Nova Orleans, 1860 – Louisiana
Era uma linda manhã ensolarada de verão, com temperaturas amenas para meados de julho. O cabelo preto dela ricocheteava com a brisa enquanto caminhava pela grama verde, que se estendia além das plantações de algodão até as margens do Mississipi. O vestido de saias amplo erguido para possibilitar sua fuga da moça negra que arfava há muitos metros de distância, com uma sombrinha de tecido e renda entre os dedos, alertando-a:
– Senhorita Aragón, não vá por aí! – era quase um tropeço de letras mal arrumadas na boca da ama, que suava ferozmente quando apoiou as palmas das mãos contra os joelhos, procurando por ar. O vulto da moça tornando-se embaçado ao longe. – Ela nunca me dá ouvidos! – protestou, engolindo o ar rapidamente conforme os risos da morena chegavam-lhe aos ouvidos e seu corpo era largado ao chão, exausto.
Os fios pretos serpenteavam por seu rosto, que não ostentava mais que dezessete anos em traços. Os olhos de um castanho escuro e profundo e os lábios rubros partidos, quebrando ligeiramente o coração harmônico e perfeito que formavam, respirando acelerado. A curiosidade que o brilho dos castanhos exprimia conforme ela diminuía a velocidade, agachando-se entre os teixos mais volumosos na beira do rio. O vestido esverdeado misturando-se à grama, enquanto seu olhar buscava avidamente a imagem emergida da água. O risinho típico de menina, que levou as mãos aos lábios carnudos rapidamente para abafá-lo, sem conseguir entretanto, desviar o olhar da cena.
O corpo de homem ungido em gotas, que corriam unidas pelo tórax quase perfeito, não fosse por algumas cicatrizes, que os olhos castanhos da moça cobriam com avidez, como se as curassem. A calça bege colada ás pernas, desenhando-as sob o tecido rústico. O suspiro que ela deixou escapar sem perceber quando ele passeou os dedos entre os cabelos castanhos, arrumando-os displicentemente e fazendo mais gotas descerem pelos seus ombros e abdômen. Seus olhos incrédulos encontraram os olhos cor de mel a meio caminho de seu esconderijo: a folhagem verde e alta que delimitavam as duas propriedades. Uma cerca viva que corria toda a extensão da outra, feita de madeira. A certeza do coração dela, batendo ferozmente, de que ele a vira e o grito da ama que a denunciou:
– Senhorita Amira, se continuar se escondendo dessa forma, vou contar tudo para seu pai!
O sorriso que ela viu corromper os lábios dele ao se abaixar e tomar a blusa branca entre os dedos, sobre a grama a sua frente, vestindo-a. O olhar se voltando a ela, aquecendo-a ao fechar o último botão e ouvir o novo alerta da ama, que surgiu junto á alameda de árvores margeando o rio na propriedade dela.
– Saia já do seu esconderijo! – ordenou a ama, que não deveria ter mais do que a idade da moça escondida, uns dezoito anos.
O rosto corado que ele viu surgir em meio aos teixos, com cabelos pretos desarrumados a sua volta e olhos castanhos. O sorriso que entremeou a vergonha dela, sendo abonado pelo cumprimento de cabeça que ele deixou em sua direção, vendo o rubor de suas bochechas esfogueadas tomar-lhe o rosto por completo enquanto ela erguia o pesado vestido e corria ao encontro da voz da ama.
– Já vou!
Ele abaixou a cabeça e o corpo, pegando o chapéu e desamassando-o, colocando-o por sobre os cabelos castanhos na altura do pescoço.
– Amira – ele murmurou para si mesmo quando se pôs em movimento, tomando o caminho da mansão, que surgiu ao longe com seus dois pavimentos e amplas varandas cobrindo toda a frente, formando pequenos arcos.
O sol refletia nos vidros das janelas de venezianas azuis contra as fachadas de madeira pintadas de branco. O olhar dele parou sobre o rapaz louro que surgiu à porta, num vestuário escuro e elegante, que destoava do traje roto usado pelo homem baixo e franzino com a barba por fazer e cabelos crespos, com quem o primeiro conversava.
– Se está tudo certo, amanhã enviaremos os fardos ao porto. – O homem assentiu e se distanciou do louro, passando no caminho por ele e retirando o chapéu de feltro preto numa reverência mais formal.
– Bom dia, Sr. Butler.
– Bom dia, Ted.
Robert Stuart era o capataz de Little Channel. Mantinha a produção de algodão em dia e os escravos alimentados. Ordens do patrão, o Sr. Joseph Butler. As más-línguas da cidade diziam que ele e o sobrinho, Aiden Pembroke, eram uma espécie de solteirões excêntricos, além de excepcionalmente ricos. E eventualmente, surgiam boatos de que alguma jovem da região havia sido seduzida pelo charme de um dos rapazes. Verdade ou não, isso tornava a propriedade de Little Channel alvo de muito misticismo. Não era raro encontrar um empregado que havia visto os patrões confraternizando com escravos, em festejos estranhos. Assim como, por outro lado, os dois homens eram tidos como visionários, já que recentemente, Aiden Pembroke havia se envolvido como sócio de uma companhia de navegação do Norte, firmando contratos valiosos. Tudo isso, claro, à meia boca. Se por um lado os pais tinham receio das intenções dos cavalheiros e os fazendeiros e medo do que poderia resultar a aliança entre Butler e o Norte; naquelas alturas, as mães sorriam-lhe e anteviam uma união repleta de bons frutos para suas filhas, caso um dos dois rapazes cortejassem suas herdeiras.
O olhar castanho de Joseph caiu sobre Aiden quando subia os degraus da varanda. Ele solicitou:
– Venha, temos que conversar...
O louro assentiu e seguiu-o até o interior da casa. Eles atravessaram a sala, pouco decorada em tábuas corridas e entraram numa espécie de biblioteca.
– O que o preocupa? – sugeriu Aiden, assim que a porta se fechou atrás deles.
– Nossos negócios no Norte... – ponderou Joseph, retirando o chapéu de couro marrom curtido do sol e depositando-o sobre a mesa ao seu lado.
– Estão bem. Prosperando, como sempre – certificou-se o louro, observando o outro, preocupado.
– Não é sobre prosperidade que falo... – Encarou-o Joseph. – A repercussão disso em meio à fomentação dessa candidatura de Lincoln ao governo. Estamos à beira de uma guerra, Aiden!
– E estaremos do lado vencedor, seja lá qual ele for – rebateu o rapaz.
– Vejo que não me faço entender... – interrompeu-o, afastando as pesadas cortinas de veludo azul escuro da janela. – As pessoas estão comentando demais sobre nós. – Estreitou seu olhar além dos campos de algodão.
– Nunca se importou com isso, Joseph – ponderou o louro. – O que há de errado agora? Quais são os novos comentários? – Ergueu a sobrancelha esquerda como se tivesse perdido as boas novas.
– Sabe que não gostam de nossa presença, somos os lobos entre os cordeiros...
O sorriso se abriu nos lábios do mais novo.
– Isto realmente se encaixa bem... – Meneou a cabeça para o lado.
– Conhece Amira?
– A Aragón? – surpreendeu-se Aiden, caminhando atrás dele, á espreita. – Ela não é nova demais?
– Nova demais? – indagou sonso e virou-se para o louro, sério. – O que estás pensando? Não estou à procura de uma novilha, está confundindo o Don Juan.
– Não mesmo – retrucou firme, atirando-se na cadeira atrás da pesada mesa de carvalho. – Há anos não o vejo ter interesse por uma mulher. Talvez algum fetiche, mas interesse... O que há entre você e ela?
Joseph sorriu de canto, negando com a cabeça.
– Não há nada, a moça apenas estava hoje na cerca que divide nossas propriedades... – disse, desviando o olhar.
– É mesmo? E esse acontecimento se restringiu somente a hoje... – Ele estalou os lábios.
Houve dois segundos de silêncio e um olhar mordaz por parte de Joseph antes que o louro completasse, cínico:
– Ela te encantou.
– Aiden... – alertou o mais velho.
– Estou apenas pondo em palavras o que a sua expressão me diz. – Ergueu-se de súbito e andou até a porta. – A propósito, recebemos um convite essa manhã, está sobre sua mesa... – Indicou com a cabeça o pequeno envelope. – Vai gostar do conteúdo.
Sorriu e cerrou a madeira atrás de si. O olhar cor de mel caiu sobre o envelope amarelado no tampo da mesa de madeira, hesitando. A mão pesada decidiu no instante seguinte, tomando-o entre os dedos grossos e abrindo-o. As letras femininas surgiram numa grafia florida convidando-os para um baile de aniversário na semana seguinte em La Nube, a propriedade vizinha. Voltou a dobrar o papel e devolvê-lo ao envelope, um meio sorriso inclinou o canto de seus lábios.
***
O centro da cidade estava movimentado, as famílias se aglomeravam em frente ao teatro para ver La Bohéme. Os coches surgiam trazendo cada vez mais pessoas, mas a moça morena pisou os degraus de mármore do teatro com o braço enlaçado ao do pai, que conduzia ela e a mãe até a frisa que alugaram. O pequeno espaço delimitado para seis pessoas tornava-se amplo para comportar os três confortavelmente. Havia ainda algum murmúrio quando se acomodaram nas cadeiras aveludadas, mas tudo cessou nas notas do primeiro ato. Os olhos castanhos da moça se fixaram na cena e o mundo a sua volta perdeu o sentido diante da beleza do espetáculo.
A última ária anunciou o início do intervalo e Amira se ergueu para dar uma volta, notando o silêncio que ainda reinava absoluto na frisa ao lado. Nem mesmo um cumprimento educado, como era o costume. A ruga entre suas sobrancelhas aumentou. Era curioso que seu ocupante não fosse alguém conhecido, mas esse era um pequeno delito que ela remediaria depois. No momento, precisava de ar. Deixou o lugar através das grossas cortinas de veludo verde-musgo. Outras famílias se deslocaram para o corredor e as conversas fluíam animadas entre as rendas dos leques abanados contra o calor pelas várias damas ali dispostas. Fitou os rostos conhecidos, acenando cumprimentos de cabeça enquanto ela abria caminho para si e o seu vestido rodado, até que um homem lhe tampou completamente a passagem.
– Com licença, senhor... – ela disse, determinada, erguendo o olhar e suprimindo o ar de seus pulmões ao deparar com olhos méis que a fitavam, atentos.
– Mil perdões, senhorita – ele deixou seu rosto ir ao encontro do dela, conforme lhe fazia uma mesura. – Não percebi que ocupava tanto espaço... – completou ao voltar à posição inicial e notá-la corada. Sorriu.
– Não... – Amira falseou duas notas diante da intensidade daquele olhar. Ao perceber que estava parada a menos de dois passos da entrada da frisa contígua a sua, completou baixo: – ... Tem importância.
– Permita-me, então, comprar-lhe um refresco que amenize minha falta – sugeriu, fitando-a atentamente. – Creio que se nos apressarmos, ainda temos três minutos para fazê-lo.
Ela concordou de súbito, cedendo sua mão a dele, que a conduziu entre as outras pessoas. Não foram poucas as exclamações e os olhares que deixaram ao circular em meio aos vizinhos. Para eles, era notório que Joseph Butler ostentava a moça em seus braços ou para qualquer um que quisesse dispensar um pouco de atenção ao casal. Afinal, como não olhá-los? A moça tinha cabelos pretos compridos, a pele clara e olhos de um castanho intenso; Joseph contrastava perfeitamente com ela em sua altura e cabelos claros, sob os olhos num tom de mel fascinante.
– Uva? – ele proferiu, aveludado ao seu lado, cortando-lhe os pensamentos em dois. – Groselha?
Ele tornou a entreabrir os lábios para sugerir-lhe mais um sabor, mas foi impedido pela resposta rápida dela:
– Uva está ótimo.
O refresco foi solicitado e entregue. Os olhos castanhos dela se abriram ainda mais ao perceber que seus dedos roçaram nos dele ao redor do copo, num breve contato. Procurava encará-lo, mas ele se desviava, levando consigo o corpo para longe. O ar ao redor deles pesou em notas de baunilha e, junto à isso, a primeira campainha de aviso para o início do segundo ato soou. Não foi mais que um gesto rápido e eventualmente rude, que o fez tomar das mãos dela o copo, o líquido quase intocado e na continuidade do movimento arrastá-la dali, murmurando:
– Devemos ir. – O cheiro dela impregnando sua mente, lhe atordoando os sentidos da forma que só a lua brilhante e plena no céu era capaz de fazer. E isso significava perigo. – Seus pais ficarão preocupados se não chegar antes do segundo toque.
Amira simplesmente não respondeu. Sua cabeça trabalhava no motivo para aquela mudança de comportamento dele enquanto distribuía desculpas pelos eventuais esbarrões dispensados às pessoas no caminho de volta, que também retornavam para seus lugares. Gostaria de perguntar, questionar... Mas o cenho fechado dele e o formigamento em seu pulso aboliam qualquer tipo de abordagem que vinha a sua mente.
– Chegamos a tempo – sentenciou, ao parar em frente à entrada da frisa dela e curvar-se respeitosamente. – Peço que me perdoe pela liberdade excessiva que tomei ao convidá-la para um refresco, quando mal nos conhecemos.
Ela tentou articular uma resposta, mas ele novamente foi mais rápido que sua determinação:
– Eu a expus às más intenções das línguas da cidade... Deveria ter refletido sob meus atos, antes de tomá-los. Não acontecerá outra vez.
Deu-lhe às costas após uma breve mesura. Os olhos dela presos a casaca dele. A distância, entre seus corpos, aumentando rapidamente e os olhos castanhos, que antes sorriram, agora marejavam, abandonados no corredor onde a campainha tocou pela terceira vez. A mão que ele abriu e fechou repetidas vezes em busca de controle sobre a ardência que já lhe tomava as veias e alertava-lhe do perigo eminente de estar entregue aos seus sentidos aflorados.
– Estou indo para casa – afirmou ao entrar na frisa e recolher o resto de seus pertences depositados ali.
– Mas já?
Os olhos azuis do louro não encontraram nada além das cortinas verdes, que farfalharam uma vez mais, anunciando que ele estava sozinho.
Joseph dispensou o cocheiro que se prontificara a levá-lo para casa. Assim que pôs os pés na rua, desceu-a irritado, evitando olhar os transeuntes ao seu redor. Desfazendo o nó da gravata borboleta, que o sufocava junto com aquele cheiro maldito de baunilha correndo sob sua pele, atirou-a ao chão. O aroma de terra batida e perfume francês que ficou para trás em cada passada de suas pernas longas, o cheiro extraído da orquídea que tão facilmente se misturou ao feno, quando ele já margeava as fazendas de gado, distante do centro da cidade. As gotas de suor que brotava-lhe das têmporas pelo esforço que exigia de seu corpo e sua mente em não ceder aos seus sentidos, tão aflorados pelos elementos da natureza... Tão preso ao cheiro dela.
Seus olhos se tornaram amarelados facilmente, conforme ele se apoiou na cerca de madeira, sentindo os ossos dilatarem sob sua pele. Tentou lutar contra aquilo mais uma vez, mas sabia que era inútil. Ainda não era Lua Cheia, arfou, voltando o olhar ao céu vazio. Quem era ela para mexer tanto com ele? Tinha fome de carne, sede de sangue... Respirou fundo, urrando para a noite o seu desespero, rasgando a roupa conforme percorreu a estrada. Primeiro, a casaca que se transformou em tiras pretas sob as unhas crescidas e escuras na carne pálida e depois, o colete desvaneceu-se sobre os músculos já dilatados do tórax, no dobro de seu tamanho normal, restando somente a blusa branca rasgada em inúmeros lugares. A pulsação acelerada, os sons da natureza mexendo com os sentidos do animal presente nele.
A vaca mugiu a longe, refreando os passos dele, na pouca consciência que lhe restou de quem era. Nos dedos e mãos de homem que ainda estavam expostos sob o rosto tomado por fúria, Joseph transpôs a cerca e entrou no pasto, os olhos ardendo de fome, as veias secas de sede... E então cravou as presas na carne de couro curtido, que tão facilmente cedeu aos seus dentes. O mugido dela agora fraco em olhos esmaecidos enquanto ele se alimentava dela, consumindo-a em fibra e líquido.
O uivo que o lobo deixou na noite, dolorido, pois a dor ainda lhe corrompia a pele, retorcia as vísceras, o fazia desejar o gosto de baunilha nos lábios. E ele matou uma vez mais, comeu uma vez mais e bebeu... Novamente, a quentura que atravessou sua garganta não abrandou o desejo do homem nele. O homem que era. E por mais que o lobo corresse e sumisse na escuridão da noite, seus olhos ainda estavam molhados... Ungidos pelo cheiro dela.
***
A ópera chegou ao fim, fazendo o louro deixar o teatro e se dirigir ao coche. O homem bonachão abriu-lhe a porta numa mesura.
– Bernard, como Joseph estava quando o deixou em casa?
– Não o levei para casa, o senhor resolveu ir andando – afirmou convicto.
– Entendo. – Desviou os olhos azuis para a rua, vagando-os no vazio por segundo e, depois, voltou-os para o coche. – Vamos, então.
Dizendo isso, subiu ao coche, cuja porta o escravo abrira-lhe.
– Senhor Pembroke... – a voz que o chamou foi a mesma que impediu o cocheiro de fechar a porta.
A mão calçada numa luva extremamente branca abonou o escravo da tarefa, vendo surgir o rosto esfogueado da morena na pequena janela do coche.
– Em que posso ajudá-la? – Sorriu-lhe galante, retirando-lhe educadamente a cartola.
– Seu tio... – ela balbuciou em lábios pálidos. – Não o vi quando a ópera acabou.
O sorriso se alargou mais um pouco, mesmo que imperceptível para a morena sob a luz da lua.
– Ele não se sentiu bem, senhorita Aragón. Teve que ir para casa mais cedo... – Fitou-a curioso. – Eu posso ser-lhe útil em algo? – insistiu.
– Não... – ela receou. – Eu apenas queria agradecer-lhe a companhia no refresco do intervalo.
– Fique tranquila – ressaltou, tomando a mão dela entre os dedos e beijando seu dorso. – Eu transmitirei seu agradecimento a ele.
– Obrigada. – Ela refutou imediatamente o contato. – Estimo melhoras também – completou ao fazer-lhe uma meia mesura e se afastar.
– Realmente intrigante... – Fechou a porta e bateu com a bengala no teto da carruagem, avisando o cocheiro de que poderia partir. – Ele faz uma conquista e a abandona – murmurou para si mesmo.
A brisa da noite o faz pensar em orquídeas.
***
A biblioteca estava às escuras quando Aiden entrou sem fazer o mínimo anúncio de sua presença.
– Estás fedendo a sangue... – Inspirou fundo. – Andou matando gado por aí?
– Cale-se – cortou-o, a voz emergindo da escuridão, no lado oposto ao único candelabro aceso no aposento.
– Bem... – ele insistiu, dando meia volta com o corpo e voltando á porta. – Se, ainda assim, seu mau humor ainda não passou, eu volto depois.
– O que veio fazer aqui?
– O que houve entre você e a Srta. Aragón?
– Nada...
– Nada – repetiu o louro debochado. – Ok, então não vai se importar se amanhã todos estiverem falando sobre a cena que protagonizaram no intervalo da ópera...
Aiden pode ouvir a respiração pesada de Joseph e, em vez de deixar o aposento, escorregou pelo chão de tábuas corridas e sentou-se na poltrona mais próxima, aguardando o que ele lhe diria.
– Como soube? – Joseph indagou após Aiden ter cruzado suas pernas.
– Pura dedução – regozijou-se o louro. – A moça estava muito preocupada em agradecer-lhe a gentileza e seus olhos me pareciam avermelhados demais para que ela realmente tenha passado por uma experiência merecedora de arriscar andar cinco metros até minha carruagem, diante de todos aqueles olhos ávidos, para pedir-me tão pouco.
– Tão pouco... – a voz de Joseph era apenas um sopro.
– Creia-me, os olhares sobre ela inspiravam calorosas calúnias quando a demovi de ficar mais tempo em minha companhia. E, apesar de ter ficado feliz pela sua conquista, agradeci à divina providência sua saída do teatro antes que a moça ficasse ainda mais encrencada – Aiden pausou, fitando o ponto exato onde ele sabia que Joseph se encontrava. – Onde estava com a cabeça para flertar com ela em pleno teatro lotado?
– Não flertei com ela – protestou em tom mais alto o moreno. – Foi apenas um pedido de desculpa.
– Ah, sim... – novo escárnio do louro. – Desculpas suas, agradecimentos dela... Eu no meio daquelas línguas afiadas! Nem parece que há menos de uma semana estava preocupado com que diriam dos meus negócios no Norte!
– Isso é diferente – retrucou Joseph.
– Deveras – rebateu o louro irritado. – É loucura!
Silêncio.
– Sabe o que dirão amanhã? – prosseguiu Aiden seco. – Certamente a ligarão à Little Channel como mais uma de nossas conquistas! Sempre me fez ter tanto cuidado com as mulheres depois do incidente de Londres... Por uma menina, compensa se arriscar tanto assim?
– Chega! – Aiden ouviu o farfalhar de roupas que indicava que Joseph havia se levantado, mas não se moveu.
– Se gosta mesmo dela, faça as coisas pelos meios corretos.
– Meios corretos? – sarcasmo nos lábios do moreno. – Que tipo de meios corretos eu deveria usar? Uma serenata ao luar?
Ele preencheu o ar com riso escrachado, mas Aiden permaneceu sério. Nunca o vira agir assim e isso o assustava. As raras vezes que vira Joseph fora de si era porque haviam tocado no nome da bruxa que o transformara em lobo, mas eram momentos muitos raros. Nada comparado àquele rompante apaixonado do seu suposto tio.
– Diga-me, sobrinho... – desdenhou ao sair da escuridão e encarar o louro com seus olhos dourados. – Que tipo de conquista um ser como eu pode fazer?
Respirou fundo, a camisa branca rasgada e manchada de sangue, assim como parte de seu rosto. As unhas das mãos sujas de terra.
– Revele-me, com toda sua lucidez e sapiência, o que um homem como eu pode oferecer á ela?
– O quanto bebeu? – desviou o assunto ao ver a garrafa de uísque aberta em uma das mãos do moreno.
– O suficiente para aquele cheiro de baunilha sumir de minha pele. – Sorriu torto, levando o gargalo aos lábios.
A gargalhada que os cercou agora vinha do louro.
– Dor de cotovelo não combina conosco.
Os olhos de Joseph brilharam conforme largou a garrafa ao chão, espatifando-a. Avançou trôpego até Aiden, erguendo-o da poltrona pelo colarinho com apenas uma de suas mãos.
– Ei... – protestou, sentindo sua garganta apertada e sua voz num fio. – Foi uma brincadeira.
O moreno não lhe deu ouvidos, a intensidade dos olhos dourados de Joseph estava cada vez mais forte, até que o corpo de Aiden chocou-se contra a parede, suspenso entre os dedos de seu alfa.
– Pare com isso. Acredite ou não, quero ajudá-lo.
O moreno arfou contra o rosto dele e soltou-o ao chão.
– Desculpe-me – pediu baixo, dando-lhe as costas.
– Tudo bem – retrucou o louro, a mão direita esfregando fortemente sua garganta. – O que pretende fazer?
– Ainda não sei.
– Não é normal que se transforme tão facilmente antes da lua cheia...
Joseph esticou os braços, olhando as mãos sujas, sentindo-se perdido.
– Sei que não é, mas foi mais forte do que eu... – A imagem de Amira invadiu sua mente e ele fechou os olhos. – Ou eu deixava o teatro e caçava, ou a atacaria.
– Deve haver um jeito de controlar isso.
Fitou o outro por cima dos ombros, fazendo-o encará-lo seriamente.
– Há... Eu devo ficar bem longe dela.
– Mas, Joseph, amanhã é o aniversário de Amira e nós fomos convidados. Depois de sua conduta no teatro, metade das famílias da cidade esperam que sua presença elucide o que de fato há entre vocês.
– Não há nada, nem haverá – rebateu abafado, voltando seus olhos para escuridão do aposento. – Você nos representará e é só. Fim do espetáculo.
Os olhos azuis se cravaram nas costas do moreno.
– Sabe que não será tão fácil quanto suas palavras.
– Terá que ser...
O louro arrumou os ombros e andou até a porta, abrindo-a.
– Faça o que achar melhor.
O baque da porta soou seco às suas costas e, estreitando as sobrancelhas na noite, pelas pesadas cortinas de veludo, Joseph sussurrou:
– Isso é o melhor.
Ao longe, erguia-se entre as árvores a casa dos Aragón. Escura e silenciosa como deveria permanecer para sempre.
A brisa daquela noite corria entre as árvores da fazenda dos Aragón. O louro suspirou ao descer do coche e entrar na residência, deixando a cartola e a bengala aos cuidados de um dos muitos escravos da propriedade, postado à porta. Entrou no amplo salão, onde muitas pessoas conhecidas já circulavam em vestidos e casaca. Deteve seu sorriso em muitas atenções até encontrar a morena que acabara de se desvencilhar da companhia do pai e da ama, e também o identificara em meio ás pessoas.– Sr. Pembroke. – Esticou a mão, que foi capturada pelos dedos ágeis dele. – É uma honra tê-lo aqui.– As janelas bateram fortemente com a rajada de vento frio que inundou seu quarto, acordando-a de sobressalto com o barulho seco de madeira estalada. Ela tomou consciência aos poucos do que acontecera e se ergueu da cama para fechá-las, mas foi detida alguns instantes pelo brilho da lua que se pronunciava no céu entre as nuvens escuras. Amanhã certamente choveria, analisou de pé em frente à janela. Pensara em arriscar ir até Little Channel, mesmo sem ser convidada, para saber como estava o escravo... Ou, pelo menos, teria uma desculpa para vê-lo. Afinal, ele não lhe dera notícias como prometera e ainda houve aquela visita à tarde de John. Deitou os olhos sobre o anel em seu dedo, a pedra ganhava um brilho perolado sob o luar. Amira sorriu, rodando o aro de ouro no dedo e se virou para cama quando seus olhos caíram dentro dos olhoSegredos Desvendados
– E então? – o louro indagou quando Joseph pôs os pés dentro da sala de estar de Little Channel. – Estou mais enrascado do que antes.Aiden sorriu.– Era de se esperar... – fitou-o atentamente. – John esteve aqui há poucos minutos.– O que ele queria?– Oferecer seus préstimos para caçar um lobo... Parece que suas atividades amorosas andaram despertando o ciúme alheio.
Lorena, França - 1314 Os intensos olhos verdes o fitavam, sob fios pretos esvoaçantes emoldurando traços delicados. Poderia ser uma visão, efeito da quentura que o consumia e fazia seus músculos fragilizarem. Seu caminho fora longo, quanto mais se afastava da França, mais tinha certeza de que sua missão era ao norte... E não ao sul, como profetizara seu pai. Por ser filho único, Joseph fora criado junto ao campo, arando a terra como os pais. Aprendera a ler e escrever por força e obra de sua mãe, que pela delicadeza de seus movimento e a graça com que se portava, mostrava não ter o mesmo berço do marido. Era algo que n&
Porto de Paraty, Rio de Janeiro, Brasil - 1864A bela morena de olhos verdes fitava o pai sob as pestanas longas e escuras, piscando sucessivamente, vítima do sol quente que começava a descer sobre suas cabeças, seguindo o poente em tons de laranja e amarelo fogo. Os raios e seus reflexos na água tiravam de foco a imagem do homem moreno, de cabelo cortado rente sob o chapéu branco e que se debruçava sobre a amurada da embarcação, trazendo saltos abruptos ao seu coração.– Pai... – ela disse um tanto fracamente, talvez pelo medo que lhe corria as veias
A mucama entrou no escritório, silenciosamente, parando em frente à mesa de carvalho sólida.– Mara, por que deixaste Inácio aprontar o cavalo para a sinhazinha?Aprendera a respeitar seu sinhô, conhecia-o muito além das belas feições que o adornava. Via através daqueles olhos âmbares, o passado, o presente e o futuro. Por isso, decidira permanecer ao seu lado enquanto muitos outros o abandonaram logo depois de sua liberdade. Entretanto, aprendera também a não contestar a decisão dos que se foram. Haviam ocorridos muitos sinais de que seria um episódio sinistro, mas o sol raiaria como numa bela manhã de primavera aos que per
Suas mãos suavam quando apeou da montaria. As pernas ainda não lhe respondiam com firmeza, mas subiu rapidamente as escadas da varanda da casa grande e entrou pela porta, junto com o vento frio da noite, fazendo com que tanto seu pai como Mara a fitassem surpresos. Enquanto a mucama saía da sala, Pedro se erguia da poltrona onde estivera esperando-a em companhia de seu cachimbo.– Estávamos preocupados, Yamê – determinou ele, abrindo os braços em sua direção e acolhendo entre eles o corpo agitado da moça. – De onde tirou a ideia de ir à cachoeira uma hora dessas?Ela fechou os olhos enquanto ouvia aqu
1320 – Igreja de São Patrício – Irlanda– Estás pronta para confessar? A voz foi abafada parcialmente pelo estrondo do trovão contra as paredes da igreja, por onde escorria a chuva intermitente. Os olhos cor de mel observavam a tudo, aterrorizados, sob o capuz escuro, que nada revelava de seu rosto. A jovem tremia, apenas pele e osso contra a parede fria de pedra. Seus pulsos vertiam sangue, que escurecia e formava crostas sob as algemas, em feridas purulentas. E apesar de nua, não havia um viço em sua figura que pudesse despertar algum desejo em um homem. Não parecia haver mais vida ali, exceto pe