“Se você ainda não achou uma causa pela qualvalha a pena morrer, você ainda não achou a razão de viver.”
Martin Luther King
Desperto com a certeza de que a liberdade é um sonho. Os muros da cidade são como uma grande prisão perpétua. Residir em Ascensor é o mesmo que nunca poder ver o céu ou a terra que existe do lado de fora. E ninguém seria louco. Cem anos atrás, um grande desastre nuclear limpou a vida como conhecemos da superfície do planeta e os níveis de radiação são tão altos que uma pessoa morreria em menos de uma semana. É o que dizem. Ninguém nunca saiu da cidade para ter certeza, quem se arriscaria?
Os portões da cidade apenas se abrem quando alguém é expulso e isso acontece com quase nenhuma frequência. As pessoas vivem pelas leis de Ascensor, através da Santíssima Imagem do Grandapastor. Você reza todos os dias para a sua vida imunda melhorar, mas exceto por esforço próprio, nada - nem mesmo o Deus - fará algo por você. As cotas de alimentação, água e ar são as mesmas para todos que moram no Andar Épsilon e, a menos que você consiga melhorar sua pontuação, você morrerá com a casta que nasceu.
Bem, isso para aqueles que acreditam em um único Deus. “Nur unu Lego”1. É o que vemos entalhado em todas as esquinas de Ascensor, na frente das pequenas capelas e nos uniformes do exército, mas, para mim, nunca foi um só. Acredito que a verdadeira força vem da união. Mas se eu disser isso em voz alta serei considerado um herege e esse é o pior crime que um homem ou mulher que vive em Ascensor pode cometer.
Você tem de viver pela Lei do Deus Único.
— Einar! Se você se atrasar, eu vou te matar! — Minha irmã grita do pequeno cubículo que chamamos de banheiro.
Meus ancestrais deviam viver de forma muito boa, mas o que temos é um cano largo como fossa, outro cano mais fino para o banho e um contador maldito que regula as cotas de água diárias. Não é sempre, mas às vezes acontece de Sidda demorar-se tanto no banho que não sobra água para mim.
Maldito Andar Épsilon. Não vejo a hora de sair desse lugar imundo.
Sento empurrando os lençóis. Minha cama é o sofá da pequena sala conjugada com a cozinha. O quarto tem uma porta de correr, onde Sidda dorme. O quarto costumava ser de nossos pais, isto é, antes deles morrerem com a Grande Intoxicação no dia em que houve um vazamento de esgoto — lixo puramente radioativo que veio dos andares de cima. O que eles fazem lá?! De qualquer forma, depois que fecharam o vazamento, algumas pessoas foram detectadas com níveis altos de radiação; tentamos diversos tratamentos que estavam disponíveis na única ala do hospital destinada a nós dos andares de baixo, mas não haviam remédios e os quelantes não funcionaram.
— Já levantei. — Sem humor, fico em pé, e apenas de cueca, e passo as mãos nos cabelos loiros e compridos que jogo para trás, prendendo-os em um coque despenteado.
Na cozinha, Sidda já passou o café, geralmente ralo para economizar o pó, mas ela sempre me lembra o quanto temos de agradecer o que temos. O cheiro chama minha atenção e faz a minha barriga roncar. Vou até a cozinha, pego uma caneca de ferro velho e encho.
— Ah, levantou. Bem senti o aroma, fedorento! — Sidda sai do banheiro com um sorriso grande em seu rosto bonito e de beleza idêntica à de minha mãe quando era viva. A maior diferença entre elas, além da juventude, são os olhos.
Sidda nasceu com heterocromia, um olho quase castanho-escuro e o outro de um azul vívido. Acompanhada dessa mutação veio uma irreparável surdez. Quer dizer, irreparável para quem mora nos andares de baixo... Ouvi dizer que, nos andares de cima, surdez é tratável.
— Fedorento é aquele seu coelho imprestável.
— Não fale mal de Zuzu, coelhos não fedem. Aliás, você não vai se atrasar?
— Vou só tomar café e me trocar.
— Apenas tome o café e se troque. — Ela fala baixinho, com um sorriso.
Esforçada, Sidda tenta ler os lábios para compreender o que estamos falando, mas ela não é muito boa nisso, sua visão também é prejudicada pela mutação. Pelo menos minha irmã não nasceu com deformidades maiores, aquelas que fazem os bebês e suas mães serem expulsos da cidade. Má-genética, como pode perceber, é um crime também.
Aceno que sim com a cabeça e Sidda se afasta, indo alimentar Zuzu, o coelho que ganhou em uma feirinha que teve no Átrium. É um troço inútil; fiquei tão bravo quando ela ganhou um bicho que só come e faz sujeira, mas ela sorriu bastante e eu amoleci. Esse é o dom da minha irmã: fazer-me parecer um panaca sem pulso firme. O que os recrutadores do exército diriam se soubessem que não consigo dizer não à minha irmã?
O vizinho já tentou matar o coelho muitas vezes, sei que quer comê-lo, todos já comeram os seus, mas Sidda protege Zuzu como quem protege uma criança.
Depois de engolir o café amargo, vou para o banheiro, onde lavo os sovacos e a nuca com um punhado de água tratada, para refrescar. A cada dia parece mais quente e eu me pergunto se os exaustores estão com problemas, ou o sistema de calefação. Não deveria ser tão quente. Coloco a calça cinza e a camiseta mesclada do uniforme. Todos receberam basicamente o mesmo kit, vêm três pares e você tem de se virar com eles por um ano. Antes, davam de seis em seis meses, mas parece que houve um problema com a produção de tecido sintético. Escovo os dentes, não com pasta de dentes, esse item é extremamente raro por aqui, mas minha irmã consegue fazer uma pomada que fica parecida, usando um pouco da manteiga que vem no kit alimentação e um punhado de ervas.
Pois é. Se os soldados vissem minha irmã pensariam que ela é algum tipo de bruxa por conseguir fazer menta germinar, mas ela apenas tem o dom de fazer crescer ervas em vasos com água. E sim, ela filtra xixi para tal feito. Uma vez, Sidda fez minha melhor amiga urinar em uma latinha de sopa de tomate para poder filtrar… Essa é Sidda, sempre consegue que as pessoas façam tudo por ela com um sorriso meigo e o brilho esperançoso do seu olhar.
Não acredito que Aki, minha melhor amiga, achou ruim ter um tubo de pomada para os dentes naquele mês. Foi um agradecimento por toda sua colaboração urinária!
Ainda tenho vontade de gargalhar quando me lembro disso, mas tornou-se algo normal. Sidda troca coisas com as pessoas e isso nos traz um pouco mais de conforto. Tubos de pomada para dentes valem bons potes de geleia e um pouco de ração para coelho. Já falei que detesto esse coelho? Só de pensar nas latas de cerveja que deixo de tomar para trocar por ração para esse orelhudo, ugh!
— Vamos, Einar! Você sabe o que acontece quando a gente se atrasa para a missa no domingo. — Com olhos carregados de repreensão, Sidda me encara.
Sim, eu sei. Recebemos menos cotas de várias coisas, mas especialmente entretenimento. Os tickets são dados no final da missa e, eu juro, esses papeizinhos coloridos são o único motivo pelo qual eu vou para esse lugar. Não acredito em um Deus Único. Talvez os Deuses estejam mesmo muito infelizes com os homens e por isso estamos confinados nesta prisão de ferro.
— Estou pronto! — Pego minha jaqueta cinzenta e coloco no corpo, puxando o capuz para a cabeça, e calço as botas de borracha que vem no kit.
Sidda já está na porta, colocando o capuz em sua cabeça. Ela dá um sorriso contente e espicha o olho para conferir se o coelho fedido ainda está na gaiola que construímos em seu quarto. Passo para fora, pisando no corredor com cheiro de urina, e seguimos dali para as esteiras que nos levarão até os elevadores no Átrium.
— Vamos logo, temos de pegar um lugar na frente! — Minha irmã segurou meu braço e me puxou, apressada. — O mais perto do padre Zabala, melhor para escutar.
Eu dou uma risada e me aproximo dela, falando em seu ouvido com a voz alta:
— Tem certeza que você não está apenas querendo ver o padre? — Afasto-me e estico as sobrancelhas provocando.
— Cale a boca, ele é padre. Sabia que padres são se casam?! — Sidda revira os olhos.
Bem, isso é verdade! Antes do Padre Zabala havia outro padre que cuidava do nosso distrito, ele era mais relaxado e não se importava em agregar rituais da Antiga Religião ou dos budistas, que eram numerosos em nosso setor, mas quando ele foi pego dormindo com uma prostituta no bordel, foi preso. Então veio o Padre Zabala, mais novo. A capela ficou ainda mais cheia de jovens meninas e eu temia que Sidda fosse apenas mais uma delas.
Passando dos corredores, o que víamos eram mais pessoas que, como nós, dirigiam-se às capelas. As pequenas recebem o nome de Malgranda, mas são nas maiores que os bons tickets são dados e naquela vez eu tinha prometido à Sidda que iríamos conseguir um ticket para o cinema. Eu estava focado!
— Ei, colega! — Escuto uma voz conhecida e a mão quente pesa no meu ombro. Giro para encarar Aki, uma de minhas amigas de infância, acompanhada de seu irmão e a esposa grávida dele. — Que milagre aconteceu que você vai à missa?
— Sidda não me deixaria dormir de novo. — Balanço a cabeça rindo. — Sabe que se faltarmos três vezes seguidas eles nos tiram de casa à força e não posso ficar sendo fichado à toa; quero tentar uma vaga no Exército no próximo recrutamento.
— Estamos quase lá, viking. — Ela ergue as sobrancelhas escuras por cima de seus olhos castanhos e estranhamente largos para uma descendente dos orientais.
Dou um sorriso por causa do apelido que ela me deu e continuo o caminho. No setor em que moro ficam os descendentes dos escandinavos e os descendentes do Oriente. Ascensor é como uma Torre de Babel moderna: muitas nações foram inseridas em seu interior depois do desastre nuclear e existe até uma língua universal que aprendemos desde pequenos, porém, há alguns núcleos que ainda mantém, às sombras da grande igreja, as tradições antigas.
— E como está o bebê, Michiru? — Sidda pergunta para a esposa de Hironobu (ou simplesmente Hiro). Só então reparo que sua barriga está cada vez maior e que não vai demorar muito para ela ter essa criança. — Desenvolvendo bem?
— Estive com a Dra. Charo ontem, ela me perguntou de você. — Michiru diz, fazendo minha irmã franzir a testa, acho que tentando entender suas palavras e ler os lábios dela ao mesmo tempo. — Sabe que ela quer fazer testes em sua audição, para ver se pode usar um aparelho.
— Como se eu pudesse pagar por um. — Sidda torce a boca chateada.
Eu suspiro. Esse é outro motivo pelo qual preciso sair do Andar Épsilon o mais depressa possível, para ter condições de pagar um aparelho auditivo. O assunto me anima um pouco.
— Quê? Tem uma médica testando as orelhas de Sidda? — Puxo minha irmã em uma chave de braço cheio de músculos treinados para o exército exércitoe belisco a orelha dela. — Não me contou nada, pequena!
— Não sou pequena! — Ela me dá uma cotovelada nas costelas.
— Ai! — E tenho de soltá-la para segurar o corpo. — Surda, porém, um monstro do ataque baixo! — resmungo.
— Surda é sua avó! — Sidda cruza os braços e empina o nariz.
— Devia comparecer no setor hospitalar, Einar. A Dra. Charo é nova por lá e ela já fez coisas muito boas para todos nós. — Michiru toca no meu ombro de leve, mas rapidamente tira a mão, dando para seu marido.
— É, ela conseguiu um ultrassom e pudemos ver o bebê por um monitor. — Hiro abre um sorriso de dentes tortos, mas com grande animação.
— Que bom vê-lo sorrir, amigo — digo. — Lembro quando ficou sabendo que Michiru estava grávida e entrou em pânico.
— Einar! — Hiro me fulmina com seu olhar apertado e baixo. Ops!
— Ah, sim, muito bom que superou o medo de ser papai. — Michiru o repreende. Apesar de tentar parecer brava, Michiru é uma mulher com ternura no olhar; mesmo quando brava, seu rosto é complacente e amoroso.
— Não é medo de ser pai, eu vou ser o melhor pai do mundo! — Meu amigo bate a mão livre no peito como um gorila defendendo o território. — O medo é de não ter condições de criar, ou de pagar por um bom leito para você no hospital.
— Vai dar tudo certo quando entrarmos no Andar Gama. — Aki diz com convicção, se escorando no corrimão da esteira.
Dou um sorriso e me encosto também, lembrando-me de que essa ideia foi dela e do quanto treinamos por anos para conseguir uma boa colocação e ter nossos nomes na lista dos aptos a se apresentarem para recrutamento. Só mais uma prova e estaríamos dentro! Uma vez no Andar Gama, tudo seria mais fácil e mais acessível.
— Vou falar com a Dra. Charo, se Sidda é apta a receber um implante auditivo, quero ter os documentos necessários para quando eu puder comprá-los. — Sentencio.
As esteiras chegam ao seu destino final e caminhamos até os elevadores que dão acesso à Sankta Capelo. As filas para lá são ainda maiores que para a Malgranda onde o Padre Zabala dá o seu sermão, mas hoje parecem mais vazias; talvez seja o horário, já que pela primeira vez não me atrasei!
Isso me dá uma ideia. Se a Malgranda do padre Zabala dá bons tickets, imagine o que não se pode conseguir no pátio da Sankta Capelo que fica nos últimos andares?! É o único lugar que é acessível para todo o povo, pertence ao povo: “La Capelo pertenas a la homo”2, eles dizem. Com sorte, podemos fazer parte dos dez convocados do Andar Plebeu a assistir à missa na igreja mais importante de toda a cidade vertical.
Com esses pensamentos, puxo a jaqueta de Sidda que se vira para mim brava como se eu fosse criança, mas esse é um bom jeito de chamar sua atenção!
— Quer tentar ir à Sankta Capelo? — pergunto animado.
— Ugh, boa sorte. É impossível de conseguir um lugar, eles dão senhas muito antes, sabia? — Aki chama minha atenção.
— O elevador está vazio para lá, quem sabe não tem ninguém ainda... — retruco, colocando as mãos na cintura.
— Quem sabe já esgotaram. — Michiru dá um sorriso fraco, tentando não me ferir com sua compaixão.
— Vou olhar mesmo assim, vamos Sidda? — Chamo minha irmã, estendendo a mão.
— Uhhh. — Ela olha para Aki, depois para Hiro e por fim, para Michiru, quase como se quisesse pedir socorro a eles.
— Eu guardo um lugar para você na frente pelo tempo que aguentar, mas não demore! — Aki garante.
— Tá bom! Obrigada! — Sidda segura na minha mão. — Vamos tentar.
— Vai, viking! — Aki ainda zomba, enquanto mudamos de esteira e nos afastamos dela em direção ao elevador dos setores acima.
Há dois guardas na porta do elevador, uniformizados de preto e com o símbolo do exército no braço onde podemos ler “um só homem, um só deus, uma só verdade”, lema da cidade. Seus rifles, coletes e capacetes parecem um tanto exagerados. Eles estão contando um carnê com tickets amarelos que nos autorizam a ir para o andar nobre e entrar na capela. Reparo que tem várias pessoas esperando por ali, mas nenhuma pede os tickets para ir.
— Soldado, bom dia e saudações! Queremos subir para a Sankta Capelo — anuncio, chegando perto deles com minha irmã e reverenciando-os colocando a mão na testa.
— Acabaram os tickets de autorização. — O soldado diz, me encarando por trás de sua máscara. O outro apenas guarda seu carnê no bolso de trás da calça.
— Mas, estavam mexendo em um carnê... — Aponto.
— Einar. — Sidda segura minha mão, puxando em repreensão.
— O quê? Eles estavam com um carnê bem ali, eu vi! — Mais uma vez aponto, para ela ver.
Aliás, muitas pessoas ao redor veem e começam a cochichar entre si. Uma mulher de cabelos grisalhos trançados e loiros, se adianta:
— Eles guardam para as namoradas. — E cruza os braços com pulseiras feitas de pedaços de metal e material reciclado, imitando as joias dos nobres. Nunca vemos nobres nos andares de baixo, mas eles aparecem bastante nos programas de televisão, elogiando o governo... Claro, para eles não falta nada!
— Algum problema, minha senhora? — O soldado sem o carnê empunha o rifle.
— Não, nenhum problema. — Puxo Sidda e empurro um pouco a senhora dali, antes que sobre para ela. — Vamos, senhora.
— Isso é injusto! — Sidda resmunga chateada e solta a minha mão. Suspiro triste. — Vou correndo pegar lugar com Aki antes que eu perca! — E sai correndo na frente.
— Sidda! — Eu chamo, embora seja em vão. Desesperada, minha irmã não me escuta e se perde na multidão, trocando rapidamente de esteiras para chegar mais depressa.
— Oh, pobrezinha, ela queria mesmo ir lá em cima. — A senhora repara com voz melancólica, colocando a mão no rosto enrugado de pele escura.
— É, queria. Deixa para lá. — Balanço a cabeça, sentindo o coque soltar do elástico.
Giro, em direção às esteiras para voltar o caminho e seguir até a Malgranda do Padre Zabala e encontrar, com sorte, minha irmã e amigos, ainda na tentativa de pegar um lugar antes que esse também se esgote.
Passo pelos dois soldados que estão rindo e comentando amenidades, como se sumir com um carnê propositalmente fosse algo totalmente corriqueiro. Isso me irrita, mas em minha posição é melhor não tentar nada; posso perder pontuação e o direito de fazer a prova para o exército.
Antes de sair totalmente da área, entretanto, vejo uma pessoa de vestes cinzas e capuz cobrindo boa parte do rosto abaixada perto dos soldados, do lado da caixa quadrada e prateada que era o elevador, esticando o braço para pegar o carnê.
Pelo estado das roupas, pareciam novas. Novas demais para não serem roubadas da fábrica com o intuito de se misturar na multidão; arruaceiros ou curiosos, talvez, ainda assim, intrigante. Quem lá de cima desce os andares para se misturar com o pessoal daqui? Ou ainda, para furtar os guardas?!
Paro ali mesmo, um tanto atônito, procurando entender. O rapaz possui porte alto, magro, mas ágil, um sorriso divertido em seus lábios é o sinal de que ele está fazendo aquilo por diversão. Sorrateiro, puxa o carnê sem o guarda perceber.
Uma criança de cabelos vermelhos passando por ali o vê, percebe o que ele está fazendo e, com um dedo com anéis de ouro em frente à boca, o rapaz pede silêncio. E bem nessa hora o soldado se vira, atraído pelo pequeno menino de olhos arregalados em susto.
Isso não vai ser bom! Já imagino o rapaz sendo alvejado pelos rifles e tenho certeza de que preciso tomar uma atitude, urgente.
1 Tradução: “Uma só Lei”.
2 Tradução: “A igreja pertence ao homem”.
Uma espécie de pânico me acomete. Minha irmã diz que eu não posso ver uma pessoa em apuros que quero dar uma de herói — acho que é mal de família, entende? Sidda disse isso na vez em que ajudei a vizinha a conseguir uma cota extra de leite para os filhos. E também daquela vez em que carreguei um senhor nas costas para levá-lo ao hospital porque ele estava com intoxicação alimentar... Ou quando enfrentei uns arruaceiros que tinham encurralado um menino mais novo. Só para citar algumas. É, eu tenho fama! Em Ascensor o consumo de álcool é restrito e para poucos. Beber é considerado um caso de autointoxicação e um crime contra a vida, mas existem locais mais ou menos liberados pela Uma só Lei, que é o único código de condutas de Ascensor.Há alguns restaurantes que servem bebidas, é verdade, com baixo teor alcóolico e só abrem aos domingos, quando os padres mergulham a hóstia em vinho tinto. Mas, se você procurar bem, em pequenas portinholas entre com&Capítulo 03
A água quase morna escorre pelo meu corpo, descendo apressada e esquentando minhas partes íntimas, que seguro com firmeza. O sabão escorre dos cabelos, adentrando a boca e mordo os lábios, segurando um gemido ao pensar nos lábios polposos de Adrián. Eu devia ter beijado aquele desgraçado.Como um castigo dos céus a água cessa. Sou imediatamente interrompido e passo as mãos no rosto ensaboado, meus cabelos estão cheios de espuma e nem comecei o banho direito! Olho para o cano,
Apenas mais um de muitos. O sentimento de não ser importante está latejando em meu cérebro, um pequeno lembrete do quanto a prova era um teste não apenas de resistência, mas de perseverança. Meus olhos podem ver uma infinidade de aspirantes ao posto de soldado das Forças Armadas da Cidade Vertical, ou, como chamamos VUAF1. Era desanimante!— Vocês viram aquela garota?! — Um soldado de barba que estava avaliando o meu grupo comenta, interrompendo as gritarias de “mais um,
— Perdeu a cabeça? — Adrián tem os olhos castanhos e adoráveis como uma arma na minha direção. Um sorriso idiota estampa meu rosto por conseguir sua atenção. — Devolva agora. Depois que mostrei a ele a latinha, escondi nas roupas. Recebemos chaves, uniformes e fomos encaminhados para um dos vestiários. O local era especialmente limpo, com cheiro de shampoo, com um pouco de névoa causado pelo banho dos oficiais que estavam trocando de turno.
— A Doutora já vem. — A recepcionista diz com um sorrisinho. — Obrigado. — Giro para trás, apoiando os cotovelos no balcão. O hospital é o mesmo para os soldados e para as pessoas dos outros setores. Exceto o Andar Alfa, é claro. Como Adrián foi trazido pelos soldados, ninguém se importou com o fato de ele ser atendido como um aspirante ao Exército, o colocaram em um dos quartos naquele setor destinado ao Andar Gam
— Não sei o que farei, agora que não passei na VUAF. — Hironobu está desolado, seus cabelos estão mais bagunçados que o normal. Deveríamos estar comemorando, mas sou incapaz de dizer qualquer coisa para confortá-lo. — Precisávamos tanto, por causa do bebê.Sua voz engalfinha na garganta. Ele tenta segurar a explosão de choro. A sala de espera do hospital na ala destinada aos pacientes do Setor Épsilon está abarrotada de pessoas, não há lei
— Você pode me chamar de Charo, não precisa ficar o tempo todo colocando doutora na frente, Einar. — A voluptuosa médica senta-se na poltrona marcada com a letra e o número correspondente no cartão de cinema.No suntuoso hall de tapete vermelho e creme, soldados conferiam os cartões. Vi pessoas que