Que merda, June pensou, ao perceber que estava acordando e sentindo como se todo o seu corpo tivesse passado por um triturador. Tentou engolir, mas a boca estava tão seca que sua língua mais parecia uma lixa e os lábios grudavam um no outro.
A dor latejante na cabeça era uma constante, pulsando sem parar, fazendo seu estômago embrulhar no mesmo ritmo. Sua cabeça estava rachada, uma concussão na certa, e June não queria estar no corpo pra isso, não queria mesmo.
Abriu os olhos e a luz que atingiu suas pupilas era o mesmo que uma chuva de adagas em seu cérebro.
June se inclinou para frente e vomitou no tapete do carro.
— Ai, porra. Tá acordada. – disse o cara no banco do passageiro, olhando com nojo para a bagunça que June fazia atrás.
— Difícil não perceber isso. – retrucou a mulher de cabelos curtos que dirigia, a vadia que o nocauteou. A vontade de June era retribuir cada dor, cada náusea e cada sentimento de frustração e ódio, tudo em dobro. Mas agora ele estava fraco e preso, sua visão girava e o balanço do carro em movimento não ajudava muito. — A gente tem que dar água pra ela.
Sentiu-se ser observado e percebeu que a mulher o encarava pelo retrovisor interno.
— Se eu encostar pra limpar o seu corte e te dar alguma coisa pra beber, você vai se comportar? – ela perguntou.
June lhe ofereceu o dedo do meio. Ela soltou uma risada curta, balançando a cabeça.
— Eu que lute, não é? Entendi…
Pouco depois eles estavam parando, parecia ser tarde, bem depois do horário do almoço, June se perguntou por quanto tempo tinha ficado desacordado.
A porta de seu lado direito foi aberta com um solavanco alto e barulho de metal raspando um no outro, June fechou os olhos como se isso fosse abafar os sons que insistiam em perfurar ainda mais o seu cérebro já abusado.
— Chega mais pra cá. – a mulher pediu. June ficou bem parado, só para ser do contra. Ela revirou os olhos e puxou uma arma de algum lugar em suas costas. — É sério, eu só estou tentando fazer a coisa certa aqui, dá pra colaborar um pouco.
— E o quê? Vai me ajudar me dando um tiro? – a boca seca e a leve desorientação fizeram sua voz soar estranha e embriagada, mas o tom de deboche estava presente, independente de qualquer coisa. Essa era a parte importante.
— Se for necessário, sim. – foi a resposta.
June ponderou, não dava para negar que ele precisava de ajuda médica e que essa pessoa estava tão disposta a fazer isso que considerava apelar para a violência. Por outro lado, não dava para confiar em ninguém que fosse amiga de Miranda, menos ainda aquela responsável por chacoalhar os seus miolos.
Havia uma tradição, quase um roteiro, que June seguia sempre que se via de volta no corpo. Era prioridade se livrar de todos os traços de Miranda da sua vida e isso incluia, pessoas, lugares, pertences, tudo. Precisava se libertar das amarras dessa criatura parasitária que insistia em competir pelo espaço e pelo tempo que eram tão preciosos para June.
Seus apagões às vezes eram tão longos que June só abria os olhos para o mundo externo depois de um intervalo de anos, apenas para encontrar tudo diferente, seguindo um rumo que não escolheu.
Quem fosse aliado de Miranda era um inimigo para June.
Não suportava ouvir se referirem a ele com o nome dela ou como se ele fosse ela. Seu maior desejo era ter uma vida própria, mas sempre que se olhava no espelho, via o rosto de outra pessoa.
Respirou fundo e decidiu.
— Ok.
A mulher e o rapaz se entreolharam em silêncio, ela não abaixou de imediato o braço que apontava a arma para as pernas de June.
— Ok? – o rapaz indagou. — Só ok? Não vai voar nas nossas caras e tentar arrancar os nossos olhos?
— Muita sede. – se limitou a responder, fazendo o que lhe foi pedido e se acomodando na ponta do banco do jeito que pôde com as mãos e os pés restringidos.
— Vai pegar a mochila, Tony.
Enquanto o garoto, Tony, foi cuidar disso, a outra guardou a arma onde estava e se aproximou de June com cautela, devagar, com o rosto neutro e as mãos sempre visíveis, como se estivesse lidando com um animal selvagem ferido. Ele apenas encarou de volta, satisfeito com a impressão que transmitia, porque, para ela, ele era sim um animal selvagem.
— Como está o nariz? – ela perguntou, começando a desatar o nó do pano envolvendo a cabeça dele.
Ah, no meio de tantas dores, era difícil distinguir uma específica. Mas a sensação pulsante de ter ido de cara contra um muro estava bem presente.
— Já esteve melhor.
— Hm. – ela umedeceu um tecido com a água que Tony trouxera pra ela e passou com cuidado na região em que June fora golpeado. Trincou os dentes com força para evitar demonstrar sinais da dor aguda que aquilo causou. — Bem como eu desconfiei. Vai precisar de pontos.
— Economiza com a água aí, Cora, essa é a última garrafa. – Tony disse, parado como um posto há alguns metros deles, os braços cruzados e os ombros curvados para frente, como se estivesse com medo de chegar mais perto.
— Não faz diferença. – Cora replicou, segurando o queixo de June e ajudando-o a beber a água em pequenos goles, regulando a vontade dele de tomar tudo de uma vez. — Não vai demorar muito pra chegarmos na próxima cidade, ela precisa disso pra se hidratar até chegar no hospital.
Escutar aquela palavra foi como disparar um gatilho no sistema de June.
Retesou-se instantaneamente e engasgou com a água que acabou entrando por suas vias aéreas. Por instinto, ainda sem conseguir respirar direito, se jogou contra Cora e os dois caíram no chão. Ouviu Tony gritar.
Cora o segurou pelos pulsos e ele nem percebeu que tinha começado a se debater até que ela forçasse suas mãos contra o solo com a intenção de deitá-lo de lado. A posição ajudou para que a tosse e o engasgo começassem a cessar. Sentia seu rosto quente, úmido pelas lágrimas e os fluidos do nariz e da garganta, e mais dolorido do que nunca.
— Você precisa se acalmar! – Cora exclamou, exasperada. — Qual é o problema com você!?
— Sem hospitais. — foi o que conseguiu dizer, estava exaurido, mal sentia o próprio corpo. O pânico trazido pela ideia de ser levado para aquele lugar contra a sua vontade foi como um choque que veio e foi tão rápido que levou consigo o pouco de força que ele tinha reservado.
— Do que você está falando? Por que não? – Tony perguntou. — Quem é você, no final das contas?
June o ignorou. Encarou Cora e esperou enquanto ela escaneava seu rosto, procurando por respostas que, com certeza, não encontraria ali.
— Eu não tenho como tratar os seus ferimentos. – ela acabou dizendo.
— Cora! – Tony se intrometeu, indignado. — Você está dando ouvidos pra essa maluca? Porque… olha, pra mim está mais do que óbvio que ela não tem condições de tomar decisões por si mesma.
Mais uma vez June se esforçou para não demonstrar nenhuma reação, apesar da vontade que tinha de fazê-lo engolir as palavras.
Cora fez um gesto para que Tony esperasse, sem desviar o olhar de June.
— Se você não quiser ir, tudo bem. Não vou te obrigar. – ela deu de ombros. — Pode falar, qual a sua sugestão.
Ela se levantou, cruzou os braços e ficou esperando.
June tomou o seu tempo se virando no chão, deitando de barriga pra cima, dessa vez incapaz de conter as caretas e os gemidos.
Respirou fundo.
— Me solta, me deixa aqui. – disse. — Eu consigo uma carona.
Tony bufou.
— Aham, claro. O que você acha, Cora?
— Vamos colocar ela de pé. – E, cada um sustentando em um braço, o puseram sobre as próprias pernas de novo e o colocaram encostado no carro. June gostaria de provar que conseguiria se virar muito bem sozinho, mas a primeira coisa que fez quando o mundo parou de girar foi vomitar nos próprios sapatos.
Tony se afastou em um salto, com uma risada histérica, e saindo de vista, como se ele fosse a pessoa que precisava tomar um ar.
— Você está entendendo a minha situação agora? – Cora disse. — Eu não te salvei lá atrás pra te abandonar machucada e passando mal aqui nessa estrada. – ela deu uma pausa. — Mesmo que tenha arranhado a minha cara como se fosse um bicho raivoso, eu não quero piorar as coisas.
June revirou os olhos, era terrível saber que se preocupavam com ele apenas por pensarem que ele era a pessoa que conheciam. Se soubessem do que realmente se tratava, aí sim mostrariam suas verdadeiras intenções.
Mas não diria nada sobre a multiplicidade de identidades nesse corpo, por menos que gostasse de ser chamado de Miranda, se tivesse que conviver por mais tempo com essas pessoas, poderia usar isso como uma oportunidade para queimar a imagem que Miranda havia construído até então.
— Tanto faz. Só me deixe em um lugar onde eu possa descansar um pouco. Nada de hospitais.
Cora acenou. — Nada de hospitais, ficou bem claro da primeira vez.
Enquanto Tony tirava os tênis de June e Cora jogava fora o tapete sujo do carro, um outro veículo se aproximou e encostou logo atrás deles. Os três se entreolharam. June percebeu que as mãos de Cora foram repousar na cintura, perto de onde ela poderia sacar a arma se fosse necessário.
Não conseguiu soltar uma risada divertida, que foi logo recebida por um olhar de aviso de Cora. Aquela situação não podia ficar melhor, como aqueles dois explicariam para uma pessoa estranha o fato de terem uma mulher com concussão amarrada em sua companhia?
Paciência costumava ser uma de suas virtudes, mas Travor tinha que admitir que a sua se esgotara há alguns dias. Vince e ele vinham usando todos os recursos que tinham para procurar o paradeiro de Tony depois do desaparecimento do carro.
Vince passava a maior parte do tempo no telefone, ligando para os contatos que tinha espalhados por praticamente todos os lugares, ou na frente do mapa, traçando trajetórias possíveis e os lugares para onde ele e Travor poderiam ir em segurança para fazer essa busca.
Enquanto isso, Travor se preparava para os tipos de obstáculos que poderiam se colocar no caminho deles. Além de reclamar das dores e do olho roxo, que só agora começava a desinchar o suficiente para que ele voltasse a enxergar através dele.
— Quando a gente vai poder sair daqui? – perguntou, pela quinta vez naquele dia. Parecia uma eternidade desde que eles tinham se instalado naquele apartamento minúsculo, que mais parecia um buraco e que fazia Travor temer que seus livros fossem roídos pelas traças e pelos ratos.
— Logo.
— Logo quando? – replicou, se levantando e dando voltas pelo pouco espaço que tinham. — O tempo tá passando, Vince. A gente só tem como rastrear o carro e rezar pro Tony estar no mesmo lugar! Ele pode estar machucado! Ele… ele pode estar morrendo de fome ou de sede! Eu não posso sentar e ficar esperando até que o pior aconteça…
Nem ligava para as lágrimas que se juntaram no canto de seus olhos. A raiva que sentia de si mesmo era tanta que sua garganta amargava. Não importava o quanto Vince tentasse convencê-lo de que nada daquilo tinha sido culpa sua, Travor sabia que se não tivesse sido egoísta e convidado Tony naquele dia, nada disso teria acontecido.
— Trav, entrar em desespero não vai ajudar em nada. – Vince se virou pra ele, os cabelos longos amarrados em um rabo de cavalo frouxo e os olhos ainda mais escuros sob a pouca iluminação do local. Ele podia não demonstrar tanto quanto Travor, mas, para quem o conhecia bem, dava para perceber que ele estava preocupado. — Nós estamos fazendo o nosso melhor aqui e eu aposto que o seu amigo vai ficar bem. Agora, se a gente não se concentrar e fazer isso direito, não vamos conseguir salvar ninguém.
Travor respirou fundo e acenou com a cabeça.
Certo, pensou, posso fazer isso.
Voltou para o seu posto atrás de uma mesa velha onde vários livros estavam abertos, além de páginas e páginas de anotações espalhadas. Travor não era um modelo de organização, mas navegava bem pelos meandros de sua própria bagunça. Assim como considerava a paciência uma de suas virtudes, manter o foco também costumava ser uma de suas qualidades, mas achava difícil encontrar qualquer tipo de centro interior quando tudo em volta parecia desmoronar.
Até mesmo olhar para aqueles livros acendiam nele o sentimento de culpa. O ocultismo, misticismo, a mitologia, por mais estranhos que pudessem parecer, foram os temas que fizeram com que os caminhos de Travor e Tony se cruzassem. O que começou com conversas técnicas e curiosas pela internet, se desenvolveu para outros tipos de assuntos, falavam sobre tudo e sobre nada, se tornaram confidentes sob a proteção do anonimato que a rede oferecia. Isso ajudava Travor a preencher um certo vazio que tinha dentro do peito, acrescentava um pouco de normalidade ao caos que era a sua vida.
Travor era um rapaz jovem, acabava de completar vinte anos, e vivenciara mais do que qualquer pessoa de sua idade poderia imaginar, mas era solitário naquilo que não vivera.
Em um surto de ingenuidade, Travor achou que não seria problema marcar um encontro com Tony para conhecê-lo pessoalmente. Vince e ele vinham viajando há tanto tempo sem deixar vestígios que Travor acreditou que se relaxasse por dois segundos, nada de ruim aconteceria.
Mas coisas ruins sempre aconteciam.
No dia seguinte, souberam por um bilhete deixado debaixo da porta que haviam pegado Tony. Vince havia lhe dito que não era uma boa ideia tocar em alguém quem eles pudessem rastrear, mas Travor tinha tanta vontade de ter um contato humano normal, longe das máscaras e dos personagens que precisavam criar no dia a dia para navegar o mundo despercebidos, que não preferiu não dar atenção ao aviso.
Agora colhia as consequências.
— Eu vou resgatá-lo, você segue caminho. – Travor dissera na ocasião, disposto a assumir os seus erros, mesmo que isso significasse se entregar ou morrer.
— Não seja idiota. – Vince respondeu, distraído, enquanto organizava sua maleta de lâminas. — Não vão tocar em você enquanto estiver comigo.
O jeito despreocupado com que ele falava irritou Travor ao extremo. Sentia-se quente de raiva e sabia que qualquer pessoa que olhasse pra ele naquele momento veria um tomate de rapaz, vermelho do pescoço à ponta de seus cabelos ruivos.
— Não vê que esse é exatamente o problema! Não vou permitir que você se entregue por causa de um erro estúpido meu! – Travor se colocou na frente de Vince e fechou a tampa da maleta, as pontas dos dedos de Vince escaparam por pouco. — Eu vou resolver isso e você vai continuar indo atrás de uma solução pra maldição. Está decidido.
Vince suspirou, se recostou melhor na cadeira de madeira em que sentava e cruzou os braços. Travor odiava quando o parceiro assumia essa postura, pois sabia que suas próximas palavras seriam condescendentes, como se Travor fosse jovem demais para entender o grande plano do universo.
— Você é que não está percebendo que tudo isso é a maldição agindo. Você não teria sido arrastado para essa jornada comigo se não fosse por ela. Nós dois não estaríamos vivendo essa meia vida e o seu amigo não estaria nessa situação. – ele se inclinou para frente. — É minha a responsabilidade de consertar as coisas.
— Eu ESCOLHI estar aqui. – Travor cerrou os dentes, frustrado.
— Não vamos discutir isso de novo. – Vince encerrou o assunto e se levantou. — Tem um endereço e um horário neste bilhete, eu vou e você fica aqui. Se em uma hora eu não voltar, você vai embora. Sabe pra onde ir.
Quando ouviu isso, Travor soube melhor do que retrucar e iniciar uma briga certa. Fingiu concordar e, quando Vince saiu para se encontrar com os sequestradores, Travor foi atrás discretamente.
O lugar em questão se tratava de um prédio antigo e Travor não tinha como saber para qual andar o levariam sem entrar, mas se o fizesse, seria visto.
No final das contas, não teve que pensar muito no que fazer. Por mais cauteloso que acreditasse ter sido, foi surpreendido por uma chave de braço vinda de alguém por trás e um soco certeiro no olho esquerdo por um segundo sujeito, forte o suficiente para nocauteá-lo por alguns instantes.
Quando deu por si novamente, estava no porão do prédio, ajoelhado no chão com os braços amarrados para trás enquanto Vince negociava com um sem rosto. Os dois sentados à uma mesa quadrada como se conversassem sobre o tempo e não sobre a vida de um jovem. Como se um deles não fosse a imitação da forma de um homem, coberto por um sobretudo e a cabeça parcialmente coberta por um chapéu panamá de aba larga e óculos de sol.
Sem rosto eram sombras de pessoas que morreram e ficaram nesse plano sobrecarregadas por suas questões não resolvidas, presas e perdidas, incapazes de fazer algo por si mesmas até que algo ou alguém as libertasse.
Nesse estado de limbo, os sem rosto eram facilmente manipulados e levados a realizar trabalhos sujos com a promessa de que teriam a permissão de seguir em frente.
Travor estava cansado desses caras, se misturavam fácil na multidão e se escondiam nas sombras. Aquele porão escuro podia estar cheio deles, mas Travor não poderia vê-los até que eles quisessem se materializar. E, por saber disso, sabia que era melhor ficar quieto e não tentar nenhuma gracinha até que a situação se resolvesse.
Encostado no canto da parede estava Tony, encolhido, as mãos e as pernas bem presas com fita adesiva e um saco preto na cabeça. Deviam tê-lo amordaçado também, porque ele quase não emitia nenhum som exceto por soluços abafados de quem andou chorando por algum tempo.
O coração de Travor se apertou. Tony não merecia passar por isso. Faria o que fosse possível para salvá-lo e mais ainda para que o rapaz pudesse perdoá-lo algum dia.
A conversa entre os dois à mesa demorou um pouco, mas era isso, não passaria de conversa. Vince estava certo quando disse que não o machucariam. Precisavam que ele parasse de resistir e cumprir o que estava fadado a fazer de forma voluntária. Sua fuga já durava anos e Vince tinha meios de fazer com que durasse ainda mais, não era à toa que usariam qualquer coisa que estivesse à disposição para pressioná-lo e acelerar o processo.
Diziam que não havia escapatória e que todos os caminhos levariam a montanha, mas Travor e Vince estavam decididos a provar o contrário, desde que nunca cansassem de correr.
Um ritual havia sido iniciado décadas atrás e o rito tinha que ser concluído.
Quando Travor menos esperou, as sombras se expandiram e cobriram a forma de Tony. Ao rescindirem, já não havia mais nada em seu lugar. Travor tentou se soltar, sem sucesso e virou-se assustado para Vince, tentando entender o que havia acabado de acontecer.
Percebeu então que o porão esvaziara-se, exceto pelos dois, e Vince parecia muito, muito, cansado.
— Está tudo bem, por enquanto. – Vince informou, massageando a nuca. Era sempre um gasto de energia muito grande lidar com aquele tipo de criatura. — Levaram ele pra fora, no carro.
Se levantou e libertou Travor das amarras. Agora que o pior havia passado, sentia a cabeça pulsando e mal enxergava pelo olho golpeado, sabendo que a essa altura a região das pálpebras haviam mais do que dobrado de tamanho.
Deixou que Vince fosse na frente e mostrasse o caminho para a saída. Distraído, Travor deu de cara nas costas de Vince, que parou sem aviso assim que chegaram na porta de entrada.
— Mas que merda.
— O que foi agora? – Travor quis saber.
— Por que não olha você mesmo?
Travor abriu espaço para passar, olhou e não viu nada.
Demorou dois segundos para perceber que era justamente esse o problema. Não havia nada lá. O carro desaparecera.
— Mas que merda.
Do carro que estacionava, um comum, sem nada que o destacasse, saiu um homenzarrão. Um que Tony reconheceu na hora como o que havia aparecido no galpão, revistando os pertences deles. Assustou-se com a ideia de um homem tão mal encarado seguindo-os e mais ainda quando escutou o som do punho de Cora se fechando discretamente no cabo da arma escondida às suas costas.
— Você pode ser grande, mas eu garanto que posso ser bem rápida quando quero. – Cora disse, antes que o homem pudesse se manifestar. Apesar de que ele mais parecia uma um pedaço de rocha, o rosto não mexia um músculo. — Era você no café, não era? Naquele dia. O que você quer?
— Café? Que café? – Tony perguntou, sem entender. — Esse foi o cara que me salvou daquele estuprador lá atrás, quando a gente pegou a Miranda.
Todos olharam pra ele, a maioria confusos, exceto pelo recém-chegado, que continuava sem expressar nenhuma emoção.
— Que diabos, Tony? – Cora abriu e fechou a boca como um peixinho dourado, apesar da falta de palavras, a irritação era óbvia.
— Eu- eu… oras, você não achou mesmo que eu atirei naquele homem, não é? – disse e assistiu enquanto ela se esforçava para lembrar os detalhes dos eventos daquele dia (eventos de ontem, pensou ele, desolado). Cora foi até o carro e abriu o porta-luvas, conferiu o tambor do revólver e, realmente, ele ainda tinha uma única bala.
Pela cara dela, Cora lutava contra a vontade de gastá-la em Tony ali mesmo.
— Sim, Antonie, eu achei que você tinha atirado nele. – replicou ela de um jeito compassado, fazendo-lhe subir um frio na espinha. — Porque você estava do lado do corpo, com uma arma na mão e porque você não disse NADA!
O grito fez com que alguns corvos levantassem voo.
— É, cara, nossa, que pisada. – Miranda comentou, divertida.
Tony revirou os olhos e a ignorou.
— Olha, eu tinha visto ele no meio das árvores logo depois que você me deixou sozinho lá e quando aquele cara maluco veio na minha direção, eu me caguei todo, tipo, não ia dar conta de me defender. E daí veio um tiro do nada. – Tony contou rápido sua versão da história. Gostava mais quando todos se juntavam contra Miranda em suas esquisitices do que quando a crítica era voltada pra ele.
— E você não achou que essa seria uma informação importante pra compartilhar com o resto da classe? – Cora ironizou, mas respirou fundo e se virou para o sujeito que permanecia parado como uma estátua, assistindo a interação deles. — Vai ou não responder a minha pergunta? O que você quer?
O homem tirou um smartphone do bolso de trás da calça de couro e discou para alguém.
Tony trocou olhares com Miranda e se segurou para não rir. Era muito estranho ver um grandalhão vestido em couro preto velho da cabeça aos pés, cabelos e barba estilo viking, usando um celular moderno. Especialmente quando atenderam do outro lado e Tony percebeu que se tratava de uma chamada de vídeo.
— Mack, está com ele dessa vez? – uma voz um tanto familiar para Tony soou e, ao invés de responder, o suposto Mack, virou a tela do celular para o lado do pequeno grupo de esquisitos do qual Tony fazia parte e era o rosto de Vince estampado nela. — Ah, finalmente! Travor, chega aqui!
Oh! Oh!
— Travor! – sem pensar duas vezes, Tony tomou o celular da mão de Mack, incapaz de se segurar de alegria e alívio. O rosto do amigo apareceu, emanando uma energia semelhante a sua, todo sardinhas e olhos azuis brilhantes. Seria perfeito se ele não tivesse um roxo no olho do tamanho de uma bola de beisebol. — Ai meu Deus, Travor, o que aconteceu com você!?
— O que aconteceu comigo? O que aconteceu com você!? Isso aqui não é nada, como você está? Ou melhor, onde você está?
— Várias perguntas que eu não sei responder. Como eu estou? Eu nem sei, um caos, eu acho. Fui sequestrado, depois sequestrado de novo, depois agredido fisicamente por uma psicopata maluca. E agora eu estou aqui. E eu ainda estou com a mesma roupa, você pode imaginar?
Travor ouviu com as sobrancelhas franzidas, angustiado com o drama de Tony. Era uma sensação boa saber que tinha alguém que se importava, mas ele não queria ser a razão para que Travor ficasse tão preocupado. Apesar de todos os pesares, Tony estava bem, melhor agora, que via um rosto amigo.
— Mas as coisas estão melhores agora. A Miranda não está mais arranhando a cara de ninguém e a Cora parou de apontar armas pras pessoas. – Tony apontou a câmera na direção das duas mulheres. Cora revirou os olhos e deu as costas para não ser capturada e Miranda mostrou o dedo. — Viu? Vai dar tudo certo.
Não importava o quão grande o sorriso de Tony era, os ombros de Travor não se relaxavam e ele parecia mais tenso que nunca. O viu trocar olhares com alguém à direita do vídeo e acenar em uma conversa silenciosa.
— Eu vou passar para o Vince, ele tem algumas coisas úteis pra dizer pra vocês. É importante. – ele disse e lançou um olhar melancólico a Tony antes de passar o celular.
— Ahn, oi. – começou Vince. — Você está machucado?
— Fisicamente? Não. Emocionalmente? Talvez eu precise de terapia depois disso.
— Certo, já é um começo. – Vince sorriu. — Você falou que tem gente com você, estão todos bem?
Tony franziu o cenho, olhou para Cora e seu rosto levemente lacerado, e depois para Miranda, que ainda parecia meio verde e cujo corte tinha início na têmpora e ia até o couro cabeludo de forma que o sangramento fez parecer que ela havia tingido mexas do cabelo de vermelho e rosa. Ele limpou a garganta.
— Eu não diria que bem é a palavra ideal pra descrever a situação aqui.
Cora bufou e pediu o controle do celular. Tony cedeu. Ela se agachou ao lado de onde Miranda se sentava no carro (de lado, com as pernas para fora) e chamou Tony para que ele se abaixasse ao lado dela, para que os três aparecessem no vídeo.
— Oof… caramba. – foi o que Vince disse, com uma careta, ao ver as duas. — Alguma coisa fez isso a vocês ou fizeram isso entre si?
— Que droga de pergunta é essa? – Cora questionou, uma sobrancelha erguida, aborrecida por não entender o que acontecia. — Eu estou de saco cheio disso tudo, eu só quero me livrar desses dois e seguir o meu caminho. Já que esse guarda roupas está aqui, eu vou lavar as minhas mãos e dar o fora. Não sou obrigada a ficar escutando alguém falar em enigmas.
Vince parou um pouco, organizando os pensamentos, e respirou fundo antes de continuar.
— Vou direto ao assunto. Os eventos violentos e estranhos que vocês passaram nas últimas horas não foram coincidências ou fatos isolados. A conexão direta ou indireta que vocês têm comigo está causando isso e não vai parar até eu possa desvincular vocês desse ciclo.
Tony sobressaltou-se. — A maldição!
Travor e ele vinham investigando esse tipo de coisa por anos e não era novidade que o amigo tentava desfazer uma. Tony só não esperava acabar fazendo parte dela.
— Fala sério… – Cora murmurou, revirando os olhos. — Eu não tenho tempo pra isso.
— Se você acredita ou deixa de acreditar não importa, o que importa é que essa coisa em mim vai se espalhando e influenciando as pessoas como um vírus. Não dá pra saber em qual intensidade ou com qual propósito, mas não dá pra escapar.
— Isso é idiotice. – Miranda se manifestou, balançando a cabeça, claramente cética e dando a entender que só estava ali ouvindo tudo aquilo porque não tinha outra opção. — Essas merdas não existem, eu não faço ideia de quem vocês são e, na moral, não aguento mais escutar o som da sua voz.
— Pontos muito válidos, mas que não vão mudar nada no que vai acontecer. – Vince replicou, sério, trocando olhares com todos eles antes de suspirar e permitir que sua feição relaxasse um pouco. — Tudo bem, eu vou parar com essa história por aqui e oferecer uma ajuda pra vocês. Imagino que com essas caras, vocês não estejam a fim de lidar com os métodos tradicionais, tipo hospitais, autoridades, etc etc, então eu vou deixar com vocês uma rota alternativa e a localização de uma casa segura onde vocês possam cuidar desses ferimentos.
— Cara, quem é você? – perguntou Cora, os vincos entre suas sobrancelhas estavam mais profundos. Sendo a pessoa naturalmente desconfiada que era, o cérebro dela devia estar fervendo em alerta vermelho.
Tony, por outro lado, podia ter medo de fazer perguntas naquele momento, mas não podia evitar confiar em Vince. Não apenas porque Travor o fazia, mas por tudo o que vinha lhe acontecido desde que conhecera aqueles dois. Tudo era muito estranho e nada podia fazê-lo esquecer as sensações sinistras que se passaram por ele durante o sequestro, ou mesmo quando olhava para Mack pelo canto de olho e percebia que ele ainda não havia se movido.
— Eu sou um cara tentando colocar as coisas no lugar. – foi a resposta de Vince. — Vão estar seguros lá… Tony, eu e Travor estamos indo pra lá também, não poderemos manter contato, mas eu preciso que espere por nós. Na verdade, essa é a última vez que nos falamos até nos encontrarmos de novo.
— O quê? Por quê? – Tony quis saber ao mesmo tempo em que Cora perguntou: — Seguros de quê?
— Não sei, qualquer coisa, você não acreditaria se eu dissesse. – Vince deu de ombros, um sorriso torto no rosto. — Mack iria com vocês, mas eu não tenho mais favores pra cobrar dele, então…
Nesse momento, Mack tomou o celular de volta com Cora, o amassou com uma mão como se fosse feito de plástico e o jogou na pista.
Os três ficaram parados, em silêncio, assistindo enquanto ele tirava um pedaço de papel dobrado do outro bolso de trás da calça de couro e o punha na mão de Cora que ainda estava aberta. Depois disso, Mack retornou ao seu carro, deu a partida e desapareceu pela rodovia.
O silêncio se estendeu indefinidamente e foi Miranda quem o quebrou:
— Mas que porra foi essa?
Cora ignorou os alertas de seu corpo – coração acelerado, os pelos arrepiados dos braços, o leve tremor das mãos – e levantou-se, determinada a não permitir que contos de assombração a intimidassem. Ela não iria se dispor a engolir a narrativa que lhe empurravam goela abaixo, mas admitia que algo não estava normal, mesmo para os seus padrões.Viu Tony desdobrar o papel e revelar um mapa, ele era antigo e tinha várias marcações, embora fosse fácil encontrar a mais recente. Cora olhou por cima do ombro de Tony até identificar o lugar onde estavam e seguir a linha até a casa que Vince se referira. Se tratava de um local rural, não muito longe, que exalava cheiro de armadilha.Ela estalou a língua e se afastou.<
Pararam por alguns instantes para que Tony pudesse ir com Cora para o banco de trás, onde tinha mais espaço, e tentasse fazer o seu melhor para emendá-la com os poucos recursos que possuíam. Logo acima do tornozelo haviam três cortes profundos, além de algumas outras escoriações.O sangue saía das feridas em pulsos, grosso e escuro, quase preto. Tony ficou zonzo com a visão daquilo, nunca tinha se deparado com uma mutilação como aquela e o cheiro não ajudava em nada com suas náuseas. Era uma mistura pungente de ferrugem e podridão, como o lixo da cozinha que ele costumava se esquecer de jogar fora e com o qual ele só conseguia lidar depois se estivesse protegido com luvas de borracha.Miranda estava quieta, para variar, uma pequena bênç&at
O lugar era um chalé.June não sabia o que ele estava esperando, mas não era uma casinha de madeira resumida a um quarto, um banheiro e uma cozinha minúsculos, armários repletos de comida enlatada e camadas de poeira sobre os móveis.Até que não é nada mal, pensou, seria quase aconchegante se não fosse pelas condições que o haviam levado até ali e a companhia que tinha.— Olha por aí se tem alguma coisa pra perna dela. – Tony pediu, depois que os dois a colocaram na cama, enquanto começava a tirar os tênis dela. — Eu acho que a gente precisa de antibióticos e de antisépticos.—
— Cora, espera, não. – Miranda se apressou para segurar Cora pelos braços quando percebeu que além da inquietação ela também planejava se levantar, assustada. Já havia sido difícil o suficiente remendar as feridas dela, não ia permitir que um terror noturno colocasse o trabalho todo a perder. — Tá tudo bem agora. Você está segura aqui.Pelo canto de olho, Miranda percebeu que Tony acordou, mas ficou meio sentado meio deitado, observando de longe.Os olhos de Cora estavam abertos, mas desfocados, sua consciência distante do presente. Cora mordia o lábio inferior com força agora, como se, mesmo dormindo, estivesse segurando vontade de chorar. Travor segurava firmemente entre os dedos o medalhão que seu mentor lhe dera de presente pouco antes de sair para a sua última jornada, se tratava de um nó celta cujo desenho tomava a forma de um pentáculo. Era o seu talismã da sorte e ele nunca saía ou fazia coisa alguma sem tê-lo por perto.Quinn ensinou a Travor tudo o que ele sabia, e não fora apenas seu mentor, mas a figura mais perto da de um pai que ele já teve. O homem o literalmente tirou das ruas, um adolescente abandonado, expulso de casa pelo simples fato de ser diferente do que a sociedade espera de um garoto, tendo ele nascido em um corpo feminino.O acolhimento que recebeu quando começou sua caminhada com Quinn mudou a sua vida para sempre e se apegar ao medalhão mantinha a presença de Quinn viva e próxima, Aquilo que informava
À contra gosto, Cora ficou na cozinha com a tarefa de conferir a documentação que Tony encontrou vasculhando as gavetas e as caixas guardadas nos armários e no topo do guarda roupas. Enquanto isso, Tony e Miranda se preparavam para verificar o porão.Bom, Tony tinha que se preparar. Era um porão em um casinha de madeira em desuso no meio do absoluto nada logo depois de ser atacado por um monstro que ele podia facilmente chamar de demônio. Então, sim, ele precisava se convencer mentalmente a abrir o alçapão e descobrir o que havia ali embaixo.— Você consegue, Tony. Consegue sim. Vai dar tudo certo. – Tony ficou dizendo para si mesmo, como um mantra, andando de um lado para o outro em frente
— Que merda é essa agora? – June correu de volta para a escada e subiu o mais rápido que conseguiu, apoiando seu peso do canto dos degraus de madeira, que ele percebeu na descida serem os lugares mais firmes. Deixou a lanterna para trás, Tony se viraria para acompanhar.No topo, June viu logo meia dúzia de babacas sem cabeça se aproximando.— Só pode ser brincadeira… – murmurou pra si mesmo e virou para baixo, para Tony. — Quando chegar aqui em cima, se prepara pra correr.— Mas- por quê? O que tem aí em cima? – June não respondeu, foi direto para dentro da casa e viu Cora parada à janela, arma a postos.Ela podia parecer durona a maior parte do tem
O rapaz que Tony trouxe para dentro tinha os cabelos tão vermelhos quanto as chamas do fogo antes que elas enegrecessem e consumissem a criatura do lado de fora. Ele mancava, se apoiando pesadamente em Tony e era difícil dizer se isso era por causa dos ferimentos ou do choque. June ficara preparado e alerta no instante em que ouviu o barulho de motor se aproximando, especialmente no meio do caos que a floresta se tornara, com mais e mais monstros chegando e se conglomerando, ao ponto de ser quase impossível dizer onde um começava e o outro terminava. E vinha estado se equilibrando entre manter a calma e impedir que Tony entrasse naquele pânico frenético novamente. Pelo jeito como as coisas iam, a ideia de que sobreviveriam para ver o dia amanhecer não passava de um sonho. Mas então um 4x4 chegou atropelando um pu