Quando entrei na pequena baía, a maré estava correndo forte ainda. Eu me aproximei do píer diagonalmente, esperando a correnteza contrária empurrar a popa e terminar a atracação. Lancei as defensas para fora e quando a proa tocou o estrado flutuante, pulei por sobre a amurada e amarrei o cabo naquele antigo e tradicional cunho de madeira do trapiche. Reparei também nos cabos que estava usando e eles pediam substituição. Mais um item na já enorme lista de compras.
Aquela interrupção da viagem fugiu do cronograma original, mas havia muita manutenção importante a ser feita, e por mais que quisesse evitar, agora não tinha outra escolha. Um brandal havia partido e por pouco não perco o mastro durante a tempestade do dia anterior. Embora bem longe de casa, já estava em meu país novamente. Este era o porto mais próximo e com a infraestrutura que precisava para fazer os reparos e conseguir o restante da verba para completar a viagem.
A popa encostou auxiliada pela maré enquanto colocava tudo que estava solto no convés para dentro da cabine e trancava a porta. A brisa úmida e fria me obrigou a usar o nada discreto agasalho impermeável amarelo fosforescente. Desembarquei e agradeci mentalmente a oportunidade de sentir o chão firme de novo.
Fui caminhando encorujado e com as mãos no bolso em direção à garagem de barcos principal. Andava devagar e cambaleante porque, depois de duas semanas navegando, o chão firme não parecia tão firme assim. O labirinto havia se acomodado ao balanço do barco e agora estranhava a falta do movimento. Sabia que logo teria o maldito e desagradável enjoo; aquela mesma sensação incômoda da qual a maioria das pessoas sofre ao ir para o mar nas primeiras vezes.
Os mastros dos veleiros atracados pareciam pequenas florestas de árvores secas. Uma visão reconfortante mesmo para o mais apaixonado por navegação em curso. Um porto seguro e seus cheiros característicos. Cheiro de terra, de maresia, de saudade e segurança.
Ao contrário do esperado, um iate clube daquele porte estava com poucos barcos na água preparados para sair e ninguém à vista. Talvez por causa do tempo ruim dos últimos dias ou quem sabe por ser uma quinta-feira. De qualquer modo, precisava encontrar um responsável e cuidar da burocracia; o pesadelo de sempre. Ficaria ali pelo menos duas semanas e necessitaria de um apoio logístico.
Fui entrando devagar, respirando fundo para controlar a ânsia que chegava mesmo com estômago vazio. Aliás, comer algo naquele momento ajudaria. Pelo menos, o que entrasse, sairia sem queimar como o fel costuma fazer quanto está só.
Cruzei uma ponte de madeira sustentada por arcos de ferro branco. Os pássaros cantavam e soavam como se os estivesse ouvindo pela primeira vez. Certamente os pés carregados de pitangas, faziam a alegria dos bichos e moradores locais. Naquele instante me veio à lembrança uma geleia desta frutinha que uma amiga sempre fazia quando eu ia até a sua cidade. Na verdade, o desejo não era de pitanga, qualquer coisa doce cairia bem.
O primeiro a me receber foi um cão de pelos longos e emaranhados. Como todo bom vira-lata, este também latia, mas abanava o rabo em cumprimento ao forasteiro. Por isso os cães são especiais mesmo. Alguns mostram como estão contentes em nos encontrar, mesmo sem conhecer. Sentimo-nos bem-vindos e apreciados, emoções sempre importantes no mundo frio no qual vivemos e na solidão das últimas semanas.
Parei e me agachei para retribuir a hospitalidade. Mesmo sujo e fedorento, meu novo amigo merecia um carinho autêntico também. Agradei sua cabeça com vontade, mas seu cheiro só piorava minha ânsia. Imaginei que seria pedir demais ser recebido por um vira-lata cheiroso.
– Estopa!... Estopa!... Venha aqui! – Gritou alguém que se aproximava.
Deduzi que o nome do cão era Estopa. Bom nome para um cachorro de pelos cinzentos e pretos. Nada podia descrever melhor aquele animal do que um emaranhado de fios e trapos de algodão sujo.
Ao ouvir seu nome, o cão correu em direção ao homem com grande entusiasmo. Certamente era quem o alimentava e merecia o tratamento especial.
– Olá, marujo! Bem-vindo ao Iate Clube Oceânides! – Gritou o homem antes de chegar perto o suficiente para um aperto de mão.
Fui à sua direção armado de um sorriso no rosto, lembrando da recepção festiva que recebi do Estopa. Ri de mim mesmo ao me imaginar balançando o rabo como o Estopa fez.
– Olá! Meu nome é Dougan... Giulio Dougan. Sou o capitão do Cutty Sark ali – disse e me apressei para apertar a mão do simpático recepcionista.
– Capitão, chefe de máquinas, moço de convés e todas as outras profissões, pelo jeito – brincou, referindo-se ao fato de eu estar chegando sozinho e aparentar o cansaço de um atarefado navegador solitário.
Apertou minha mão com firmeza e olhou direto em meus olhos. Um homem do mar. A tatuagem no braço direito também não deixava dúvidas: um tridente de Netuno. O sol e o sal costumam envelhecer um semblante e calejar mãos como aquela que estava apertando. Magro, cabelos grisalhos e bastante bronzeado, ele poderia passar facilmente por um senhor com mais de sessenta anos. Minha experiência dizia que tinha algo em torno de cinquenta.
– Sou o João Nélio, mas como todos aqui têm apelido, é melhor me chamar de Badejo. Todos sabem que o encarregado do iate é o João Badejo – disse, rindo do próprio apelido.
Desatei a rir também. Bastou reparar no tamanho da boca e os lábios grossos para saber o motivo. João lembrava mesmo o peixe com este nome. Já comecei a ficar curioso para saber qual seria o apelido que iriam me arranjar.
– Antes de tratarmos da burocracia, eu e o Estopa vamos te arranjar um QRF. – Pela sua cara, você não vê um prato de comida já há algum tempo... Acertei? – Perguntou, já sabendo da resposta.
– Agradeço, João. Faz um bom tempo que não cozinho no barco. Nestes últimos dias, só pude ser capitão, grumete, vigia e capelão. O taifeiro ficou para trás, antes da tempestade. Não aguento mais café e bolacha – disse, aliviado com o convite para fazer uma refeição usando o código QRF.
– Pois então... Vamos até o restaurante do Iate. Lá faremos um remenegues para você.
Ri bastante da expressão usada; coisa típica de marítimos de cais de porto. O linguajar adaptado das coisas próprias da marinharia sempre me fascinou. Remenegues é uma corruptela de Ham – presunto, e and Eggs – ovos, em inglês. O famoso prato, simples de preparar, ficou conhecido no mundo todo, mas o nome foi se deturpando para designar qualquer coisa sólida para comer.
Só a perspectiva de saborear algo diferente me deu um novo ânimo. Estopa ia à frente como quem estivesse ouvindo a conversa e concordando com tudo.
O salão do clube era elegante e aconchegante ao mesmo tempo. Notava-se uma administração criteriosa e eficiente. Há muito tempo eu não atracava em um lugar com aquela infraestrutura.
Os funcionários andavam apressados de um lado para o outro, providenciando talheres e decoração para as mesas de jantar. Havia um palco ao fundo já preparado para receber uma banda ou alguma personalidade.
Estopa parou do lado de fora e deitou-se perto da porta principal. Sabia que o seu jantar estava garantido logo mais, porém sua aparência não combinava com o local. Embora eu não estivesse muito melhor do que o cão, pelo menos o impermeável amarelo disfarçava bem.
João fez um sinal e quem parecia ser o gerente do restaurante nos apontou uma mesa na varanda ao ar livre, separada das mesas internas. Tudo parecia estar sendo preparado para um evento.
– Vai ter alguma festa por aqui? – Perguntei.
– Vai sim. Hoje é a posse do novo presidente do Iate Clube, e vai ser uma grande festa. O novo patrão é um rico advogado da cidade. O figurão gastou uma fortuna para ser presidente do Clube. Parece que vai esbanjar na comemoração.
– Tomara que ele não estrague nada, pois melhorar vai ser difícil – comentei, elogiando a perfeição das instalações.
– Vai ser difícil evitar... O cara é um sujeitinho arrogante e de nariz empinado. Comprou o paletó com divisa de comandante de transatlântico e os votos dos sócios. Agora diz que vai mudar tudo por aqui.
– Uma pena. Já vi isto acontecer antes e foi um desastre. O cara vai querer mexer no que está bom, só para dizer que fez algo importante. É engenheiro de obra pronta. Conheço o tipo e já não gosto dele. Mas quem é o responsável por esta esplêndida organização? – Perguntei.
– O antigo presidente era um oficial da marinha de guerra antes de montar e dirigir o clube. Além de disciplinado, conhece a vida do mar. Sabe como somos uma gente diferente e com hábitos particulares. Sabe também o quanto a qualidade do clube dependia em grande parte dos sócios que usavam a marina só de vez em quando. Ele cuidava tanto das garagens, da guarda e manutenção dos barcos, como da sede social. O Luciano Córdova, ou Almirante, que é como chamamos ele, tem uma visão administrativa excelente.
– O que está fazendo hoje em dia? – Perguntei curioso sobre o paradeiro do ex-presidente.
– Ele foi recontratado como gerente geral do Grand Hotel di Capri, o maior hotel das redondezas. Já mudou uma porção de coisas por lá e está atraindo turistas do mundo todo. O hotel fica em frente a uma praia magnífica. Era um desperdício não aproveitar bem o lugar. Mas já estou adivinhando que vai fazer falta no comando daqui.
– Agora fiquei curioso. Gostaria de conhecer o seu Almirante.
– Vai ser difícil isto acontecer por aqui. Ele e o novo presidente se odeiam. – E você? Qual a sua atividade quando não está no meio de uma tempestade? – Perguntou o Badejo.
– Bem... Tenho uma empresa própria e também sou piloto de avião... Entre outras coisas – Respondi um pouco sem jeito.
– Então é um Araújo! – Respondeu surpreso.
– Como assim... Araújo? Não entendi.
– Ora... Se você é do mar é marujo, se é do ar é araújo – disse e gargalhou da piada mais antiga do mundo sobre os aeronautas.
***
O Chef do restaurante do iate nos recebeu com muita simpatia e sua aparência fazia justiça ao nome do estabelecimento: “Capitão Mor”. Maneco era um velho marinheiro com barbas brancas ao estilo Hemingway. O boné de capitão e o cachimbo pendurado completavam a figura de um autêntico lobo do mar. Antes de qualquer apresentação mais formal, e com forte sotaque espanhol, ele passou a fazer propaganda da sua Paella Marinera, cuja receita permanece em sua família há gerações. Embora tentadora, gravei a sugestão na memória para pedi-la em outra ocasião, o momento pedia algo menos elaborado. Maneco nos deixou à vontade e colocou seu garçom à nossa disposição.
As duas porções de comida que João havia pedido, apenas com um sinal, estavam a caminho. O garçom entendeu o “V” de vitória corretamente. Trouxe duas travessas de peixe, acompanhadas de uma volumosa porção de batatas fritas e salada mista com palmitos. Errou apenas nas duas cervejas. É difícil eu tomar álcool e naquelas circunstâncias certamente não me faria bem.
– Desculpe, não estou bebendo – disse, segurando uma das garrafas para devolver.
– Traga uma água mineral com gás – João disse, tirando a cerveja da minha mão e separando para si sem nem mesmo olhar para o garçom, que saiu rindo da cena.
A comida chegou e não pude evitar atacá-la com voracidade. A fome era bem maior do que eu mesmo imaginava. Quando senti o cheiro das batatas fritas, entrei em um frenesi variando entre a fome e a gula. Até achei que repetiria aquela enorme porção. Enquanto bebia sua cerveja, João beliscava pacientemente do seu prato e especulava sobre mim.
– Então, Araújo... Parece que vai ter um duro trabalho pela frente. O veleiro está bem arruinado, né?!
– Bastante arruinado, João... Foi o pior tempo que já peguei na minha vida. Estas quarenta horas seguidas sendo surrado por Netuno diminuíram minha vontade de navegar. Há muito tempo eu não dava tanto valor à terra firme.
– Alguns não tiveram sua sorte. Um barco pesqueiro afundou e até agora estamos sem sinal da tripulação. Vários outros tiveram que ser resgatados pela guarda costeira. Foi a pior tempestade dos últimos trinta anos.
– Além de manutenção, preciso fazer compras para o próximo, e último trecho da viagem. Muita comida molhou e perdi alguns equipamentos essenciais. As bombas de porão não davam conta de retirar a água que entrava por qualquer fresta. Mais algumas horas naquele tempo e o Cutty estaria no fundo... Dei sorte mesmo – comentei displicentemente, mas lembrando dos valiosos ensinamentos do mestre Paco, e da certeza do quanto tinha me ajudado de alguma forma, onde estivesse.
Pensando bem, minha simpatia pelo João Badejo tinha mais uma explicação: ele me lembrava o mestre. Um marinheiro nativo com a sabedoria e bom humor só encontrado em pessoas realmente especiais. Suas comparações entre a vida ordinária e a vida no mar eram sempre divertidas.
Reparando o quanto eu estava comendo, fez um alerta da forma que só um marinheiro faria:
– Cuidado, Capitão... Você está comendo muito rápido. Logo o “porão” vai estar tão cheio que vai transbordar pelas “gaiutas”.
Engasguei de tanto rir. O velho estava comparando meu estômago com o porão do barco e minhas narinas com as janelinhas de uma embarcação: as gaiutas.
Logo imaginei que poderíamos nos tornar bons amigos. Só não imaginávamos as surpresas que o destino, ou os deuses, nos preparavam.
Uma viagem de barco é interessante e carregada de emoções, porém o conforto não vai junto. A água é geralmente fria, a comida é racionada e o sono é picotado. Quando o vento está bom, abrimos as velas e o barco aderna, fazendo o nosso mundo ficar desconfortavelmente inclinado por horas. Depois de comer bem e tomar um bom banho, a vida ficou mais colorida. Sei que abusei, mas não pude abandonar aquela água quente e forte me massageando. Fiquei pelo menos uma hora no chuveiro. Parece incrível que depo
Em vez de parar no meu lugar, passei reto e fui sentar na varanda, na mesma mesa que havia estado naquela tarde. A vista era ainda mais linda à noite. O farol de entrada do canal decorava o amontoado de pedras que se estendiam formando uma baixa muralha abrigando a marina.O cheiro do mar me trazia a melancolia de outros tempos passados na beira do cais. Longas conversas sobre coisas da vida e da morte. Lições que haviam me formado em uma universidade na qual poucos tiveram a chance de conhecer. Estudos que exigiram um pouco das inteligências que todos têm,
Dormi muito. O sol já estava alto quando acordei. Era o primeiro sono completo que tinha desde a última parada, há duas semanas. Permaneci na cama pensando na noite anterior. Estava inconformado com o fato da mulher mais fascinante que eu tinha conhecido nos últimos tempos, era filha de um idiota completo. As regras impostas por ele para este iate clube não existiam em nenhum lugar do mundo. É totalmente errado obrigá-lo a abandonar a embarcação por motivos tão estúpidos. O barco está mais seguro com a tripulação dentro e não em terra, longe da vista. Salve! Capitão artista. Pronto para se mudar? – Marine perguntou como se fosse a coisa mais comum do mundo abrigar um estranho em sua casa.Coloquei minha pequena mochila no banco de trás, sentei e já coloquei o cinto.– Muito bem! – Exclamou. – Difícil ver alguém por aqui com esse hábito. A despeito da preguiça, levantei assim que abri os olhos. Eu era hóspede da minha amiga e não convinha levantar mais tarde do que ela. Os pesadelos não me deixaram aproveitar a cama macia e estável. Embora tivesse tido uma noite mal dormida, consegui descansar bastante.Levantei decidido a não sofrer tanto quanto o velho pescador de Hemingway, a começar pela aparência. Nem me toquei que poderia tomar outro 9
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Marine me deixou em frente ao Clube e saiu apressada. Olhei o carro se afastando e senti um aperto no coração. Esta paixão súbita não combinava com minha racionalidade e muito menos com a minha falta de prática em relações estáveis. Tentava de várias formas dizer para eu mesmo ser apenas uma atração física, e logo que consumasse o fato, a paixão ganharia a dimensão correta; apenas um desejo passageiro. Enquanto isto não acontecia, suspirava.A prioridade agora era conseguir um tr
O restante da tarde ocorreu como já era esperado. Levar combustível para os esquecidos, orientar os atrapalhados com a carta náutica e rebocar os avariados. Antes do final do expediente, o empresário interessado em minhas habilidades marítimas chegou para me entrevistar. Eu dei uma geral rápida em mim mesmo e fui até o restaurante, animado com o encontro. Voltei a pé para o apartamento e no caminho resolvi agradecer a hospedagem preparando um jantar. Ela não é do tipo de comer duas folhas de alface para fazer média. Era outra qualidade dela. Dava gosto vê-la comer. Educadamente, porém, determinada como um estivador. Minha tarefa não seria fácil e teria que usar da criatividade para impressionar.Desci e fui ao mercado próximo que não tinha nada de sofisticad13