1320 – Igreja de São Patrício – Irlanda
– Estás pronta para confessar?
A voz foi abafada parcialmente pelo estrondo do trovão contra as paredes da igreja, por onde escorria a chuva intermitente. Os olhos cor de mel observavam a tudo, aterrorizados, sob o capuz escuro, que nada revelava de seu rosto. A jovem tremia, apenas pele e osso contra a parede fria de pedra. Seus pulsos vertiam sangue, que escurecia e formava crostas sob as algemas, em feridas purulentas. E apesar de nua, não havia um viço em sua figura que pudesse despertar algum desejo em um homem. Não parecia haver mais vida ali, exceto pe
A casa estava relativamente silenciosa quando ela percorreu o longo corredor até a sala de jantar, mas não foi impossível estacar de súbito sob o pórtico ao notar que, mesmo com o adiantado da hora de seu desjejum, não estava sozinha. Ele invariavelmente não fez questão de mostrar que notara sua presença e ela, achando que passava despercebida, alisou o vestido, respirou fundo e ergueu o queixo, dirigindo-se altiva à cadeira mais próxima. Distante umas três do seu anfitrião.José lia o jornal, praticamente onipresente do ambiente, enquanto Yamê se preparava para sentar-se ali perto.– Precisamos conversar – a voz dele
Ele passara a maior parte da noite em claro. Aquela ardência tomando seus músculos e a maldição pinicando sua pele. Sem entrever a lua no céu nublado, seu martírio tangia a insanidade. Era um meio caminho a lugar nenhum. Andou pelo quarto inúmeras vezes, sem o sono lhe ocorrer, e ganhou o corredor, dando vazão a sua inquietação interna. Sua alma sucumbia aos desejos da carne, mesmo que tentasse conter sua fome, o cheiro da presa era o pior veneno para seus anseios. Cada respiração dela era um palpitar mais rápido de seu coração e o sangue corria enfurecido por suas veias, despertando a besta aos poucos. Fechou os olhos, sentand
Não reconhecia os pés que seus olhos verdes fitavam com tanta curiosidade, mas sentia pelo corpo a vibração das folhas secas sobre eles. Pisava com cuidado, sua pele alvíssima contra o chão de terra. Uma angústia consumindo seu peito, como se toda felicidade tivesse sido arrancada de lá à força. Queria chorar, mas a vontade do corpo que lhe emprestava os sentidos a impedia. Era algo que não lhe era permitido cogitar, não naquele momento. Puxou de suas vestes claras de lã grossa um athame e se agachou junto às folhas desenhando um círculo.O sangue correu rápido em sua veia, sabia que lutava contra o
Não foi fácil dormir aquela noite, mas ao menos, nenhum pesadelo lhe atormentou a alma. Apenas as lembranças do beijo deixavam-na inquieta. Não sabia se admitia para si mesma que ele confessara seu amor, ou se devido as circunstâncias, quisera confortá-la. Não houve momento para perguntas, porque tão rápido e insano quanto a sensação do beijo cobrira sua pele e lhe atordoara os sentidos, a de abandono se instalou, quando José saiu para a cozinha e não mais voltou. Deixou-a aos cuidados das mãos hábeis de Serena e as duas não trocaram palavras. Quando, naquela manhã, sentou-se à mesa do desjejum, não
A intervenção de Giácomo – teve que admitir, fitando-os do tablado – operou milagres. Era a quarta vez consecutiva que encontrava a sala cheia aquela semana. Passava parte da manhã com as crianças e à tarde com os adultos, só sendo interrompida pelo moreno, quando o anoitecer despontava no horizonte. Identificara as dificuldades dos menores e a falta de conhecimento de mais velhos. Preocupava-se com a proximidade da chegada do padre e como dar conta de tudo. Em meio a todo esse turbilhão, não conseguia fazer seu corpo ou mente relaxarem. Encontrou dificuldade de dormir após o jantar, não sabia se era pela solidão à mesa ou pelo
Já passava das quatro da tarde quando tomou o caminho de volta á casa grande, seguindo pela rua principal da vila.– Não quer que um de nós a leve, professora? – indagou um dos homens que fora pegar a esposa na escola.– Não, Armando – agradeceu sob um meio sorriso. – Obrigada, mas quero andar um pouco.Voltou-se para a rua após um aceno de cortesia do homem. Queria muito estar a sós com seus pensamentos e dentro daquela casa não conseguia ordená-los. Desceu a rua sem perceber, em passos largos, ainda imersos em conjecturas. Penetrou instintivamente na
Nota da AutoraEssa história contém fatos verídicos, entrelaçados à trama fictícia. Datas e nomes foram mantidos no intuito de transmitir mais autenticidade ao leitor.Lady Alice Le Kyteler foi realmente acusada de bruxaria, mas fugiu para Inglaterra, salvando-se das chamas; Petronella de Meath era sua criada e foi a primeira bruxa irlandesa a ser queimada na fogueira em 1324. Earl Pembroke era dono do castelo de Kilkenny em 1192, que conheceu seu auge pelas mãos do Clã Butler, muitos anos depois. Robin MacArt foi o demônio acusado de ter se deitado com Lady Alice. O romance, entretanto, entre esses quatro personagens foi criado pela autora c
Kilkenny – Irlanda, 1324– Minha senhora... – A moça de intensos olhos azuis prestou uma única reverência à mulher na sua frente, sentada em uma cadeira recoberta de peles diante da lareira. – Não vai se deitar?– A febre cessou? – indagou, sem lhe dirigir o olhar.– Não, senhora. – Abaixou a cabeça, fitando o vestido de lã amassado entre seus dedos. Os cabelos ruivos presos á uma pequena rede, por onde fugiam alguns cachos sobre as orelhas. A pele de sardas sombreada pela luz brux