuga, e ele parece que estava envolvido, você terá que vir para decidir o que fazer com o corpo e os bens, sabe como é, todos esses transmites legais, já que você é a única herdeira. — Tem certeza que é ele? — Não se tem dúvidas, quando você pode vir? – Perguntou o advogado insistentemente, com uma voz seca. — Eu tenho que ir realmente? O senhor não pode cuidar de tudo? — Sim, você precisa vim, não tenha medo, ele não está mais aqui, ele
Enquanto isso, em São Paulo, Alan passava por um processo de quase luto, sentindo a necessidade da presença de Charlotte mais forte e constante. Trancado dia e noite em seu apartamento não conseguia acreditar que ela estivesse tão bem escondida, nem os seus investigadores conseguiam encontrá-la. Esperava ansioso por notícias que nunca chegavam, o celular dela dava desligado e, no trabalho, ninguém sabia de nada, os dias passavam e ele ia ficando cada vez mais transtornado, saia com mulheres e voltava para casa mais vazio do que antes, nada mais era igual, ele precisava encerrar o ciclo, ter Charlotte novamente em sua vida e depois decidiria o que fazer. Seu piano solitário, ele não tocava mais, suas mãos tremiam como um dependente químico, ansioso por sua droga.Enquanto isso da janela do seu quarto, Charlotte tinha uma vasta visão para a floresta e principalmente do pequeno riacho que ficava
Após três garrafas de tequila, Charlotte dormiu ao sofá, acordando por volta do meio-dia com a campainha tocando. Levantou sobressaltada, se perguntando quem seria, se aproximou da porta, mas antes olhou pelo vidro da janela, era uma moça muito bonita.— Oi! Tem alguém em casa? É a vizinha, Emily. — Charlotte, meio sonolenta, abriu a porta. — Oi! Desculpa pela insistência. — Disse a garota, que era uma ruiva de olhos azuis, a pele cheia de sardas, de uma beleza exótica que dava inveja. O tipo de mulher que agradaria ao Guilherme.— Tudo bem, o que você deseja?— Eu sou a vizinha nova, sabe, da casa no in&iacut
Edgar tomava uma taça de vinho, muito calmo e ansioso pelo encontro com a filha, ele pensou nela cada segundo em que esteve preso, farejava o ar como um animal buscando pela presa. Agora que a menina já era uma mulher feita, ele devia terminar o que começou anos atrás, ela foi a única que viveu, pelo simples fato de que foi preso antes de concluir seus planos, seu legado estava estampado nos lindos olhos da filha, mas ele manteve por tempo demais o gosto dela em seus lábios, estava na hora de dizer adeus, usaria de toda sua criatividade para matá-la, afinal, ela era muito especial. Por hora, se livraria da sua cúmplice, que não tinha mais serventia, e possuía uma alegria que o incomodava, com aqueles olhos vibrantes que ele sentia vontade de arrancar com as próprias mãos.— Demorou para abrir a porta.— Ela est&aacut
Edgar pegou as chaves do carro e saiu cantarolando, dirigiu até uma clareira na floresta onde estacionou o carro longe da propriedade, apanhou um punhal e clorofórmio no (porta) luvas, passou a mão no rosto e deu um sorriso satisfeito enquanto via seu reflexo no espelho do retrovisor. Seguiu o restante do caminho até a mansão a pé, arrumou-se para reencontrar Charlotte, planejava cortaria seu pescoço, mas não antes de sentir aquele corpo infantil novamente, isso era o que desejava mais-que-tudo, não importava nem mesmo sua vida ou liberdade, sentia-se preso a filha como uma mosca presa na teia, ela era sua maior fonte de obsessão, seu trabalho incompleto, precisava matá-la e completar seu ciclo.— Alan, não estou vendo os policiais lá embaixo, as viaturas estão e eles não, será que foram andar pelo terreno?&mda
Por mais que tentassem conversar, e sorrir naturalmente, existia lá no fundo do peito, um sentimento preso, sufocado, afiando suas garras, esperando o momento certo para emergir. Nos primeiros dias em casa, Charlotte teve muitos pesadelos onde ficava presa em uma espécie de dança da morte, as sombras saiam do chão e a levavam arrastada por correntes de fogo, sempre acordava gritando e com falta de ar. A história se espalhou e todos os jornais ligavam para marcar entrevistas, no portão do prédio sempre tinha algum jornalista escondido, batendo fotos, e a menina que sempre sonhou ser invisível agora era vista por todos, isso fez com que se trancasse cada vez mais, em seu próprio mundo, sentava na varanda e observava o tempo, presa em uma apatia que nada nem ninguém conseguia colocar um fim. Alan sentava ao seu lado em silêncio e passavam horas sem fazer um único barulho, seus abismos se conectavam de uma maneira impossível de compreender, era quase c