5

Quando entrei na pequena baía, a maré estava correndo forte ainda. Eu me aproximei do píer diagonalmente, esperando a correnteza contrária empurrar a popa e terminar a atracação. Lancei as defensas para fora e quando a proa tocou o estrado flutuante, pulei por sobre a amurada e amarrei o cabo naquele antigo e tradicional cunho de madeira do trapiche. Reparei também nos cabos que estava usando e eles pediam substituição. Mais um item na já enorme lista de compras.

Aquela interrupção da viagem fugiu do cronograma original, mas havia muita manutenção importante a ser feita, e por mais que quisesse evitar, agora não tinha outra escolha. Um brandal havia partido e por pouco não perco o mastro durante a tempestade do dia anterior. Embora bem longe de casa, já estava em meu país novamente. Este era o porto mais próximo e com a infraestrutura que precisava para fazer os reparos e conseguir o restante da verba para completar a viagem.

A popa encostou auxiliada pela maré enquanto colocava tudo que estava solto no convés para dentro da cabine e trancava a porta. A brisa úmida e fria me obrigou a usar o nada discreto agasalho impermeável amarelo fosforescente. Desembarquei e agradeci mentalmente a oportunidade de sentir o chão firme de novo.

Fui caminhando encorujado e com as mãos no bolso em direção à garagem de barcos principal. Andava devagar e cambaleante porque, depois de duas semanas navegando, o chão firme não parecia tão firme assim. O labirinto havia se acomodado ao balanço do barco e agora estranhava a falta do movimento. Sabia que logo teria o maldito e desagradável enjoo; aquela mesma sensação incômoda da qual a maioria das pessoas sofre ao ir para o mar nas primeiras vezes.

Os mastros dos veleiros atracados pareciam pequenas florestas de árvores secas. Uma visão reconfortante mesmo para o mais apaixonado por navegação em curso. Um porto seguro e seus cheiros característicos. Cheiro de terra, de maresia, de saudade e segurança.

Ao contrário do esperado, um iate clube daquele porte estava com poucos barcos na água preparados para sair e ninguém à vista. Talvez por causa do tempo ruim dos últimos dias ou quem sabe por ser uma quinta-feira. De qualquer modo, precisava encontrar um responsável e cuidar da burocracia; o pesadelo de sempre. Ficaria ali pelo menos duas semanas e necessitaria de um apoio logístico.

Fui entrando devagar, respirando fundo para controlar a ânsia que chegava mesmo com estômago vazio. Aliás, comer algo naquele momento ajudaria. Pelo menos, o que entrasse, sairia sem queimar como o fel costuma fazer quanto está só.

Cruzei uma ponte de madeira sustentada por arcos de ferro branco. Os pássaros cantavam e soavam como se os estivesse ouvindo pela primeira vez. Certamente os pés carregados de pitangas, faziam a alegria dos bichos e moradores locais. Naquele instante me veio à lembrança uma geleia desta frutinha que uma amiga sempre fazia quando eu ia até a sua cidade. Na verdade, o desejo não era de pitanga, qualquer coisa doce cairia bem.

O primeiro a me receber foi um cão de pelos longos e emaranhados. Como todo bom vira-lata, este também latia, mas abanava o rabo em cumprimento ao forasteiro. Por isso os cães são especiais mesmo. Alguns mostram como estão contentes em nos encontrar, mesmo sem conhecer. Sentimo-nos bem-vindos e apreciados, emoções sempre importantes no mundo frio no qual vivemos e na solidão das últimas semanas.

Parei e me agachei para retribuir a hospitalidade. Mesmo sujo e fedorento, meu novo amigo merecia um carinho autêntico também. Agradei sua cabeça com vontade, mas seu cheiro só piorava minha ânsia. Imaginei que seria pedir demais ser recebido por um vira-lata cheiroso.

– Estopa!... Estopa!... Venha aqui! – Gritou alguém que se aproximava.

Deduzi que o nome do cão era Estopa. Bom nome para um cachorro de pelos cinzentos e pretos. Nada podia descrever melhor aquele animal do que um emaranhado de fios e trapos de algodão sujo.

Ao ouvir seu nome, o cão correu em direção ao homem com grande entusiasmo. Certamente era quem o alimentava e merecia o tratamento especial.

– Olá, marujo! Bem-vindo ao Iate Clube Oceânides! – Gritou o homem antes de chegar perto o suficiente para um aperto de mão.

Fui à sua direção armado de um sorriso no rosto, lembrando da recepção festiva que recebi do Estopa. Ri de mim mesmo ao me imaginar balançando o rabo como o Estopa fez.

– Olá! Meu nome é Dougan... Giulio Dougan. Sou o capitão do Cutty Sark ali – disse e me apressei para apertar a mão do simpático recepcionista.

– Capitão, chefe de máquinas, moço de convés e todas as outras profissões, pelo jeito – brincou, referindo-se ao fato de eu estar chegando sozinho e aparentar o cansaço de um atarefado navegador solitário.

Apertou minha mão com firmeza e olhou direto em meus olhos. Um homem do mar. A tatuagem no braço direito também não deixava dúvidas: um tridente de Netuno. O sol e o sal costumam envelhecer um semblante e calejar mãos como aquela que estava apertando. Magro, cabelos grisalhos e bastante bronzeado, ele poderia passar facilmente por um senhor com mais de sessenta anos. Minha experiência dizia que tinha algo em torno de cinquenta.

– Sou o João Nélio, mas como todos aqui têm apelido, é melhor me chamar de Badejo. Todos sabem que o encarregado do iate é o João Badejo – disse, rindo do próprio apelido.

Desatei a rir também. Bastou reparar no tamanho da boca e os lábios grossos para saber o motivo. João lembrava mesmo o peixe com este nome. Já comecei a ficar curioso para saber qual seria o apelido que iriam me arranjar.

– Antes de tratarmos da burocracia, eu e o Estopa vamos te arranjar um QRF. – Pela sua cara, você não vê um prato de comida já há algum tempo... Acertei? – Perguntou, já sabendo da resposta.

– Agradeço, João. Faz um bom tempo que não cozinho no barco. Nestes últimos dias, só pude ser capitão, grumete, vigia e capelão. O taifeiro ficou para trás, antes da tempestade. Não aguento mais café e bolacha – disse, aliviado com o convite para fazer uma refeição usando o código QRF.

– Pois então... Vamos até o restaurante do Iate. Lá faremos um remenegues para você.

Ri bastante da expressão usada; coisa típica de marítimos de cais de porto. O linguajar adaptado das coisas próprias da marinharia sempre me fascinou. Remenegues é uma corruptela de Ham – presunto, e and Eggs – ovos, em inglês. O famoso prato, simples de preparar, ficou conhecido no mundo todo, mas o nome foi se deturpando para designar qualquer coisa sólida para comer.

Só a perspectiva de saborear algo diferente me deu um novo ânimo. Estopa ia à frente como quem estivesse ouvindo a conversa e concordando com tudo.

O salão do clube era elegante e aconchegante ao mesmo tempo. Notava-se uma administração criteriosa e eficiente. Há muito tempo eu não atracava em um lugar com aquela infraestrutura.

Os funcionários andavam apressados de um lado para o outro, providenciando talheres e decoração para as mesas de jantar. Havia um palco ao fundo já preparado para receber uma banda ou alguma personalidade.

Estopa parou do lado de fora e deitou-se perto da porta principal. Sabia que o seu jantar estava garantido logo mais, porém sua aparência não combinava com o local. Embora eu não estivesse muito melhor do que o cão, pelo menos o impermeável amarelo disfarçava bem.

João fez um sinal e quem parecia ser o gerente do restaurante nos apontou uma mesa na varanda ao ar livre, separada das mesas internas. Tudo parecia estar sendo preparado para um evento.

– Vai ter alguma festa por aqui? – Perguntei.

– Vai sim. Hoje é a posse do novo presidente do Iate Clube, e vai ser uma grande festa. O novo patrão é um rico advogado da cidade. O figurão gastou uma fortuna para ser presidente do Clube. Parece que vai esbanjar na comemoração.

– Tomara que ele não estrague nada, pois melhorar vai ser difícil – comentei, elogiando a perfeição das instalações.

– Vai ser difícil evitar... O cara é um sujeitinho arrogante e de nariz empinado. Comprou o paletó com divisa de comandante de transatlântico e os votos dos sócios. Agora diz que vai mudar tudo por aqui.

– Uma pena. Já vi isto acontecer antes e foi um desastre. O cara vai querer mexer no que está bom, só para dizer que fez algo importante. É engenheiro de obra pronta. Conheço o tipo e já não gosto dele. Mas quem é o responsável por esta esplêndida organização? – Perguntei.

– O antigo presidente era um oficial da marinha de guerra antes de montar e dirigir o clube. Além de disciplinado, conhece a vida do mar. Sabe como somos uma gente diferente e com hábitos particulares. Sabe também o quanto a qualidade do clube dependia em grande parte dos sócios que usavam a marina só de vez em quando. Ele cuidava tanto das garagens, da guarda e manutenção dos barcos, como da sede social. O Luciano Córdova, ou Almirante, que é como chamamos ele, tem uma visão administrativa excelente.

– O que está fazendo hoje em dia? – Perguntei curioso sobre o paradeiro do ex-presidente.

– Ele foi recontratado como gerente geral do Grand Hotel di Capri, o maior hotel das redondezas. Já mudou uma porção de coisas por lá e está atraindo turistas do mundo todo. O hotel fica em frente a uma praia magnífica. Era um desperdício não aproveitar bem o lugar. Mas já estou adivinhando que vai fazer falta no comando daqui.

– Agora fiquei curioso. Gostaria de conhecer o seu Almirante.

– Vai ser difícil isto acontecer por aqui. Ele e o novo presidente se odeiam. – E você? Qual a sua atividade quando não está no meio de uma tempestade? – Perguntou o Badejo.

– Bem... Tenho uma empresa própria e também sou piloto de avião... Entre outras coisas – Respondi um pouco sem jeito.

– Então é um Araújo! – Respondeu surpreso.

– Como assim... Araújo? Não entendi.

– Ora... Se você é do mar é marujo, se é do ar é araújo – disse e gargalhou da piada mais antiga do mundo sobre os aeronautas.

***

O Chef do restaurante do iate nos recebeu com muita simpatia e sua aparência fazia justiça ao nome do estabelecimento: “Capitão Mor”.  Maneco era um velho marinheiro com barbas brancas ao estilo Hemingway. O boné de capitão e o cachimbo pendurado completavam a figura de um autêntico lobo do mar. Antes de qualquer apresentação mais formal, e com forte sotaque espanhol, ele passou a fazer propaganda da sua Paella Marinera, cuja receita permanece em sua família há gerações.  Embora tentadora, gravei a sugestão na memória para pedi-la em outra ocasião, o momento pedia algo menos elaborado. Maneco nos deixou à vontade e colocou seu garçom à nossa disposição.

As duas porções de comida que João havia pedido, apenas com um sinal, estavam a caminho. O garçom entendeu o “V” de vitória corretamente. Trouxe duas travessas de peixe, acompanhadas de uma volumosa porção de batatas fritas e salada mista com palmitos. Errou apenas nas duas cervejas. É difícil eu tomar álcool e naquelas circunstâncias certamente não me faria bem.

– Desculpe, não estou bebendo – disse, segurando uma das garrafas para devolver.

– Traga uma água mineral com gás – João disse, tirando a cerveja da minha mão e separando para si sem nem mesmo olhar para o garçom, que saiu rindo da cena.

A comida chegou e não pude evitar atacá-la com voracidade. A fome era bem maior do que eu mesmo imaginava. Quando senti o cheiro das batatas fritas, entrei em um frenesi variando entre a fome e a gula. Até achei que repetiria aquela enorme porção. Enquanto bebia sua cerveja, João beliscava pacientemente do seu prato e especulava sobre mim.

– Então, Araújo... Parece que vai ter um duro trabalho pela frente. O veleiro está bem arruinado, né?!

– Bastante arruinado, João... Foi o pior tempo que já peguei na minha vida. Estas quarenta horas seguidas sendo surrado por Netuno diminuíram minha vontade de navegar. Há muito tempo eu não dava tanto valor à terra firme.

– Alguns não tiveram sua sorte. Um barco pesqueiro afundou e até agora estamos sem sinal da tripulação. Vários outros tiveram que ser resgatados pela guarda costeira. Foi a pior tempestade dos últimos trinta anos.

– Além de manutenção, preciso fazer compras para o próximo, e último trecho da viagem. Muita comida molhou e perdi alguns equipamentos essenciais. As bombas de porão não davam conta de retirar a água que entrava por qualquer fresta. Mais algumas horas naquele tempo e o Cutty estaria no fundo... Dei sorte mesmo – comentei displicentemente, mas lembrando dos valiosos ensinamentos do mestre Paco, e da certeza do quanto tinha me ajudado de alguma forma, onde estivesse.

Pensando bem, minha simpatia pelo João Badejo tinha mais uma explicação: ele me lembrava o mestre. Um marinheiro nativo com a sabedoria e bom humor só encontrado em pessoas realmente especiais. Suas comparações entre a vida ordinária e a vida no mar eram sempre divertidas.

Reparando o quanto eu estava comendo, fez um alerta da forma que só um marinheiro faria:

– Cuidado, Capitão... Você está comendo muito rápido. Logo o “porão” vai estar tão cheio que vai transbordar pelas “gaiutas”.

Engasguei de tanto rir. O velho estava comparando meu estômago com o porão do barco e minhas narinas com as janelinhas de uma embarcação: as gaiutas.

Logo imaginei que poderíamos nos tornar bons amigos. Só não imaginávamos as surpresas que o destino, ou os deuses, nos preparavam.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo