A LUZ DAS VELAS
A LUZ DAS VELAS
Por: franco.rovedo
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A pressão atmosférica baixava rapidamente e a temperatura aumentava. Sinais evidentes de uma tormenta chegando. O relatório do serviço meteorológico já havia alertado e me preparei para o pior.

Amarrei tudo que poderia soltar-se, inspecionei as presilhas que suportavam a força do mastro sobre seus cabos e fiz o checklist de emergência iminente. As velas seriam recolhidas antes de o vento passar da velocidade para navegação segura. Deixei o equipamento de salvatagem em local de fácil acesso. Era uma obrigação tê-lo a bordo, mas com uma tempestade próxima, queria a balsa salva-vidas mais próxima ainda.

Aproveitaria o forte vento que estava por vir sem ignorar a segurança. Sabia que aquela relativa calmaria não duraria muito e em breve os ventos chegariam bem mais fortes. Poderia lidar com eles a meu favor por um bom tempo, depois disso, seria um inimigo implacável e só a experiência e a cautela poderiam fazer a diferença entre um transtorno e uma desgraça.

Sozinho há semanas, aquele estava sendo um bom momento para reavaliar minhas escolhas. Depois de ter largado a faculdade de engenharia e me dedicado ao trabalho, era a primeira vez que usufruiria plenamente do dinheiro ganho até então. Incentivado por um grande amigo marinheiro, comprei o barco e o preparei para esta longa viagem sem ninguém na tripulação, além de mim mesmo. Poderia ter escolhido ir com alguns amigos para compartilhar esta experiência, mas viajar só era algo que eu devia fazer naquele momento, afinal o século XXI chegaria em pouco mais de dez anos, e com ele o futuro incerto.

Foi amor à primeira vista. Quando olhei o Cutty Sark à venda, não pensei duas vezes, confiei no instinto e fechei o negócio. Gastei quase todas as minhas economias para prepará-lo e me provisionar para a primeira parte da expedição. Sei que a decisão foi imprudente, mas talvez o nome do barco tenha me remetido ao veleiro original e suas aventuras.

Batizei o barco em homenagem ao clipper britânico que foi o último dos grandes veleiros de transporte de chá e lã.

O nome

Cutty Sark

vem do poema cômico de Robert Burns, publicado em 1791. Os versos contam a história de Tam O’ Shanter, um fazendeiro que foi perseguido pela bruxa Nannie, que se vestia apenas com uma cutty sark, pequena camisola, em escocês antigo. Em outra passagem do poema, Nannie arranca o rabo da égua do fazendeiro, antes dele escapar de seus feitiços. Essa é a bruxa que aparece seminua como figura de proa segurando o rabo cortado do animal.

A obstinação do seu primeiro capitão contribuiu para o nome da embarcação tornar-se uma lenda no meio marítimo. Mesmo avariado, o navio de 210 metros de comprimento, chegou a uma velocidade média de 15 nós, perto de 28 quilômetros por hora, levando lã entre a Austrália e a Inglaterra em 67 dias. Uma façanha para a época e um orgulho para o seu fabricante, o estaleiro escocês Scott & Linton. Em 1895 o veleiro foi comprado e rebatizado como Ferreira por um armador português que costumava fazer uma rota de comércio com o Brasil, Estados Unidos e Portugal. O barco original está sendo preservado em Greenwich, Londres, como símbolo de uma era de grandes aventuras no mar.

Para mim, o veleiro que comprei tornou-se “a Pequena Bruxa”.

A minha “Pequena Bruxa” tem apenas trinta e dois pés, quase dez metros de comprimento, mas é um projeto de sucesso. Embora ideal para trajetos curtos, continuei satisfeito com minha impulsiva escolha. A única modificação feita no barco original foi ter aumentado os depósitos de água e combustível. Minha ideia não era ficar muito tempo seguido no mar, mas água doce nunca é demais e combustível só é muito no caso de incêndio.

Navegar sozinho é uma excelente maneira de aproveitar a solidão, mas, conhecer pessoas e seus costumes é o que mais me interessava na aventura. Já havia feito vários amigos e conhecido gente de várias partes do mundo em outras expedições de menor duração. Nesta, até agora, tudo estava indo bem. Tenho navegado por no máximo uma semana e permaneço alguns dias em terra. Ainda não cheguei a ficar tempo suficiente para me relacionar profundamente com ninguém, embora várias situações em que estive serviriam para escrever um livro. Em geral, minhas companhias estavam sendo as eventuais conversas e chiadeiras do rádio. Esta travessia do Equador está me levando para tocar o meu país após quase dois anos viajando. A ansiedade para voltar está enorme.

Percebi que ser piloto de avião e paraquedista me tornava um navegador mais prudente do que a maioria. O hábito de checar duas vezes o equipamento e assim prevenir a maioria dos acidentes estava se mostrando um ótimo costume. Nada de surpresas desagradáveis. Tenho consciência de que apenas dez por cento dos acontecimentos não estão ao nosso alcance modificar.

Infelizmente o tamanho da tempestade que se aproximava fazia parte dos dez por cento do imponderável. Havia me preparado para uma tempestade comum, mas o que vi pela frente já mostrava que seria algo maior do que isso. O céu passou de um cinzento claro para cinza chumbo, em menos de trinta minutos. Os ventos aumentaram de intensidade e me obrigaram a reduzir a área exposta da vela. Mesmo assim, ainda corria com o vento. Quanto mais rápido passasse por aquilo, melhor.

Aproveitei enquanto podia deixar no piloto automático e entrei na cabine para me preparar para o tempo ruim. Guardei tudo que estava solto, calculei minha última posição estimada e avisei minha situação pelo rádio. O lugar seguro mais próximo ficava há pelo menos setenta e duas horas de navegação. Comi um chocolate e me certifiquei que a garrafa térmica estivesse cheia de café quente. Em pouco tempo anoiteceria e decidi que o melhor a fazer seria recolher todas as velas e ligar o motor.

As ondas surravam o casco de fibra de vidro. Naquela situação, o melhor a fazer é traçar um curso de quarenta e cinco graus contra as vagas. O maior medo era capotar e perder o mastro. Amarrado ao barco pelo cinto de segurança, eu manobrava a roda de leme de forma particular para cada vale e pico de mar que se aproximava. Ao final de cada escorregada, a água passava por cima de todo o casco e me atingia em cheio. A roupa impermeável não resistiu a aquela enxurrada e começou a vazar. Os fios de água gelada desciam pelas costas como uma lâmina torturante. A noite seria longa.

O barômetro marcava 998 milibares, a menor marcação até aquele momento, e permanecia naquela posição há vários minutos. Significava que estava no meio da zona de baixa pressão e que agora começaria a sair dela. Tinha certeza que sairia, o importante era permanecer inteiro. A velocidade que usei para escapar dali mais rápido cobrou um preço alto. Ao manobrar no cavado de uma grande onda, a estrutura toda sentiu os esforços e um cabo de aço do mastro estourou.

Meu coração congelou ao ver aquele pedaço de brandal chicoteando na minha frente. O mastro não havia caído, mas bastava arrebentar outro cabo daquele bordo e seria o fim da viagem. Tecnicamente, com o vento de cinquenta nós, eu estava em uma tempestade tropical severa, na prática era o maior furacão da minha história.

Cada vez que o casco despencava do outro lado da vaga, o hélice saia da água e fazia um barulho assustador. O motor também não aguentaria muito aquele castigo. Teria que decidir entre depender só do vento ou forçar a máquina.

Decidi por capear, que é manter o barco com a proa chegada ao vento e ao mar, para aguentar o mau tempo. Embora esta manobra normalmente reduza o movimento lateral até um nível aceitável, ela provoca um movimento de arfagem bem maior. No caso particular do brandal que arrebentou, ainda era melhor balançar entre a proa e a popa do que provocar a sobrecarga do mastro nos movimentos laterais.

Reduzi a velocidade e lancei a âncora de tempestade. A principal aplicação da âncora flutuante é manter o veleiro com a parte dianteira apontando para onde sopra o vento. A ideia era que o efeito da âncora praticamente parasse a embarcação, até a passagem da pior parte da tormenta.

Horas de angústia se passaram enquanto ondas de até oito metros se atiravam por sobre o convés. Meus olhos ardiam, tanto pelo sal, como pelo olhar fixo no comportamento do barco. Revi mil vezes o pesadelo de perder o mastro ou capotar... Ou ambos.

Eventualmente eu saía do transe, quando um peixe-voador, atirado pela onda, se debatia sobre o convés até que a próxima o levasse dali. A mente e corpo cansados das quase quarenta horas sem dormir, davam sinais de forte estresse. Em alguns momentos delirava agarrado ao timão.

Por um momento me imaginei voando em um pequeno e seguro avião que acabara de desviar de uma grande nuvem Cumulus nimbus, a grande formadora de chuvas e tempestades. Em uma aeronave a 350 quilômetros por hora, isto é muito simples de fazer. Na imaginação então... Muito mais fácil. Durante os delírios, o avião pousava no aeroporto onde Paula me esperava no carro com uma comida quente e cheirosa. A vontade de comer algo doce me fazia sentir o gosto da torta de maçã que adorava. O Apfelstrudel que ela fazia era uma lembrança que me torturava enquanto recebia litros de água salgada no rosto.

Naquele momento já não distinguia bem o que era ilusão do que era a realidade. As ondas continuavam altas, porém mais espaçadas entre si. O veleiro escorregava até ser erguido pela que vinha em seguida. O desconforto e o medo diminuíram, e com isto veio o sono. Dormi na posição diversas vezes, e a cada vez que acordava, o mar parecia menos irritado.

Ao amanhecer tive certeza que escaparia daquela situação. Minha sorte de origem irlandesa havia me livrado de mais essa encrenca que a impetuosidade do lado italiano costumava me colocar. O mastro aguentaria até o próximo porto, já eu não aguentaria sem dormir um pouco. Lembrei que Paula já me havia alertado que não seria o mar que me derrotaria.

Mais confiante, acionei o piloto automático, fui deitar e dormir... Não exatamente nesta ordem.


 

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