Eu estava me lembrando de alguns detalhes da minha história. Eu sempre soube que havia algo de quebrado no meu passado. Algo rachado em minha origem. Os outros anjos diziam que meu pai era um dos mais poderosos da casta dos obsessores, um mestre em manipular destinos, um estrategista frio, cruel e reverenciado. Mas ninguém contava como ele morreu. Ou por quê.Agora, sentado naquela sala repleta de símbolos antigos e registros proibidos, tudo estava vindo à tona, por boca da avó de Ayla, a única que ainda sabia a história completa.— Azrael… você sabe por que seu pai foi condenado?Balancei a cabeça, devagar.— Sempre me disseram que ele desapareceu em batalha. Nunca explicaram os detalhes.Ela se encostou à cadeira, os olhos mergulhados em lembranças amargas.— Seu pai foi condenado porque fracassou. Não uma vez. Mas repetidas vezes. Cada vez que você se apaixonava por Ayla, cada vez que sua memória resistia aos encantamentos dele… cada lembrança sua era um furo na autoridade dele. No
Eu encontrei Hariel onde sempre o via, entre os mundos, pairando sobre a neblina onde os vivos e os mortos se confundem. Quando apareci diante dele, percebi em seus olhos algo que nunca vi antes.Medo.— Você falou com ela, e ela usou magia em você.Ele disse antes que eu dissesse qualquer coisa.— Sim. Ela me contou tudo. Sobre meu pai. Sobre Ayla. Sobre mim.O silêncio dele foi a confirmação que eu precisava.— Então é verdade...continuei, me aproximando...— Você sabia de tudo. Sempre soube.Hariel desviou o olhar. Pela primeira vez, ele parecia menor que eu.— Era o único jeito de mantê-los vivos.Ele murmurou. — Se você soubesse, teria tentado impedir o ciclo. E isso quebraria as regras do equilíbrio. Você teria morrido, Azrael.— E Ayla morreu todas as outras vezes por sua causa! Gritei. — Você me impediu de lembrar. De protegê-la. De salvá-la!— Porque o amor de vocês ameaça tudo o que conhecemos!Ele retrucou. — Você é um anjo obsessor, Azrael. Ela é sangue legítimo de Cl
Dezoito anos.Esse era o tempo que me separava dela.O tempo que precisei suportar com a ausência que dilacerava cada fragmento da minha existência. O tempo que passei vivendo como um espectro entre os humanos, sem propósito, sem alma.Ainda morava com Ethan.Éramos amigos, quase irmãos. A convivência com ele tornara-se minha âncora. Diferente de mim, Ethan seguiu sua vida. Estava noivo de uma mulher que conheceu na academia, uma humana gentil, de sorriso fácil e coração firme. Ele dizia que ela trazia paz. Eu não sabia mais o que isso significava.Numa dessas noites vazias, enquanto o silêncio pairava sobre a casa, Ethan sentou-se comigo na varanda, observando o céu.— Já se passaram dezoito anos.Eu disse, com a voz embargada, encarando a lua. — E não houve nenhum sinal. Nenhum sussurro. Nada.Ethan me lançou um olhar tranquilo, como quem observa uma criança aflita.— Você saberá.Disse ele. — Quando a alma dela voltar, você vai sentir. Porque ela está presa a você. E você a ela. A
O tempo, novamente, se arrastava.Mas diferente de antes, agora ele carregava propósito. Cada dia era uma nova chance de vê-la crescer. Cada gesto dela, cada risada infantil, cada choro, cada passo vacilante no quintal da casa… tudo me fazia lembrar de que ela estava ali. Viva. A infância dela passou como um sopro quente de verão. Às vezes, quando a brisa balançava seus cabelos, era como se Ayla me olhasse. Como se a alma antiga dentro daquele corpo frágil reconhecesse a minha presença. E por um segundo, por um mísero segundo, eu sentia o elo vibrar entre nós.A avó dela também sabia.Estava velha, muito velha… mas seus olhos, fundos e sábios, ainda carregavam o brilho de quem reconhecia os mistérios do universo. Às vezes, me fitava da varanda, como se pudesse me ver mesmo quando eu estava invisível aos olhos humanos. Ela sentia. Sempre sentiu.E então, antes de partir, ela me chamou.Naquela noite, os ventos mudaram. As árvores se curvaram. As estrelas pareciam mais próximas da Terr
Tentei entrar em seus sonhos.Não como antes. Não com a intensidade de quem deseja possuir, mas com a delicadeza de quem deseja ser lembrado. Só um toque. Uma memória sussurrada. Algo que fizesse seu coração estremecer por um segundo.Ela dormia profundamente. Seus traços eram serenos, mas havia uma tensão oculta ali, como se sua alma sentisse a proximidade da minha.Deslizei por entre as camadas sutis do plano onírico, tentando encontrar a porta certa, o fio que me ligava a ela no tempo esquecido.Mas então… fui repelido.Era como bater contra uma parede feita de luz pura. Uma força colossal e antiga, familiar de um jeito que só o ódio sabe nomear.Ayla começou a se agitar.Seus braços se moveram, as pálpebras tremularam. Ela gemia baixinho, entre a dor e o vazio. Meu instinto gritou. Era ele.Hariel.— Desgraçado… Sussurrei entre os dentes.Saí dali antes que o impacto me quebrasse por dentro. Deixei o quarto e fui com a raiva contida até a mata. O céu parecia me ignorar. Nenhuma e
Eu decidi que iria esperar por ela novamente no mesmo ponto do dia anterior. À sombra da árvore que margeava o portão da escola. O sol estava mais suave dessa vez, mas meu interior era um caos. Eu podia sentir o tempo me empurrando contra a parede. O tempo… e Hariel.As aulas terminaram.O fluxo de estudantes começou a sair, ruidoso e apressado, como sempre. Mas quando ela apareceu, Ayla, tudo desacelerou.Ela me viu.E parou novamente.Meu coração, se ainda existisse como antes, teria quebrado o ritmo. Mas o que bate dentro de mim hoje é outra coisa. Algo mais profundo. Mais antigo.Dessa vez, ela não desviou o olhar.Ela caminhou em minha direção.Cada passo seu era uma lâmina que me atravessava com ternura e tortura. Eu tentei manter a calma. Tentei parecer firme, inalcançável. Mas por dentro… eu estava desmoronando.Ela parou a dois passos de mim.Dois.Se estendesse a mão, eu tocaria o rosto dela. Se sussurrasse, minha voz encostaria em sua alma. Mas eu permaneci ali, estático, c
Ouvir Ayla sussurrar meu nome com os lábios ainda entreabertos depois daquele beijo… foi como se o tempo tivesse parado. Por um instante, tudo o que eu fui, tudo o que sou e tudo o que me tornei se misturou em uma só emoção: ela me reconheceu. Ayla me reconheceu.— Você se lembrou? Perguntei, sentindo meu peito apertado, como se eu fosse capaz de sentir o coração de um humano.Ela me olhou confusa, as lágrimas ainda molhando seu rosto.— Eu não sei…Disse com a voz embargada. — Eu sonho com esse nome. Constantemente. Grito ele como se estivesse presa dentro de mim mesma. E quando você me beijou... foi como se eu estivesse dentro do próprio sonho.Engoli em seco. A sensação de ouvir aquilo da boca dela era quase insuportável de tão forte. Ela estava mesmo lembrando. Aos poucos.— Então... é você? O Azrael dos meus sonhos?— Sim.Respondi com firmeza. — Sou eu.Mas havia tanta coisa que ela ainda não podia entender. Tanta coisa que eu precisava contar com calma.— Eu vou te contar tu
Apareci no quarto de Ayla como um sopro de vento. A janela estava entreaberta. A luz da lua acariciava seu rosto que já havia adormecido com a minha demora, e por um instante, me perdi só em vê-la respirar. Mas não havia mais tempo para contemplações. Me ajoelhei ao lado da cama e sussurrei:— Ayla...Ela despertou lentamente, piscando os olhos, confusa, até me ver. Então se ergueu, assustada, puxando o lençol até o peito.— Como você entrou aqui?Perguntou, a voz tremendo.— Eu prometi que viria.— Isso é impossível. Você nem ao menos fez barulho. Isso é...— Real. Interrompi, olhando em seus olhos — Tudo isso é real, Ayla.— Pare de me chamar assim! Meu nome é Victória!Suspirei profundamente. Aquilo era o início. O início de tudo.— Eu te chamo de Ayla porque esse é o seu verdadeiro nome. Não o nome que te deram nesta vida... mas o nome que tua alma sempre carregou. Em cada existência, em cada ciclo, você foi Ayla. E eu… sempre fui Azrael.Ela se levantou da cama, caminhou até o