Capítulo 02

Uma espécie de pânico me acomete. Minha irmã diz que eu não posso ver uma pessoa em apuros que quero dar uma de herói — acho que é mal de família, entende? Sidda disse isso na vez em que ajudei a vizinha a conseguir uma cota extra de leite para os filhos. E também daquela vez em que carreguei um senhor nas costas para levá-lo ao hospital porque ele estava com intoxicação alimentar... Ou quando enfrentei uns arruaceiros que tinham encurralado um menino mais novo. Só para citar algumas. É, eu tenho fama!

E eu não ligo para criminosos, não mesmo. Não ligo se são presos e levados para a Fundição, onde os níveis de radiação são altos demais, ou expulsos dos muros da cidade. É errado roubar, simplesmente e para viver nessa cidade, temos que colaborar como sociedade.

Até aquele momento, pelo menos. É incrível de se pensar o quanto um simples fato pode mudar toda a sua perspectiva de encarar a vida.

Quando vejo o soldado apertando a mão contra o rifle, prestes a brigar com o rapaz e perceber o roubo que tinha acontecido, sem nem pensar nas minhas atitudes e no quanto eram perigosas, adianto-me:

Aí está você! — grito, chamando a atenção do guarda e das pessoas ao redor. O rapaz esconde o carnê por trás das costas e fica de pé, me encarando com seus dois olhos castanhos. Ele tem um rosto bonito, simétrico e me encara em dúvida. — É, você mesmo. — Chego perto o suficiente para puxá-lo pelo braço. — Onde estava que estou te procurando há horas?!

Mas eu… — O rapaz nem sabe o que dizer para corroborar a mentira, ele apenas mantém as mãos no bolso, escondendo os anéis.

Oh, muito obrigada. — A senhora passa por trás de mim, apressada, querendo fugir dali e se junta à multidão que esperava os tickets ali na frente.

Apoio a mão em sua cabeça, empurrando o garoto para baixo e fazendo o capuz cobrir melhor seu rosto.

Minha irmã estava procurando você. Acabaram os carnês. — Puxo-o dali. — Vamos embora.

Os soldados parecem se convencer e continuam conversando. O menininho fica parado, apenas nos observando sair, enquanto sua mãe, segurando em sua mãozinha pequena, o puxa para uma esteira, tomando seu rumo.

Subo em uma das esteiras sem escolher direção, apenas querendo me afastar depressa. Meu coração bate acelerado e o rapaz fica o tempo todo de cabeça baixa enquanto andamos por entre as pessoas, na direção contrária, e nos afastando dos elevadores.

Mantenho minha mão o tempo todo em sua nuca, guiando-o, mas só depois noto que estou indo para o lado errado. Solto um suspiro aborrecido, solto a mão do rapaz e estico o dedo bem diante de seu nariz:

Escute aqui, marginal, se você roubou esse carnê para vender e trocar por drogas, eu juro que vou…

Não foi nada disso. — O rapaz ergue a cabeça, me encarando e interrompendo minhas palavras. — E não sou um marginal.

Não completo a ameaça, apenas o fito. Dono de um rosto harmônico e sobrancelhas bem desenhadas, nada parecido com as pessoas do Andar Épsilon. Além disso, o cheiro de sabonete de sua pele exala forte, destacando-se do cheiro de suor e sujeira dos moradores de Épsilon, onde sabonete é algo raro. Sem contar os anéis de ouro!

Certamente não é de Épsilon também, com esses cabelos bem cuidados. — Empurro o capuz para trás, soltando seus cabelos que se derramam em tons castanhos por cima dos ombros. — Por que alguém como você roubaria carnês dos soldados? Tenho certeza que o seu crachá garante um bom lugar na fila da capela!

Dei o carnê. — O rapaz explica com um sorriso de canto e abaixa um pouco a cabeça, puxando os cabelos para trás da orelha, onde um brinco brilhante de metal dourado está.

Deu? Para quem? — Olho para trás, mas já estamos distantes do Átrio.

Para aquela senhora que estava falando com você antes. — Ele dá de ombros e coloca novamente a mão no bolso. Reparo em sua forma de falar, tão distinta, com o sotaque carregado dos espanhóis; ele é certamente dos andares mais altos. A forma com que ele enrola a sílaba na língua é deliciosa, para dizer o mínimo. — Acho que ela vai fazer bom uso e os soldados não poderão negar sua entrada, há muitas câmeras no lugar.

Você deu o carnê? — Solto uma risada nervosa, colocando as mãos na cintura, e não ligo se soa grosseiro. — Então se te revistar agora, não vou achar o carnê com você? — ameaço.

Uhhh, vai em frente, seu policial. — Ele ergue as mãos, aceitando o desafio, com um sorriso travesso no rosto.

Estreito os olhos franzindo a testa. Há pessoas ao redor de nós e tive a ligeira impressão de que ele estava flertando comigo. Ou me ofendendo. Tenho dificuldade de identificar qual dos dois.

Não sou policial para revistar você, mas se estiver escondendo algo nos seus bolsos, eu juro que…

Você jura muita coisa para um cara sem ação, não é? — O rapaz ergue as sobrancelhas escuras, analisando. — Vá em frente, vasculhe meus bolsos. — Convida jogando o quadril para o meu lado, ainda com os braços erguidos. — Se não encontrar nada, terá de me pagar uma cerveja.

Depois dessa, não consigo manter minhas mãos longe dele e transpasso os primeiros três dedos pelo bolso da calça cinzenta, que está vazio. A sua pele é fofa, macia, apesar dele ser magro é bem nutrido, como poucos.

E por acaso pessoas do Andar Nobre bebem cerveja daqui de baixo? — pergunto intrigado, vasculhando o outro bolso e apalpando por baixo de seus braços. Fico de frente para ele, apertando seus tríceps, algo totalmente desnecessário em uma revista, mas não resisti com alguém tão exótico. Ele é tangível e normal, mas não tem o corpo flácido e roliço como é de se esperar que sejam as pessoas bem alimentadas, digo, os cardeais são relativamente pançudos, alguns em exagero demonstrando sua vida de bonança, e esse é um padrão de beleza em Ascensor: reflete abundância no lar. — Quer dizer, a cerveja daqui pode não ser nada como a cerveja que você está acostumado.

Não tem como você saber com o que estou acostumado. — Há um aroma doce em seu hálito e percebo que ele masca algo como tabaco, porém açucarado como fruta mentolada, que cigarro diferente! — É capaz que a cerveja daqui seja melhor. É isso que significa experimentar coisas novas.

É isso que está fazendo? — pergunto aborrecido, cravando meus olhos nos dele e, a essa distância, posso ver que são naturalmente avermelhados de tão marrons. Vasculho os bolsos da jaqueta, descendo as mãos. — Procurando novas emoções? Entediado com a sua…

Está pulando os bolsos de trás. — Ele interrompe, notificando.

...Vidinha privilegiada no Andar Nobre? — Continuo a frase, passando as mãos pelos bolsos de trás da calça, um pouco incomodado por chegar tão perto de seu calor corporal, apalpando suas nádegas.

Isso, aperte assim. — Escuto sua respiração na minha orelha, de forma que arrepia a nuca e me afasto imediatamente.

Tem razão. Você está limpo. — Dou um passo para trás, escapando das insistentes garras de seu perfume herbal.

Há um sentimento dicotômico em me afastar, porém sou afetado por uma sensação única de segurança. Olho para os lados, as pessoas que estão na esteira não parecem prestar atenção em nós, algumas inclusive fazem questão de nos ignorar, então sei que passamos dos limites.

Viu? Nada nos bolsos… — Ele faz uma pausa travessa, mantendo as mãos para cima. — Mas, tudo nas mãos.

Ergo o queixo conferindo seus dedos longos e percebo meu crachá pendurado. É um pequeno cartão que contém toda nossa informação do universo, como número do seguro social, registro civil e créditos no banco central. Uso o meu preso em um cordão trançado que tem o símbolo do triskelion1 na ponta.

Devolva isso! — Ergo as mãos para pegar o colar, mas ele não solta e abaixa os braços. Seguro em suas mãos, são macias. Alguém que nunca precisou carregar nada e nem puxar o lodo do poço para conseguir água limpa. — Você tem mãos leves!

Elas são muito precisas também. — Ele se gaba, fechando os punhos e balançando. Quando abre as mãos, o colar com o cartão sumiu.

Bruxaria? Não, claro que não. Percebo que é um truque. O que ele fez com meu colar?

O que é você? Um maldito ilusionista?! — Solto as mãos dele e giro no mesmo lugar, olhando para o chão esperando encontrar o meu colar.

O coração palpita em desespero, perder esse objeto é perder a vida em Ascensor! Se os guardas te encontram perambulando sem identificação e fora do toque de recolher - pontualmente à meia-noite -, você é preso.

Acalme-se, está bem aqui comigo. — O rapaz avisa com seu timbre grave e manso. Eu giro para encará-lo, apenas para vê-lo descer da esteira e balançar o colar girando nos dedos.

Mas que maldito!

Como perdi a saída, subo no parapeito e pulo, causando uma pequena desordem nas pessoas e escutando algumas reclamações. Piso no chão com os dois pés e dou passos rápidos na direção dele, mas estou arfando como um touro raivoso e não estou em minha melhor sanidade no momento.

Você é um completo idiota! — Arranco o colar de suas mãos com força.

O rapaz dá um passo para trás, um pouco assustado com minha explosão, e apenas desvia os olhos de mim.

Tem razão, não foi muito legal da minha parte. — Ele desculpa-se e eu já me arrependo de ter explodido em sua frente. Coloco o colar no pescoço, passando para dentro da jaqueta e escondendo-o. — Mas que outra forma para atrair você em me pagar aquela cerveja que ficou devendo?!

Não fiquei devendo coisa alguma.

Então, no mínimo, aceite que eu te pague a cerveja em pedido de desculpas. Pelo “lance” do colar. — Estica as sobrancelhas esperando ansioso por uma resposta. — Deve ser um colar importante.

E é — respondo seco, sem dar detalhes. Eu devia mandá-lo se catar, voltar para o andar cheio de paredes de ouro de onde veio, mas não quero que ele vá embora. Em fato, ainda estou curioso, quero saber mais dele e passar mais tempo com ele. Solto um suspiro, coço a sobrancelha. — Depois da missa? Prometi para minha irmã que ia tentar pegar um daqueles tickets para o cinema — sugiro, colocando as mãos nos bolsos da calça cinzenta.

Ah, sim. — O rapaz torce a boca, um pouco contrariado. — Soarei rude se disser que consigo um desses tickets só para irmos agora?

Rude, não. Só uma criança mimada do andar Nobre que consegue tudo do seu jeito e comprando os outros — provoco, só para ver qual a reação dele.

Dizem que você só conhece verdadeiramente o caráter de uma pessoa quando ela fica irritada ou quando passa fome; no caso dele, acho que a segunda opção é muito distante de acontecer.

É, acho que sim. — Ele revira os olhos, cansado, e junta os cabelos com as mãos ágeis, colocando o capuz na cabeça. Estende a mão para mim. — Então, foi um prazer.

Não, nem pensar. — Nego com um balançar de cabeça. — Só me despeço de você como manda a Lei: quando você estiver diante de um elevador, indo seguramente para… O andar que você mora. Beta?

Alpha. Beta é onde ficam as fábricas. — O rapaz me corrige e começa a andar para trás. — Porém, sinto muito, vou tomar uma cerveja, primeiro. — Ele ergue as mãos em sinal de que nem se importa.

O que há comigo que não consigo ter pulso firme com as pessoas?! Solto um suspiro e rapidamente o sigo; vejo quando ele gira, prestes a perder-se na multidão de pessoas com roupas cinza e capuz e seguro em seu braço antes que suma.

Uma cerveja e isso é tudo — concordo com a voz firme, tentando parecer um soldado como o que pretendo ser futuramente.

Ele dá um daqueles sorrisos leves e sei o quanto estou encrencado.

1 Em Ascensor utilizar símbolos de religiões esquecidas é um crime grave.

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