Apenas um Desejo (Green Hill - livro 1)
Apenas um Desejo (Green Hill - livro 1)
Por: MS Mendes
Capítulo 1

Estava exausta. E suja, amedrontada e desorientada.

                Mas não ousaria parar. Continuar significava estar cada vez mais próxima de seu destino. De sua liberdade.

                Não que soubesse muito bem para onde deveria ir. Tinha apenas um mapa nas mãos e um carro cuja gasolina já estava quase acabando. A cidade mais próxima chamava-se Green Hill e ficava a apenas quinze quilômetros de distância. Sim, ela conseguiria chegar. Devia ser um bom sinal.

                Enquanto dirigia o carro velho ― roubado, é claro ―, começava a perceber que suas mãos tremiam. Pensara que quando estivesse longe de todo aquele pesadelo sentiria-se melhor, que aqueles sentimentos de medo e insegurança iriam desaparecer. Mas talvez ainda fosse cedo demais. Talvez precisasse de um tempo para se adaptar à nova realidade e superar o passado. Porque esquecer, ela jamais conseguiria. Era algo que ficaria gravado em sua mente e em seu corpo como uma tatuagem.

                Tentando afastar aqueles pensamentos, respirou bem fundo e começou a cantarolar uma música, acompanhando o rádio. Começou discreta, quase em um sussurro, não demorando muito para aumentar o tom de voz, passando a gritar letra e melodia. Seus berros logo se sobrepuseram à voz de sua mente, que insistia em mantê-la em pânico, repetindo para seus neurônios que aquilo não daria certo, que seria uma felicidade temporária, efêmera. Mas precisava acreditar. Ao menos para manter sua sanidade.

                Ainda cantava desesperadamente, por mais que não conhecesse todas as músicas, quando avistou a placa de "Bem-vindo a Green Hill".

                A visão daquela cidade trouxe um imediato alívio ao seu coração. Estava em um lugar aparentemente seguro, com um posto de gasolina, pessoas que poderiam ajudá-la e, provavelmente, restaurantes e uma pensão onde poderia passar a noite, caso fosse necessário. Não que fosse seu plano, mas se conseguisse um emprego ali, quem sabe não pudesse ficar? Parecia um bom lugar para recomeçar.

                Foi recebida por uma estradinha com muito verde, permeada por palmeiras que proporcionavam sombra e uma agradável brisa, muito bem-vinda, levando em consideração a falta de ar-condicionado do seu carro. Não demorou muito para que pudesse enxergar a costa de águas cristalinas e a areia branquinha. Sendo uma pequena cidade dentro da Califórnia, era de se esperar que houvesse mar e belas paisagens.

                Observando aquela vista, que praticamente acariciava seus olhos, tão acostumados à feiúra de sua realidade escura e sombria, sentia-se cada vez mais decidida a encontrar um espaço para si mesma naquela cidadezinha simpática. Era uma escolha improvável, o que a tornava ainda mais perfeita.

                Precisava abastecer o carro, mas sentia muito mais necessidade de abastecer a si mesma. Podia quase ouvir o estômago roncando e as entranhas se revirando de fome. Parou, então, o carro e dirigiu-se a uma cafeteria estrategicamente localizada de frente para a praia.

                Entrou no estabelecimento e foi recebida por um delicioso cheiro de hamburger e bacon. Fazia um bom tempo que não tinha uma refeição decente, principalmente porque estava na estrada há alguns dias. Estratégia totalmente planejada para despistar.

                Sentou-se e observou o cardápio que estava em cima da mesa. A fome era tanta que seria capazz de comer tudo que estava sendo oferecido, mas optou por um hamburger e batatas fritas com refrigerante, fazendo o pedido à garçonete.

                Enquanto esperava, ficou observando as pessoas ao redor. Todas pareciam sorridentes, satisfeitas com o que faziam, por mais simples que pudesse parecer. Era isso que queria para sua vida... queria aquela paz de espírito, aquela sensação de liberdade e de independência. Precisava renovar-se, criar uma nova identidade, uma nova alma.

                Interrompendo seus pensamentos, escutou uma voz alegre cumprimentá-la. Assim que voltou seus olhos para quem falava, viu que se tratava de uma senhora de meia idade, de cabelos curtos e pintados com um forte tom de acajú, usando óculos de aro colorido, posicionado na ponta do nariz. Na verdade, tudo em relação àquela mulher era cheio de cores e vida.

                ― Olá, querida. Aqui está seu pedido. Nova na cidade? ― Seu sorriso denunciava que estava interessada em uma boa conversa.

                Por mais que não estivesse muito disposta a falar sobre si, não poderia se isolar do mundo e afastar das pessoas. Tinha plena consciência de que ninguém era uma ilha, ou seja, viver sem a ajuda de alguém, ainda mais na situação em que vivia, era impraticável.

                ― Olá! Sim, acabei de chegar. ― Era a primeira vez que falava com uma pessoa desconhecida em anos. Não imaginara que sua voz soaria tão frágil ou insegura, levando em consideração que costumava ser uma pessoa tão comunicativa. Pelo menos era disso que se lembrava.

                ― Pretende ficar?

                Uau! Ela era direta! Era um desafio e tanto já ser recebida em sua nova vida por uma pessoa tão peculiar.

                ― Ainda não sei.

                ― Se resolver ficar, vai ser muito bem-vinda. ― Ela sorriu de forma muito simpática.

                ― Obrigada.

                ― Qual é o seu nome?

                Antes de responder, respirou fundo, pois sabia que aquela pergunta iniciaria sua nova fase. Era como a senha para abrir uma porta pela qual não se poderia sair nunca. Uma bola de neve interminável.

                ― Paige. Paige O'Brien. ― O nome saiu como um sussurro, como se ela quase não quisesse que fosse ouvido.

                ― Muito prazer, Paige. Sou Cora Fairlane. Se precisar de qualquer coisa, pode chamar.

                Quando Cora se afastou, Paige teve a nítida impressão de que aquela oferta não se estendia apenas à cafeteria. Era como se ela estivesse oferecendo ajuda em qualquer momento, em qualquer ocasião. E, de alguma forma, ela sentia que poderia confiar naquela estranha.

                Embora confiança fosse algo que ela não estava muito disposta muito disposta a distribuir.

***

                O gosto amargo da cerveja gelada descia por sua garganta lhe proporcionando deleite. A solidão também contribuía para que o momento fosse o mais positivo possível. Não que não apreciasse uma boa companhia, mas sempre sentia que, quando estava sozinho, conseguia ouvir melhor seus pensamentos. Porque já fazia um bom tempo que sua mente trabalhava em silêncio, quase sussurrando.

                Enquanto bebia, seus olhos percorriam todo o ambiente. Era uma atividade quase diária. Todos os dias, depois do trabalho, ele sempre ia à cafeteria de Cora para tomar a mesma caneca de cerveja sentado à mesma mesa e observando as mesmas pessoas de sempre. Era uma rotina entediante, mas ao mesmo tempo confortadora. Ele sabia que por mais que tivesse vontade de desaparecer, de se arriscar em outro lugar, estava enraizado em Green Hill.

                ― Mais uma cerveja, Jake?

                Aquela pergunta também fazia parte da rotina. Sandra, a garçonete do "Fair Cafe" sabia que Jacob nunca tomava mais do que uma caneca, mas ela sempre perguntava. Ele acreditava que era apenas uma questão de educação, mas muitas vezes ficava irritado.

                ― Não, obrigado.

                E como sempre ela não respondeu nada, apenas balançou a cabeça positivamente e retirou a louça suja da mesa de Jacob, levando-a para a cozinha.

                Com a mesa vazia, ele endireitou seu corpo enorme na cadeira, acomodando-se de forma mais confortável, tencionando ficar um pouco mais de tempo ali. Afinal, por qual motivo voltaria para casa? Para assistir a um maldito jogo de futebol na televisão, tomar mais uma cerveja e dormir na poltrona e acordar cheio de dores em músculos que ele nem sabia que existiam?

                A verdade era que Jacob odiava voltar para casa. Odiava o fato de que toda a mobília parecia ter o cheiro dela... Todas as paredes estavam impregnadas de lembranças e histórias. E olha que já tinham se passado dois anos desde que ela tinha ido embora, mas ele não tinha perdido aquela maldita obsessão.

                Já estava quase decidido a pagar a conta e ir embora quando viu uma mulher desconhecida entrar na cafeteria, o que, em Green Hill, com seus cinco mil habitantes, era quase impossível. Não conhecer uma pessoa, ao menos de vista, era algo totalmente incomum.

                Era bonita. Não que fizesse qualquer diferença, mas era algo difícil de não reparar. Os cabelos eram loiros e lisos, na altura do ombro; os olhos, ao longe pareciam azuis, mas não podia afirmar com certeza. Era magra ― talvez um pouco magra demais demais em sua opinião ―, mas compensava na altura. Não era baixinha, mas estava acima da média, por volta de um e setenta, pelo que ele podia calcular à distância.

                Apesar da aparência agradável de se olhar, não era isso que mais chamava a atenção em um primeiro contato visual. Era a forma como ela agia. Sua linguagem corporal dizia muito mais coisas do que qualquer palavra que trocasse com ela; coisa que não pretendia fazer, é claro. Mas era fácil perceber que estava amedrontada, acuada e desconfiada. Olhava para todos e tudo ao redor com cautela, como se esperasse o pior das pessoas. Isso era suficiente para que concluísse que havia um trauma muito grande em sua mente. Algo recente e poderoso que parecia persegui-la.

                Jacob não queria ficar pensando nessas coisas, pois sabia que iria acabar elaborando várias teorias até ficar completamente curioso e ligado a uma história que nem sabia se era verdadeira, mas que já alimentaria um senso protetor e uma necessidade de descobrir todos os detalhes, como um bom policial faria.

                Mas, novamente ajeitando-se na cadeira, tentou se convencer que todo seu interesse por aquela mulher limitava-se ao fato de que, como xerife da cidade, tinha que prezar pela segurança das pessoas. E uma forasteira era sempre uma forasteira.

                ― E ai, parceiro? ― Pronto! Já era a solidão. Alguém o tinha encontrado ali, e, ao reconhecer a voz, por mais que gostasse muito da pessoa que falava, sabia que ele o alugaria por um bom tempo.

                ― Oi, Tate! Já estou de saída. ― Curto e grosso. Talvez mais grosso do que gostaria, mas com Tate Barlow não havia muita escolha. Era isso ou duas horas de papo furado e mais umas três cervejas na conta.

                Em qualquer outro dia Jacob até gostaria  da ideia de uma cerveja com um bom amigo, mas não estava de muito bom humor.

                ― Eu também. Só estou esperando a Julie chegar. ― Julie era uma das várias garotas da cidade com quem Tate saía.

                E, como não poderia ser diferente, assim que ele pousou os olhos na desconhecida, a expressão de cobiça instalou-se em seus olhos.

                ― Uau! Quem será a loirinha? Você conhece?

                ― Não. Mas tenho certeza que ela não é daqui.

                ― Ah, mas não é mesmo. Eu com certeza me lembraria dela. ― Tate fez uma pausa, fixando o olhar na moça por algum tempo, e depois voltou-se para o amigo novamente: ― Ei, você, como xerife da cidade, poderia ir até lá, descobrir quem ela é. A nível informação, é claro.

                Jacob não conseguiu não rir da expressão no rosto de Tate e da forma como ele falou.

                ― Fica para outro dia, tudo bem? Contente-se com a Julie por enquanto. ― O que sem dúvida não era uma opção nem um pouco ruim, levando em consideração que Julie era uma das garotas mais bonitas da cidade.

                Assim que terminou de falar, Julie deu dois tapinhas no ombro do amigo e se virou para ir embora.

                Contudo, ao passar pela mesa da forasteira, não pôde evitar olhar para ela, por mais que tivesse feito um imenso esforço para resistir. Daquela vez, porém, ela retribuiu o olhar, permitindo que ele tivesse um vislumbre de uma cor de safira completamente incomum. Eram olhos límpidos, únicos, que sustentavam um olhar cheio de sofrimento. Ou seja, não era apenas o seu corpo que gritava que havia algo de errado. Os olhos também...

                Maldição! Não ia conseguir mais parar de pensar na mulher!

***

                Seu estômago praticamente agradecia por ter recebido comida de tão boa qualidade, principalmente porque, depois do hamburger, ainda pediu um pedaço de torta de limão que estava igualmente deliciosa.

                Sentia-se bem ali. Confortável, segura e calma. Ao pensar nisso olhou para as próprias mãos e percebeu que elas não estavam mais tremendo. Já fazia alguns anos que não as via tão firmes ao levantar um copo ou um talher.

                Era mais um bom sinal. Mais uma prova de que se conseguisse passar algum tempo longe daquela loucura que fora sua realidade por tantos anos, acabaria tendo a oportunidade de voltar a ser pelo menos um pouco da mulher que fora um dia.

                Enquanto descansava depois da refeição, que fora sua primeira do dia, por mais que já fossem seis e meia da tarde, percebeu que alguém a observava. E aquilo a incomodou.

                Tratava-se de um homem não muito mais velho do que ela, com uma expressão séria no rosto másculo. Os cabelos eram curtos como os de um militar, castanhos, combinando com os olhos da mesma cor. A altura e o corpo eram intimidadores. E foi exatamente isso que fez com que se sentisse preocupada. Mais ainda quando ele passou por ela para ir embora, não deixando de observá-la uma última vez com aquela sua expressão sisuda.

                Um segundo depois de ele ter saído, Cora Fairlane se aproximou de sua mesa, pronta para recolher o prato, talheres e copo.

                ― Estava bom? ― perguntou, com certeza muito interessada em ouvir um sim.

                ― Muito. ― Paige fez uma pausa e acrescentou: ― Quem era aquele homem que acabou de sair? Ele estava me olhando de uma forma estranha.

                Cora olhou na direção da porta e avistou, ao longe, Jacob se afastando da cafeteria.

                ― Ah, aquele é Jacob Barnham. Não se preocupe, querida, Jake é assim mesmo. É o xerife da cidade e descofia de todas as pessoas novas que aparecem por aqui.

                Xerife? Bem, não precisava ter medo de um homem da lei. Precisava?

                ― Deseja mais algum coisa? ― Cora indagou, voltando a atenção de Paige novamente para ela.         

                ― Para comer, não, estou satisfeita. Mas pode me informar onde encontro um lugar para passar a noite?

                ― Claro. Tem a pousada da Zhoe bem pertinho daqui. É só seguir a rua à esquerda até o final. Dá para ir andando, se quiser.

                ― Estou de carro. Mas acho que vou precisar abastecê-lo.   

                ― Veja se não é sei dia de sorte? Na frente da pousada tem um pousada tem um posto. É só atravessar a rua.

                ― Muito obrigada! Quanto te devo? ― Paige perguntou, enquanto remexia na bolsa, procurando por dinheiro.

                ― Nada. Fica por conta da casa.

                ― O quê? Não, não posso aceitar.

                ― Claro que pode! Encare isso como um presente de boas-vindas. Se resolver mesmo ficar em Green Hill, volte mais vezes.

                Paige não soube o que dizer. Era a primeira gentileza que recebia e não estava naquela cidade nem há duas horas. Talvez fosse um sinal de que era ali mesmo que deveria ficar.

                ― Obrigada. Espero retribuir um dia ― emocionada, tentou conter as lágrimas. Não saberia dizer se eram de cansaço, alívio ou alegria.

                ― Não estou pedindo nada em troca. É assim que fazemos aqui em Green Hill: recebemos bem os nossos hóspedes. Vai gostar de Zhoe também.

                Sorrindo, Paige se levantou e deixou o restaurante. Mas ela nem sabia que Cora também sorria. Por um motivo muito diferente.

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