A Mulher da Foto ( NÃO REVISADO )
A Mulher da Foto ( NÃO REVISADO )
Por: Momede
Capítulo 1

                                                               6:45 a.m.

- Eliza... Acorda! Eliza !!!!

Despertei vagarosamente de meus sonhos, com uma voz chamando-me ao fundo.

Abri um olho e mamãe estava bem na minha frente, com seus olhos castanhos e suas mãos pequenas, balançando-me para acordar-me.

Um alívio imenso tomou conta de mim, quando vi que era ela e não um dos seres obscuros que têm aparecido em meus pesadelos.

Ultimamente ando tendo muitos sonhos que consequentemente se transformam em lembranças ruins, sem que possa controlá-los.  

É sempre a mesma coisa.

Estou em um lugar cheio de estátuas diante de uma porta, que não sei onde é. Um homem segurando um crânio humano, forma uma fila imensa de pessoas que andam ao seu redor.

Ele olha para mim com seriedade enquanto ouço risadas maléficas. Meu nome é sempre  pronunciado em voz alta, como uma chamada escolar que espera por minha respota.

Diversas noites acordo assustada, convicta de que estão me chamando, sendo que a última coisa que vejo é esse homem com uma caveira na mão olhando para mim.

É horrível, porque não consigo dormir novamente e acabo vendo o dia amanhecer rotineiramente.

- O que foi, mãe? - Perguntei bocejando.

- Levanta filha! Seu tio Zeto faleceu. Precisamos ir até o cemitério.

Mamãe mal terminou de falar e saiu andando para fora do meu quarto.

Levantei, tentando assimiliar porque teríamos que ir ao cemitério já que tio Zeto era o tipo de parente distante do qual não tínhamos contato há pelo menos onze anos.

...

Tio Zeto, na verdade era primo de primeiro grau da mamãe. Filho da irmã de meu falecido avô Augusto.

Me lembro das vezes que passamos o recesso do mês de fevereiro, ou seja, o carnaval em sua casa de veraneio.

Zeto era o tipo de cara que gostava de reunir os filhos e os filhos dos primos para ocasiões como essas e sempre que podíamos estávamos juntos.

A lembrança que tinha dele, era de um homem muito simpático, alegre, extrovertido e que não ligava para a bagunça que as gerações faziam quando se reuniam. 

Zeto era casado há mais ou menos vinte e nove anos com a mesma mulher, chamada Eugênia.

Desse casamento, nasceram dois filhos: Cristiano que tinha a mesma idade que eu e Lorena, dois anos mais velha.

Apesar de não crescermos juntos como a segunda geração da família Alves, descendentes em peso de portugueses, acabávamos por nos ver apenas em datas anuais onde o recesso e as férias eram usados para descanso.

Zeto, diferente da sua esposa, não tinha problemas quando, seus filhos e os outros cinco primos, incluindo a mim, jogávamos água fora da piscina, quebrávamos o espeto do churrasco ou quando não fazíamos a cama ao acordar.

Para ele, era tudo uma grande festa estar rodeado pela família e pelas seguintes gerações.

....

Fui até o banheiro e com a porta aberta, fazia perguntas a mamãe sobre o que exatamente tinha acontecido.

- Danúbia me ligou ainda pouco e disse que Zeto tinha falecido e que precisava que eu fosse até o cemitério para arrumar a papelada da exumação de sua avó.

Quando ouvi mamãe dizer "exumação de sua avó", engasguei com a pasta de dente, enquanto escovava-os.

- Como assim, mãe?

- Ah minha filha... O cemitério diz que só podem enterrar meu primo se tirarmos do jazigo o último corpo enterrado. A última pessoa a ser enterrada, foi minha mãe Adélia, sua avó. Então exigiram que um parente próximo estivesse presente para exumar o corpo e assim, enterrar Zeto.

Eu estava em choque.

Não sabia que era assim que funcionava.

Na verdade, eu nem sabia que a minha família tinha um jazigo.

Vovó Adélia, havia morrido há dez anos, quando eu ainda era bem pequena, embora lembrasse muito bem desse dia.

Estávamos todos dormindo, quando vovó infartou. Acordei com mamãe chorando, dizendo que vovó tinha ido embora. Ela morreu de madrugada, nos braços de minha amada mãe, Noemia.

Infelizmente o socorro demorou para chegar, assim como a funerária. E descobri que mortes dentro de casa são muito mais complexas e burocráticas.

Vovó ficou em cima da cama, morta por longas doze horas até que finalmente a funerária a levasse.

Até hoje lembro-me de olhá-la com um lenço em volta da cabeça, sem cor, achando que a qualquer momento pudesse levantar de onde estava deitada.

Como sempre fui muito sensível a ter sonhos estranhos, dois dias depois do sepultamento de vovó Adélia, sonhei com ela vagando pelo corredor da nossa casa. Nunca contei para mamãe, pois ela já tinha ficado bastante abalada com a perda.

No entanto, na noite anterior a sua morte, uma coisa muito curiosa aconteceu. Algo que me marcou imensamente e que jamais esqueci. 

Eu estava na varanda de casa molhando os vasos de plantas, uma das minhas tarefas dentro de casa, quando uma coruja assustadora aterrissou na janela.

Ela era marrom e preta, seus olhos grandes e cintilantes me encarando, parecendo saber exatamente o pavor que provocava em mim.

Na hora fiquei sem ação. Tive medo de gritar por minha mãe e a coruja me atacar, então tentei andar vagarosamente para longe dela. 

Acho que aquela coruja sinistra deve ter demorado no parapeito da janela em torno de dez segundos, para logo depois bater as asas e voar. 

Corri para a sala e fechei a porta, dizendo para mamãe que tinha visto uma coruja.

Para mim, era apenas um animal esquisito, mas para ela era o presságio da morte.

Ela me explicou que corujas simbolizavam falecimento e que quando apareciam, era porque alguém que conhecíamos morreria em breve.

Como achei aquilo uma grande fantasia, não levei a sério, até que por fim, na noite seguinte vovó nos deixou. Na época, eu tinha nove anos anos.

Desde aquele dia, sempre que vejo uma coruja, morro de medo.

......

Entretanto, cemitério não era algo comum na minha vida.

Os familiares mais próximos como tio, avó e avô, tinham falecido quando eu ainda era um bebê de colo, porém ao pensar sobre a última vez que estive em um cemitério, simplesmente não conseguia recordar. 

Já mamãe, não perdia um sepultamento.

Se a chamassem para enterrar o vizinho da rua debaixo que ela não conhecia, mamãe se arrumava toda e comparecia. Adorava ver um defunto ou ir à velórios. Chegava a ser engraçado.

- Ta bom, mamãe. Vou te acompanhar até o enterro do primo Zeto, não se preocupe. Sei o quanto você gostava dele. Espere só, que eu terminei meu banho.

- Não filha! Você não está entendendo. Mesmo que Zeto não fosse meu primo de primeiro grau, você teria que ir comigo.

- Por que? - Indaguei curiosa.

- Você não acha que eu vou exumar a sua avó, né?

Coloquei a cabeça para fora do chuveiro, com a espuma do shampoo em meus olhos, totalmente alarmada.

- Mãe... se não é você quem vai fazer a exumação da vovó Adélia, quem é? - Perguntei com  coração acelerado.

- É óbvio que será você, Eliza! Eu é que não vou exumar a minha própria mãe...

Voltei vagarosamente para debaixo da água morna totalmente anestesiada com a missão do dia protocolada.

Logo eu, que mal conhecia o mundo dos mortos, agora teria que exumar a minha própria avó sem nenhum tipo de preparo.

.....

No carro, durante todo o trajeto até o cemitério, que durava em torno de cinquenta minutos no gps, fazia perguntas a minha mãe sem parar.

- Do que exatamente o tio Zeto morreu?

- Segundo a prima Danúbia, irmã dele, Zeto morreu de ataque cardíaco.

Na minha família isso era de praxe.  Não tínhamos doenças cardíacas graves, mas infartar da noite para o dia era normal.

Meu tio, meu avô e minha avó faleceram dessa maneira e embora mamãe já tivesse sofrido infarto, acabou se recuperando e tendo a sorte de não seguir os passos de seus pais e irmão.

- E quando foi isso? 

- Danúbia disse que foi ontem durante o dia. Ele estava em outra cidade a trabalho. Passou mal e comunicaram a família.

- Mãe... Você pode me explicar melhor esse lance do jazigo e exumação?

Mamãe respirou fundo como se aquilo fosse óbvio demais para ser explicado, mas no fundo sabia que precisaria mais cedo ou mais tarde me deixar ciente do que fazer em caso de mais uma morte na família. 

- Então... Acontece assim: A família Alves tem um jazigo no cemitério. Dentro desse jazigo cabem três corpos de familiares.

- E precisa pagar o enterro dentro do jazigo?

- Não. O que se paga é um valor anual que é dividio pelos doze meses, para que possamos enterrar nossos entes dentro do jazigo.

Eu ouvia tudo atentamente, nos mínimos detalhes.

- Atualmente no jazigo estão os corpos do pai do Zeto, do seu avô e por último a sua avó.

- Tem dez anos que ninguém morre na nossa família? - Perguntei fazendo as contas de cabeça.

- Basicamente.

- Então o jazigo é mais nosso do que da família do primo Zeto?

- Não necessariamente.

- Zeto era quem pagava as prestações anuais do jazigo. Inclusive era ele quem ia todo mês cuidar do local onde os corpos estão enterrados.

- Como assim cuidar?

Ao ouvir mamãe falar sobre cuidados que o primo Zeto tinha com o jazigo, já o imaginei lavando, abrindo e arrumando os corpos.

- Sabe... Foi ele quem colocou o mármore. Era ele quem encomendava as fotos para a parte superior da lápide, as flores frescas, entre outras coisas.

- Se eu tiver que te enterrar no jazigo da família, essa responsabilidade será minha? - Perguntei com o coração apertado, só de imaginar mamãe morta e tendo que ser enterrada por mim.

- Você sabe que não quero ser enterrada. Já deixei em cartório que quero ser cremada, Eliza. CRE-MA-DA.

- Sim, mamãe... Eu sei. - Eu sabia, era evidente, só não lembrava com aquele assunto todo de jazigo que teria algum dia que cremar mamãe, o que pensando bem, seria muito melhor do que anos depois ter que passar pelo processo de exumação.

Minha mãe Noemia, queria ser cremada a qualquer custo quando morresse e mesmo prometendo que faria isso, ainda sim registrou em cartório seu desejo.

Ela nunca escondeu que deixar o seu corpo para os bichos comerem não era uma opção.

Mamãe odiava pensar que baratas e minhocas a devorariam em meses ou anos de maneira vagarosa e humilhante.

- Posso continuar? - Ela perguntou, tentando continuar o assunto que antes tomara um desvio provocado por mim.

- Por favor...

- Bem... O primo Zeto precisa ser enterrado e para isso, sua avó tem que ser exumada. Danúbia disse, que a direção do cemitério exige que um familiar próximo da última pessoa enterrada, faça a exumação. Logo, eu sou a filha e você é a neta e estamos de acordo que como filha, não farei esse trabalho sofrido de exumar minha própria mãe. Isso é tarefa para a única neta.

- Por que a prima Danúbia não pode fazer? 

- Já expliquei, Eliza!  É só questão de grau de parentesco.

.............

Quando chegamos na porta do cemitério, várias pessoas trajando preto encontravam-se e abraçavam-se chorosas e tristes.

Não era uma cena muito boa de ser vista, aliás, nunca é bom enterrar um ente querido que fará falta para sempre em nossas vidas.

Porém, a porta principal era de ferro. Um ferro imenso que se seguia em torno do muro do cemitério. Na calçada, floristas vendiam rosas brancas avulsas em baldes coloridos cheios de água.

Mamãe estacionou o carro exatamente na frente da entrada do cemitério, em uma rua extensa e estreita.

De um lado dessa rua era a entrada e do outro haviam vários botequins. Um, inclusive chamou a minha atenção.

O lugar era simplório, lembrando armazéns de cidades do interior sem recurso ou luz e nele algumas pessoas estavam em pé, a maioria homens.

Alguns desses homens também estavam de preto e outros com roupas normais. Observei a cena em que as oito e quinze, os indivíduos bebiam suas doses de cachaça.

Deduzi que os que vestiam preto, provavelmente afogavam as mágoas após ou durante o enterro de familiares amados, mas o restante não passava de meros consumidores acóolatras.

.......

Eu e mamãe, andamos até a porta do cemitério e avistamos imediatamente a prima Danúbia, uma mulher simples, desajeitada, mas muito receptiva e carinhosa.

De todos os primos de mamãe, ela era a minha favorita, embora nao tivéssemos contato frequentemente.

Danúbia sempre teve uma personalidade introvertida. Usava roupas além da sua idade que a deixavam aparentemente mais velha do que realmente era e morava sozinha há mais de quarenta anos.

Eu mesmo, nunca tinha visto a prima Danúbia com namorado ou soubesse que algum dia ela fora casada. 

- Ah minha querida Noemia... Obrigada por vir.

- Não precisa agradecer Danúbia. É claro que viria. 

As duas se abraçaram demoradamente, como se o passado as unissem novamente em um momento tão triste.

- Eliza! Você está uma moça. Quase não a reconheci. - Abracei Danúbia, a cumprimentando getilmente.

Seus olhos estavam umedecidos e suas feições abatidas, o que era esperado, afinal, a mulher tinha acabado de perder o irmão.

- Vamos, vamos... - Ela andou, nos guiando para uma grande escada no interior do cemitério.

....

Meus passos, assim como meus olhares estavam voltados para tudo o que acontecia ao meu redor, enquanto mamãe e Danúbia caminhavam a minha frente. 

O problema de estar no cemitério era apenas um: A densa atmosfera de energia que ali se fazia presente. 

As pessoas iam para se despedir daqueles que partiam e muitas vezes sem aceitar propriamente essaa partida formando assim uma energia que cercava todo o lugar. 

Os choros e lamentos ouvidos acabavam despertando dentro de mim arrepios e sensações nada agradáveis.

Isso valia também, para a cor preta que é muito usada nos enterros e velórios.

Noventa e oito por cento das pessoas, talvez não saibam mas o preto carrega ainda mais o ambiente da partida daqueles que amamos. 

Além disso os corpos rodeados de flores, pessoas beijando o defunto, dando seu último adeus até que o caixão seja fechado são atividades muito dolorosas e quando há criança no meio disso tudo, é ainda pior.

Talvez seja esse conjunto de fatores, que me mantém longe de lugares como um cemitério.

No entanto, é muito diferente para quem trabalha nesse ambeinte. A rotina passa a ser normal.

Os funcionários andam tranquilamente para lá e para cá, recebendo e despachando carros funerários que chegam a todo instante com caixões que guardam mortos de todos os lugares e de todos os tipos. 

.....

Não demorou para que avistasse uma capela perto do gigantesco pátio onde entrávamos, antes de subirmos a escada que Danúbia nos guiava.

Na capela de tamanho médio abrigava algumas pessoas no interior. Dava para ver que algumas delas, estavam de joelhos orando em silêncio com um escapulário e terços nas mãos, enquanto outras choravam baixinho a procura de conforto. 

Passamos por um chafariz gigantesco onde peixinhos nadavam animadamente, sem saber onde exatamente tinham se enfiado.

Nessa hora, fiquei imaginando como seria se eu fosse um peixe no meio daquilo tudo.

O barulho da fonte de água abundante trazia calma para quem acomodava-se por perto à espera de carros funerários que entravam e saíam do pátio.

Nessa aparente calmaria, uma imersão no silêncio mostrava pessoas reclusas em pensamentos e sentimentos que não diziam respeito a ninguém mais do que aqueles que perderam seus entes amados.

Acredito que nessas horas, somente a fé em um Deus misericordioso, faça com que sigamos adiante.

...

Por fim, começamos a subir a escada com mais ou menos vinte degraus. Mamãe teve um pouco de dificuldade, pois além de estar acima do peso, também não conseguia se locomover muito bem, devido a uma deficiência na perna.

Dona Noemia, nascera com a perna direita dois centímetros menor que a esquerda e por conta disso, seus passos eram lentos e calculados.

Mamãe, caminhava como uma gangorra... Para lá e para cá. Para lá e para cá.

Certamente, eu e a prima Danúbia a acompanhamos no mesmo ritmo vagaroso e paciente.

Fui atrás dela, cuidando para que não houvesse qualquer problema ou risco de desiquilíbro que pudesse resultar em uma possível queda, apesar de vários momentos, precisarmos parar para ela descansar.

O elevador estava quebrado o que fazia mamãe xingar aos sussurros cada degraus que foi obrigada a subir, fazendo-me sorrir timidamente.

Quando finalmente a escada terminou, nos deparamos com uma sala abarrotada de pessoas estressadas, que assim como nós tinham o objetivo de resolver burocraticamente o enterro de algum familiar querido.

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