Aquele domingo de festa começava a mostrar o seu rico entardecer. Voando em formação, bandos de gaivotas se dirigiam ao horizonte em busca da mata para a acolhida noturna. No rio começava a apontar os cardumes de peixes noturnos e o sol ia mudando a cor dourada pela avermelhada, escondendo-se pouco a pouco por trás do mar que se podia ver bem distante.
- Preste atenção que ele vai fritar como peixe quando se encostar-se à água.
Esta frase era do "seo" Honório falando do pôr do sol ao neto Paulo. Toda tarde de verão o velho lobo do mar reunia o neto e mais algumas crianças para contar histórias. Sentadas ao seu lado ficavam todas a olhar para aquela enorme massa de água azul esverdeada e ouvir os contos do antigo pescador. Hoje ele contava a história dos deuses do Olímpio. Dizia que Netuno, na hora do jantar, atraia o sol para o seu tridente e o levava ao fundo do mar para fritar seus peixes. Como o sol é multo quente, também fritava ao encostar-se na água nesses finais de tarde, tentando resistir ás intenções de Netuno, que ao final sempre o vencia.
Depois de fritar seus peixes Netuno levava o sol ao outro lado do mundo e para cá trazia a lua. Sob ela ele cantava canções multo bonitas para que todos pudessem ter sono e sonhos alegres e divertidos.
O entardecer do dia da festa aos poucos se transformava em noite. Os lampiões a querosene traziam uma atmosfera romântica para as janelas das casas, enquanto a lua começava a surgir no horizonte oposto ao do sol. Grilos e sapos já sé anunciavam e grupos de pescadores também se formavam à volta do garrafão de pinga destilada por eles mesmos desde muitas décadas. Este produto artesanal ficou tio famoso na cidade que acabou por se transformar em mais uma fonte de renda para o povoado. Toda semana um ou mais barcos de pesca transportavam pelo rio vários tonéis com o produto para os revendedores e consumidores citadinos.
A criançada começava a se recolher, mas não sem os devidos e gritados protestos, obedecendo às ordens patriarcais. Protestavam ainda mais ao serem obrigadas a se banharem na cascata e quase sempre nuas. Meio arrastadas e aos berros, acabavam por cederem às ordens paternas e levavam para o berço a lembrança das histórias que o senhor Honório acabava de contar.
A tagarela Imaculada parecia uma dessas crianças. Acostumada a deitar-se multo cedo, por insistência e assistência dos vizinhos, no dia da sua festa resolveu adotar uma posição diferente; contrariando a tudo e a todos, não acatou as ordens de repouso dos seus vizinhos. Preferia mostrar-lhes o anel que o prefeito lhe dera juntamente com os outros presentes que ganhara naquele dia. Olhava encantada para suas novas peças de roupas e distribuía as guloseimas para as crianças, coagindo-as assim a atenderem as ordens dos pais. Frutas e alimentos ganhos mandava para o armazém coletivo, criado há algum tempo por uma ideia sua, visando efetuar equilibrada e racional distribuição de alimentos entre todos os moradores.
A resplandecente lua nova já se fazia alta no céu expondo todo seu brilho, prateando o topo das árvores e iluminando as vielas da aldeia, às vezes fazendo sombras e silhuetas das mais diversas e engraçadas formas. Ainda, aumentava aquela atmosfera romântica das janelas e portas iluminadas com os lampiões de querosene.
Um a um os pescadores iam se recolhendo pensando na jornada do dia seguinte. Só Imaculada insistia em ali permanecer. Não se cansava de olhar as estrelas, a lua refletindo nas águas do rio, a escuridão distante onde começava o mar e a ouvir o barulho da mata, tão seu conhecido e companheiro. Tão conhecido e companheiro que podia até conversar com ele. Quantas vezes ela previu tempestades, vendavais, temporais, enchentes, pragas e tantos outros males simplesmente ouvindo o barulho da mata e conversando com ela. Da mata também tirava remédios milagrosos. Era dela que saía grande parte da alimentação que com prazer e criatividade preparava, fazia e ensinava a todas as mulheres da vila.
Nesses momentos Imaculada também se elevava em preces. Rumava os pensamentos para sua estrela guia e recebia do velho Arcanjo Daniel, tão seu companheiro e orientador, a lhe fornecer imprescindíveis instruções que norteavam sua vida do dia seguinte. Hoje, porém, Daniel em nada a orientou. Limitou-se a ternamente abraçá-la e deixando sua condição de superior, respeitosamente beijou-lhe a fronte, como a admirar aquele ser vivo que multo com ele se parecia. O que mais se poderia fazer para quem tudo já sabia enquanto carne, a não ser esperar pelo dia não multo distante que juntos estariam? Sabia ele que novos ensinamentos para ela só seriam possíveis a partir de então. Hoje, respeitá-la e afagá-la era o que de melhor podia lhe fazer.
O último pescador recolheu-se carregando o garrafão de pinga. Ainda dispôs-se a acompanhar Imaculada até a porta da sua casa, mas esta o recusou. Queria mesmo ficar ali e pode contar com a companhia do "seo" Honório. Aos setenta anos, ele não mais se arriscava a pescar nos rios e no mar, porém, acostumado ao trabalho, não conseguia ficar a toa. Cuidava com suas mãos calejadas da manutenção e conservação das tralhas de pesca dos companheiros. O senhor Honório era uma pessoa tão simples como qualquer outra de sua convivência, mas tinha um particular que o diferenciava. Era ávido pelo saber e todo atenção aos ensinamentos. Vendo-o sentado num tronco de árvore sob uma paineira mirando as estrelas, Imaculada convidou-o para uma conversa sob o encantado luar da noite.
- Tá sem sono seo Honório? Vem aqui. Vamos conversar um pouquinho. É sempre bom tirar um dedinho de prosa.
- Tô sim dona Imaculada. Eu também gosto multo dessas noites estreladas. Elas me fazem lembrar dos dias que eu pescava no mar e no rio. Me trazem saudades. Mas eu preciso levantar cedo e não posso me demorar muito. Vou ficar um pouco aqui com a senhora, mas terá de me contar dona Imaculada, como é que a senhora consegue viver tanto e com tanta saúde? Qual é o segredo?
- Tem segredo não "seo" Honório. Mas tem coisa que precisa entender para saber e fazer.
- E o que é essa coisa? Será que um velho de setenta anos ainda pode aprender e fazer alguma coisa mais que consertar redes de pesca?
- Pode sim. A idade não tem nada não. Eu mesma estou aqui há cem anos e ainda preciso aprender multa coisa. Mas Muitas eu também já sei, viu. E posso até ensinar.
- Dona Imaculada. Que pode ter a senhora ainda por aprender? A senhora é um poço de sabedoria e só tem mesmo a ensinar, Aprender é coisa para os mais novos.
- É não seo Honório. Aprender é coisa para qualquer um que queira, assim como eu e o senhor.
- Então me ensina dona Imaculada.
- Fique sabendo "seo" Honório, que nade neste mundo acontece por acaso. Tudo que nele acontece já foi previsto para ser assim. E foi Deus que previu. Ninguém inventa nada, é Deus que inventa tudo. Nós pegamos a ideia Dele e dizemos que inventamos isso ou aquilo. Quando se pode entender os pensamentos de Deus, ai nós inventamos e também podemos ter longa vida, sem doenças, sem tristeza e sem ódio. Acho que foi assim que eu cheguei a tanto.
-E de que jeito se pode entender o que Deus nos fala? Como se pode ter certeza que estamos entendendo certo? Que língua Ele usa para falar com a gente?
- Ele não fala seo Honório. Ele vai mostrando tudo o que quer de nós e quando a gente faz por merecer, aí sim, Ele manda falar pra gente. Como vê, Ele não precisa usar língua nenhuma.
- Não entendo dona Imaculada. Como Deus pode mostrar o que quer a tanta gente de uma só vez? Como Ele pode estar em todos os lugares do mundo ao mesmo tempo?
- Não é bem assim "seo" Honório.
- Agora a senhora, me confundiu mais ainda. Eu
sempre aprendi com meus pais e também com meus avós que Deus estava em todos os lugares. A senhora diz que não é bem assim. Então corno é dona Imaculada?
- Deus tem milhões e milhões de ajudantes. O senhor já ouviu falar deles São os nossos anjos de guarda. Deus ordena ao anjo que permaneça com a pessoa escolhida durante todo o dia e a noite ele faz um relatório pra Deus. É assim que Ele sempre sabe de tudo e de todos.
- E os anjos dona Imaculada? Eles falam com a gente?
- Ahhh. Esses sim. Os anjos' são os portadores da palavra de Deus para nós. Por eles é que nós ficamos sabendo e conhecendo de tudo.
- E como se faz para entender o que eles falam?
- É muito fácil "seo" Honório. Primeiro eles fazem uma avaliação do que nós somos. Tudo aquilo que fazemos ou deixamos de fazer é analisado por eles e levado até Deus. Deus faz Seu julgamento e se nós formos merecedores, Ele autoriza o anjo a nos dizer as coisas. Aí, o anjo começa a nos fazer sentir essas coisas, às vezes nos faz sonhar e em outras até entram em nós para nos dizer ou ainda para dizermos a outros o que o anjo deles quer comunicar.
- Então nós podemos conhecer nosso anjo?
- É claro. Para conversar conosco ele sempre se apresenta. Com o tempo, a gente pode até saber qual é a sua idade, sua cor, seus princípios e seu nome.
- E a senhora já conhece o seu?
- Conheço. É um Arcanjo com mais de mil anos e se chama Daniel.
Nessa altura os pescadores já estavam despertando para o trabalho. Dona Imaculada, enfim, rendeu-se ao sono e ao cansaço, resolvendo recolher-se.
- Já é muito tarde. Eu vou me deitar. Boa noite seo Honório. Ahhh. Mas me diga. O que o senhor achou da galeguinha? .
- Tchã lindeza de menina dona Imaculada. Logo vai ser a rainha da aldeia.
- É. Também acho. E olha seo Honório. Esse seu pensamento é coisa do seu anjo de guarda. O senhor está antevendo o que vai acontecer. Boa noite.
- Boa noite.
CENTO E POUCOS ANOS ATRÁS O final do século XIX envolvia o país em problemas semelhantes e equidistantes ao longo das suas fronteiras. Tanto o Norte, quanto o Sul da nação viviam em lutas pelas terras dominadas pelos latifundiários e em busca da tão sonhada reforma agrária, fato que se alastraria pelo longo dos anos. Diferenciava-se do resto do mundo que passava por transformações políticas, religiosas e industriais em seus continentes evoluídos; pelos problemas de racismo e segregação nestes e também na maioria dos menos evoluídos; pelas revoluções culturais e científicas que começavam a expandir-se pelo planeta, sendo que deste ele também participava e de forma reconhecida, principalmente na Europa, através dos seus intelectuais, artistas e cientistas. Todavia, no seu bojo, limitava-se
OS RETIRANTESO problema crônico da seca nordestina sempre foi merecedor das atenções governamentais desde o tempo do Império. Dom Pedro I já lhes destinava verbas com o intuito de amenizar o caos da vida dos sertanejos. A tão desejada água, os projetos de irrigação e o desenvolvimento de uma das mais pobres áreas nacionais faziam-se assunto na corte e entre a nobreza. Porém e na verdade, esses fatos estavam longe de sensibilizar a realeza e os nobres. .Eles viam nos problemas nordestinos a chama capaz de iluminar e mostrar a bondade monárquica, mas na verdade, preocupavam-se mesmo era com a enfiteuse e as riquezas que a coroa podia enviar para Portugal. Os condes, barões, príncipes e princesas acabavam, exatamente todos eles, ficando com a maior parte da verba destinada aos lavradores nordestinos.A República sucedeu a Monarqu
Com voz calma, porém emocionada, Norton colocava Liduina a par dos fatos. Narrava com detalhes todos os acontecimentos que ultimamente envolveram seu pai e exemplificava contando tragédias semelhantes com diversas pessoas. Entre elas, falou-lhe de Arnon e do que ele vinha fazendo pelo povo, da sua luta e do seu empenho em reconstruir com fé, trabalho e com bases fortes tudo o que essa gente perdia e com isso sofria. Não deixava de desculpar-se e pedir perdão a cada instante, por aquilo que, na sua mente, não deixava de culpar-se.Lidu, como normalmente era chamada, acolheu-se em seu ser. Ela nunca havia passado por situações ao menos parecidas e não sabia como, quando e por onde agir. Sabia apenas que tinha de decidir-se por alguma coisa, mas não encontrava ânimo que a dirigisse para qualquer tentativa. Com o semblante entristecido, agradecia e eximia Norton da falsa culpa que a ordenanç
Numa tarde quente, Liduina já extenuada pelos afazeres e andanças, armou a rede entre árvores e ali ficou a observar o céu totalmente azul sob o sol escaldante. Olhava o alegre esvoaçar das arribações em busca de água e ouvia o grito solitário do carcará em sua caçada. O sol castigava-lhe a tez que já não suava e a boca seca, igual aos bicos das arribações, reclamava por água, que de tão escassa era toda destinada aos doentes de desidratação, cólera e daqueles vitimados pelos bandos. Tal e qual àquela tarde no pear, ali ficou por longo tempo e a noite conversou com Arnon:- Vamos embora daqui. Vamos para o Sul. - Por que essa idéia mulher? Temos tanto que ajudar e fazer por aqui mesmo. Você tem algum a idéia de como é no Sul?- Meu marido. Aqui tudo está por se acabar. O governo está fazendo uma grand
PRIMEIRO DECÊNIOO cometa Halley cortava os céus da aldeia de Leste a Oeste. Seu brilho intenso refletia nas águas do rio e por ele viam-se os cardumes de lambaris saltitantes expondo o reflexo das suas escamas prateadas e douradas, fazendo-se parecer a um monte de vaga-lumes. Sob aquele céu que nunca tinham visto, em novena as mulheres oravam por Nossa Senhora do Bom Parto e pediam por uma boa hora de Liduina.Consuelo, a parteira, imigrante espanhola de pouco tempo atrás, na sua terra natal havia aprendido esta arte de trazer à luz os pequenos seres, seus compatriotas e agora, toda eufórica por finalmente poder ajudar seus atuais companheiros, cuidava de Lidu. Zelosa, ágil e autoritária naquilo que muito bem entendia, às vezes arrancava boas gargalhadas dos companheiros quando se expressava
A ALDEIAVista do alto, não representava mais que um simples amontoado de mata, entrecortada por um rio límpido que desemboca no mar. Um local em que a especulação imobiliária nunca se arriscaria a lotear, menos ainda em povoar. As encostas do morro escondiam o pequeno vale e sua beleza. Beleza cuja vista só se fazia perceber para aqueles que, sob a copa das suas frondosas árvores, podiam desfrutá-las e que, lá do alto, os especuladores não conseguiam ver. Mas lá em baixo.Formada por pessoas simples e humildes, a vila Arnon, assim batizada pelos seus ocupantes em demonstração de carinho e apreço que estes dedicavam ao seu líder e fundador, foi vagarosamente evoluindo e tornando-se uma das colônias mais solidária e próspera de que se podia ter notícias por toda aquela redondeza.Ali se desenvol
TEMPOS DIFÍCEISA terceira década começou a trazer duras provas para Imaculada e o povoado. A pesca e o pescado, principal atividade e produto dos seus habitantes, teve sua comercialização proibida dada à epidemia de cólera que por ali se instalara. Eram parcos os recursos para se combatê-la e já começava a aparecer as primeiras vítimas na vila.O acesso íngreme do local dificultava a vinda dos sanitaristas do governo, isso quando podiam, transformando a confidente em dedicada enfermeira. Sem descanso ela auxiliava no pouco recurso médico que conseguia, sempre com muito esforço e perspicácia. Não raro, tinha seus escassos momentos de descanso interrompidos pelos chamamentos, cada vez mais frequentes, das pessoas necessitadas.Quis o destino, porém, mesmo sendo a incansável guerreira agraciada pelos b
Passaram-se três longos anos. O país, pela figura do ditador, recebia pressões de outros países para o seu alinhamento. Nessa altura, a guerra ganhava dimensões mundiais e a ela, entre outros, já se engajava os Estados Unidos da América, logo após um bem sucedido ataque nipônico às armadas americanas sediadas em Perl Harbor, no Havaí.Aos poucos as notícias também vinham chegando até a aldeia trazida pelo povo da cidade e pelos pescadores que dela retornavam. Nela, Imaculada há muito vinha atendendo pessoas cujo medo extrapolava-se. Eram mães que temiam por seus filhos numa provável aliança do país em qualquer dos lados. Eram políticos que buscavam orientações para seus futuros manifestos. Eram estrangeiros cujos parentes e amigos encontravam-se nas zonas do conflito e por eles pediam proteção. Eram os simples e humildes seres que vinham simplesmente para orar por aqueles cujas atrocidades sofridas já não mais se co