EU NÃO SABIA NA ÉPOCA, mas quando cheguei à fronteira perto da Floresta Negra, um destacamento das tropas do general francês Charles de Gaulle estava em conflito armado contra insurgentes alemães que brigavam para manter o seu território. Eu fui apanhada no calor da batalha. Um tanque Panzer havia encurralado soldados franceses e belgas num bairro pobre da cidade alemã enquanto um Tiger desfilava barulhento pelas ruas disparando da sua base a esmo contra casas e prédios da já devastada vizinhança. Por mais forte que fosse, eu sabia que ainda não estava em condições de enfrentar dois tanques de guerra praticamente indestrutíveis, e naquele momento, percebi que aqueles soldados aliados estariam por conta própria. Quando um disparo atingiu a marquise de um prédio acima da minha cabeça, fui obrigada a me esconder dos destroços que despencaram pesados e ruidosos na calçada onde eu andava. Ainda era o meio da tarde daquele dia e mesmo com o céu encoberto por nuvens espessas, o sol por trás
O SUICÍDIO de Adolf Hitler e a rendição dos japoneses aos Aliados havia encerrado a Segunda Guerra Mundial em 1945, mas as consequências daquele conflito ainda seriam sentidas por várias gerações que nasceriam a partir dali. O mundo nunca mais seria o mesmo depois de tanta dor e sofrimento, o que na época, me fez tomar a decisão mais acertada: Me isolar da violência que eu parecia atrair desde que havia me tornado uma vampira. Assim que a guerra acabou, eu me mudei para a França. Vaucluse era uma região localizada no Sudeste francês cujas montanhas ocupavam metade de sua região. A aproximadamente 200 km de distância de Lyon, o distrito e sua capital Avignon abrigavam na década de 40 museus, teatros e até mosteiros, tendo servido como sede papal da Igreja Católica no século XIV. Me valendo do lucro paulatino que a minha mineradora russa agora rendia, dados os danos causados pela Segunda Guerra na economia — e também pelo sistema socialista onde a empresa estava fixada —, eu c
EM 1952, NA FESTA de aniversário de oito anos de Alexandra, Miguel me apresentou quatro possíveis aquisições empresariais que podiam me interessar e eu fiquei de estudar cada uma das propostas com mais calma. Embora boa parte da fonte da Rassvet tivesse secado, eu havia mantido um percentual considerável da riqueza do velho Rodchenko em meu nome, convertida principalmente em joias e em imóveis. Se as coisas não melhorassem pelos próximos meses, a saída ia ser transformar aqueles bens em dinheiro e investir numa nova empresa. O amigo espanhol de Enzo parecia realmente interessado em nos ajudar e ele tornou-se um excelente padrinho para Alex, sempre a cobrindo de bonecas caras e outros presentes diversos quando nos visitava no castelo. A menina também o adorava.No verão de 1953, Enzo caiu de cama febril e parecia que não haviam meios de impedi-lo de delirar, suar em bicas e falar coisas descone
DE SETEMBRO DAQUELE ANO a meados de junho do seguinte, eu e Marco voltamos a nos ocupar com os negócios de mineração que nos permitia continuar levando a vida confortável que dávamos a Alex. Daquela maneira, ao mesmo tempo que eu mantinha nossa filha afastada dele, eu conseguia ficar de olho em meu marido caso sua transformação assumisse características diferentes daquelas que só permitiam que ela acontecesse em período de eclipse ou na primeira lua cheia do verão. Seguindo a dica de Miguel Harone, eu estava negociando a compra de uma estação petrolífera no Oriente Médio e uma sociedade com uma empresa de extração na Venezuela. Eu planejava usar os últimos recursos da fortuna que ainda me restava para que minha filha fosse dona de uma herança milionária no futuro e não tivesse nunca que passar por apertos financeiros, por isso, estava inv
NÓS ENTERRAMOS Enzo Di Grassi num dos jazigos de sua família em Veneza e aquela cerimônia foi tão curta quanto dolorosa. Eu estava vestindo um sobretudo preto sobre um conjunto de blusa e saia de mesma cor e havia prendido meus cabelos num rabo de cavalo desleixado. Além de dois ou três familiares de Enzo que eu mal havia conhecido na comemoração de nosso casamento, estavam presentes a babá francesa Danielle, meu motorista siciliano Fabrice e todos os Batedores de Ferro. Miguel Harone parecia inconsolável ao lado da esposa vendo o caixão de meu marido ser abaixado até a cova enquanto os presentes começavam a jogar pétalas de rosa. Alex tremia aos prantos com suas mãozinhas segurando firme em minha roupa, com o rosto cheio de lágrimas em meu peito incapaz sequer de dar o último adeus ao pai. Ela ainda passaria as próximas semanas amuada em seu quarto.Ant
NO OUTONO DE 1954, eu precisei me ausentar de casa para as negociações presenciais com minha nova aquisição na Arábia Saudita e eu viajei para o Oriente Médio com Miguel Harone, cujo filho Jorge estava prestes a nascer no Brasil, para onde ele havia se mudado recentemente. O espanhol havia aberto uma filial de sua consultoria administrativa na América do Sul e passaria a operar de lá a partir do nascimento de seu primeiro herdeiro. Após aquela negociação com os empresários árabes que me tornaria a proprietária de uma das mineradoras mais rentáveis do Oriente, seria bem mais raro que eu me encontrasse com Harone e sua esposa por aí e ele fez aquele último trabalho para honrar sua amizade com Enzo Di Grassi. Todos os trâmites legais levaram alguns dias e mesmo instalada num luxuoso hotel de Riad, com toda a riqueza e o conforto oferecidos por um xeque ára
EU HAVIA EVITADO aquele reencontro por quase cem anos, mas quando senti traços do vinho francês preferido de Dumitri nos corpos de meus fieis amigos e serviçais, eu parti de Vaucluse na França direto para Bucareste, na Romênia. Apesar de ter feito várias visitas à minha terra ao longo de minha vida eterna, eu nunca tinha tido coragem de retornar àquela parte de Bucareste desde que havia envenenado o vinho daquele que havia me transformado em vampira. Tinha se passado muito tempo. A Guerra dos Balcãs, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial podiam ter acabado com o castelo daquela abominação, mas quando lá cheguei, ele estava intacto. Sua fachada apresentava um tom mais encardido, ele estava decadente, com buracos de bala enfeitando a região próximo da nave frontal… mas ele ainda estava erguido na paisagem soturna da cidade.Era noite quando cheguei na Romênia. Eu estacio
DIFERENTE DO QUE ACONTECIA com qualquer mortal, eu não conseguia captar os sinais vitais de Costel e aquilo tinha garantido que sua presença só fosse descoberta por mim num último instante antes dele degolar Dumitri. Meu meio-irmão tinha me privado de minha vingança contra o único homem que eu já havia temido na vida e agora só me restava caçá-lo e puni-lo por seu erro. Não havia qualquer sinal de outras pessoas no interior daquele castelo sombrio e eu o percorri inteiro tentando encontrar Costel. Ele não tinha mais do que poucos minutos para sugar o que restara do sangue do corpo de nosso mentor antes que o líquido frio se tornasse indigesto e foi exatamente esse tempo que ele levou para reaparecer. Meu meio-irmão estava na sala espaçosa do lugar, a encarar a lareira apagada. A catana estava presa a uma bainha de couro às suas costas e ele parecia me esperar ali. E