Capítulo 2 - O inicio

No dia seguinte, Charlotte acordou tardiamente, já passava das três da tarde, pegou o celular e tinha três chamadas perdidas de Alan, ignorou. Buscou comida na cozinha e sentou em sua varanda, perto de suas flores e cactos.

Sempre havia mariposas voando, amava esses animais, aquele era um delicioso fim de tarde, ela tomava chá de cidreira, que servia tanto para aquecer as suas tardes frias quanto para trazer acalanto a sua alma inquieta e solitária. Desde o último inverno, as tardes dela eram assim, ora sua mente vagava além dos altos prédios, ora ficava simplesmente observando as mariposas que pousavam tão tranquilas próximas de sua poltrona, é que, apesar de muito frio, ela estava lá sentava em sua varanda, trajando um leve vestido azul-claro, como sempre descalça, pois gostava de sentir o frio nos pés, sentia-se mais viva, ou talvez apenas tivesse se acostumado com a dor, porque era a dor que sentia em seu coração.

Naquela tarde em especial, sentia-se nostálgica de uma maneira indolor, seus medos e seus traumas flutuavam na sua frente como fantasmas visitantes, mas não a machucavam, apenas lhe olhavam com olhos de quem vai embora, como aquelas despedidas demoradas e necessárias. Ela lembrou do pai apertando seu braço com força, mandando que ela não fizesse barulho, a casa estava quieta com um ar meio fantasmagórico e sua mãe regava as flores no jardim, margaridas, suas prediletas, como sempre, distraída, perdida em seu mundo. Se a mãe de Charlotte não estivesse tão inerte em sua loucura, vivendo à base de antidepressivos, teria percebido o olhar de medo da filha, as marcas em seu corpo e as madrugadas que ela acordava gritando, se a menina não sentisse tanto medo do pai, sua mãe não teria morrido daquela maneira triste, pelo menos era a culpa que ela carregava em seu coração.

Com o passar dos anos, Charlotte aprendeu a esconder suas mágoas e suas lágrimas. Diversas vezes fechou os olhos e repetiu-lhe: “o passado não vai afetar minha vida”, mas repetia em vão, pois o passado sempre a visitava na forma de pesadelos.   Seu celular tocou novamente, ela o atendeu era Alan.

Vamos sair agora!?

Acabei de acordar.

Te pego em meia hora. — Desligou antes que ela pudesse recusar.

 Charlotte definitivamente não tinha vontade de sair, mas sentiu vontade de ver Alan novamente, sua insistência a deixava vaidosa, e ela nunca se sentido assim antes, tomou um banho rápido, vestiu a primeira calça (jeans) que viu pela frente, uma camiseta preta de Guerra nas Estrelas e jaqueta de jeans rasgado, sem maquiagem e rabo de cavalo. Alan chegou e tocou três vezes a campainha, ela olhou o relógio e pensou “Que pontual”.

Como você subiu?

Subornei o porteiro. — Disse ele, despreocupadamente.

Isso não é legal sabia? E aqui não tem porteiro, onde nós vamos?

O senhor dos manjericões, vamos caminhar na praça e ver o pôr do sol.

Mas não tem sol, aliás está bastante frio.

Mas é claro que o dia está com sol, ele apenas está escondido.

A pronto, donde vim me meter, bora logo, isso sim.

          Eu vou ser seu delicioso acaso, disse ele, enquanto abria a porta do carro para Charlotte entrar. Eles chegaram na praça e caminharam em silêncio por bastante tempo, o clima estava meio acinzentado e tinha folhas caindo das árvores, na verdade, estava um dia lindo para bater algumas fotos e ela se arrependeu de não ter levado sua câmera.

Eu amo essa paisagem melancólica. — Disse ele sendo sincero e quebrando o silêncio.

Eu também gosto, mostra o quanto somos humanos e solitários, no fundo, todos procuramos algo inalcançável.

Você tem jeito de escritora, e a alma de uma verdadeira poetisa.

Gosto de escrever vez ou outra, mas nunca escrevi nada tão bom. E o que você faz da vida?

Eu sou engenheiro, é só isso, minha vida é bem desinteressante, só trabalho diariamente, e às vezes saio para conhecer moças bonitas e fazer com que elas se apaixonem por mim loucamente, agora é a sua vez. Quando vai me mostrar seus escritos?

Não tem nada de interessante sobre mim, como você já sabe, eu moro lá na Vila Mariana, trabalho à noite lá no Arco, mas estou de férias, volto em duas semanas. E isso é tudo, não escrevo profissionalmente nem nada, só para passar o tempo.

Alan tinha um ar misterioso que encantava Charlotte, além de lindos olhos abismais, porém, ela tinha um gosto muito próprio para coisas e pessoas, pois sempre se encantou com tudo que aparentava ser incomum.

Vamos para Angra? Eu tenho uma casa lá, um pouco mais afastada, e tem uma vista incrível para a praia. — Convidou ele, não conseguindo disfarçar a empolgação na voz.

Eu não sei, tenho algumas coisas para fazer amanhã, depois te respondo.

Saiba que sou muito persistente.

Já percebi isso.

Com as mãos no bolso do casaco, Charlotte debruçou sobre a grade de proteção de um canteiro para observar um buraco no chão que podia ser de um tatu ou de uma toupeira, olhou bem para o chão mais de uma vez, pois jurava ter visto olhinhos lá no buraco. As folhas das árvores caíam em seus cabelos e o vento os faziam se mover de uma maneira lenta, quase magica, que Alan, hipnotizado, lembrava dos quadros impressionistas em exposição no D’Orsay e rezava para que ela nunca tivesse ido lá, de modo que ele poderia levá-la pela primeira vez.

Então, os dois caminhariam de mãos dadas às margens do canal Saint-Martin. Seus pensamentos foram interrompidos quando ela se desequilibrou e por pouco não caiu de cara no chão, ele a segurou a tempo e os dois ficaram com os rostos bem colados, o tempo parou naquele exato momento e ambos podiam ouvir seus batimentos cardíacos acelerados, beijaram-se carinhosamente, foi em uma tarde de inverno entre folhas secas e brisa que essa história teve início.

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