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2 - A Visita de um Parente Distante

Katherine

No final do dia, encontro-me parada nos limites da floresta, sentada na beira do túmulo de algum estranho qualquer, junto com Alicia  Ferri, minha melhor amiga desde que eu cheguei na cidade.

      - E o que você disse? - Ali está empoleirada na lápide do tumulo ao meu lado. Não faço ideia de quem está enterrado aqui. Será que a pessoa ficaria irritada por ter duas estranhas sentadas em seu lugar de descanso?

      - Ela saiu meio que correndo. - Ela me oferece o baseado que está fumando, mas, como tenho planos para a noite, preciso manter minha mente clara, então recuso com um aceno de cabeça e me concentro em uma flor murcha no tumulo ao lado.

      - Acho que você precisa ser honesta com ela. Diga a Boonie que você a ama, mas apenas como amiga. - Alicia dá mais uma tragada e depois sorri. - Aproveita para deixar claro que você prefere homens. - Merda, eu não deveria ter contado para ela sobre como me senti atraída pelo menino novo. Dou uma cotovelada em Ali, que se afasta rindo e esfregando as costelas.

      Assim como eu, Ali é pequena, no máximo 1,65 de altura, mas nossas semelhanças acabam ai. Os olhos de Alicia são pretos como carvão e seus cabelos são longos, lisos e dourados, seu queixo é fino e, se não fosse pela fina cicatriz em seu rosto, sua pele seria perfeita e, ao passo que eu possuo uma rotina repleta de exercícios, ela consegue fugir da aula de educação física mais rápido do que um gato correndo da água fria.

      Pego o baseado das mãos de Alicia e dou uma tragada. Parte de mim está irritada com ela, mas a outra parte sabe que ela tem razão. Boonie me ajudou muito após o falecimento de minha avó, assim como Alicia, mas, dois anos atrás, quando a avó de Boonie faleceu, ela começou a duvidar sobre tudo, principalmente a respeito da sua sexualidade, então tentei ajudá-la.

      No início, eu acompanhava ela a festas, para dançar e ficar com alguns adolescentes, as vezes meninos, as vezes meninas. Até que um dia, depois de uma festa regada a muita margarita, Boonie simplesmente me beijo. Desde então, nossa amizade continua a mesma e nós procuramos nunca falar sobre aquela noite, até porque estávamos as duas bêbadas. No entanto, não sei se sinto por Boonie a mesma coisa que ela diz sentir por mim, na verdade sinto por ela a mesma coisa que sinto por Alicia. Eu as amo como minhas amigas.

      Suspiro e olho por cima de meu ombro, sentindo a presença de alguém. Atravessando o cemitério, a passos largos, vem o restante de meu grupo de amigas. Fernanda, alta, linda e com cabelos perfeitos, vem na frente, praticamente saltitando entre as lápides, com Melanie e Isadora, conhecidas como gêmeas macabras por terem os mesmos cabelos pretos e curtos e usarem uma quantia excessiva de maquiagem preta no rosto, a seguindo de perto.

      - Você veio. - Diz Fernanda, atirando seus braços ao meu redor enquanto as outras duas avançam para me abraçar também. - Viu? Eu falei para vocês que ela ia aparecer. - Fê joga os cabelos cumpridos e cor-de-rosa por sobre os ombros e me puxa para o meio da floresta que cerca o cemitério.

      - Não sei porquê eles fazem essas coisas no meio da floresta. - Diz Alicia, olhando por cima do ombro, em direção às luzes do cemitério, enquanto entramos no breu da floresta.

      - Porque Alicia, sua medrosa, no meio do nada, no escuro, nós, adolescentes, podemos nos soltar e beijar quantas bocas quisermos. Anda logo, sua boba, já dá até para ouvir a música daqui. - Melanie coloca em suas palavras uma dose extra de sarcasmo e veneno, praticamente empurrando Alicia pelo meio das árvores.

      Reviro os olhos e pego a mão de Alicia, tentando lhe transmitir força através do toque. Ali tem muito medo de escuro, ela sempre deixou isso claro, e, embora ela nunca tenha nos falado o motivo, todas imaginamos que tenha algo a ver com a cicatriz que atravessa sua bochecha, o que faz com que o comentário de Melanie me irrite um pouco.

      Caminhamos por cerca de quinze minutos até que finalmente chegamos a clareira onde são realizadas as festas na fogueira. No centro dela, há uma fogueira de cerca de três metros de altura, onde um fogo vermelho e laranja brilha, convidativo, e, no canto mais escuro e distante, há vário isopores onde podemos pegar bebidas.

      - Até mais meninas. - Fernando avista seu namorado, ou casinho do momento, como preferimos chamar, e se afasta correndo na sua direção.

      - Vou nessa também. - Diz Melanie, indo em direção a um grupo de emos que está fumando no canto oposto aos isopores. Apesar de Isadora seguir todos os passos de Melanie, tentando ser aceita em tal grupo, ela permanece comigo e Ali.

      - Ai nossa, elas prometeram que ficaríamos juntas. - Alicia chuta uma pedra no chão e cruza os braços em frente ao corpo, aborrecida. Abro a boca para dizer que eu ficarei com ela, mas sou interrompida por Isadora, que agarra nossos braços com força.

      - Ele está vindo na nossa direção. - Ela arqueja como se não conseguisse respirar direito, apontando para o novato que realmente parece estar caminhando até nós.

      A luz da fogueira, seus cabelos pretos adquirem um leve tom avermelhado e seus olhos refletem o brilho laranja das chamas. O aluno novo olha para mim e sorri, ainda caminhando em nossa direção.

      - Que bom que você veio. - Boonie surge do nada, me abraçando com força e me arrastando para longe das nossas amigas e para longe do menino estranho. - Vem comigo. - Ela em puxa em direção a floresta.

      - Ei, princesa, já cumprimentou todos os seus amigos? - Boonie ri alto em meio as árvores, cheia de sarcasmo, e continua andando. Sorrio, pegando sua mão e caminhando cada vez mais para dentro da floresta com ela.

      Andamos de mãos dadas até que a música passa a ser apenas um som ambiente e estejamos completamente sozinhas no escuro. De repente, Boonie para de andar e se vira na minha direção. Seu olhar, antes bondoso, está cheio de desejo. Ela olha para os meus lábios e, sem parar para pensar, me beija.

      - Boonie. - Sussurro seu nome entre os beijos, ofegante.

      - Katherine. - Ela sussurra meu nome de volta, como um pedido, e me beija novamente. O beijo de Boonie, doce e intenso, parece consumir tudo que há ao nosso redor. Esqueço onde estou, que é tarde da noite, que a lua cheia está alta no céu e esqueço, principalmente, que sou Freya, a princesa de um clã. E é por isso que amo estar com ela, mesmo não amando ela.

      - O que foi? - Pergunto, enquanto Boonie sorri, passando as mãos pelos cabelos loiros e pegando uma lanterna no bolso de seu casaco. Ela ascende a lanterna, que tem um brilho bem impressionante comparado com seu tamanho, e a coloca no chão.

      - Eu quero conversar. Não ficamos sozinhas assim desde o seu aniversário mês passado. - Boonie pega uma caixa de jóias de veludo preto e me entrega. - Quero te dar isso, na verdade. - Ela abre a caixa e meu queixo cai.

      Dentro da caixa, depositado sobre um veludo vermelho, há um anel simples, como uma aliança, mas com um diamante lapidado no formato de um coração no topo.

      - Não sou eu quem deveria te dar um presente? - Ergo as sobrancelhas, procurando o presente que comprei para ela em meu bolso.

      - Esse anel era da minha avó. Ela me deu antes de morrer e disse… - Boonie respira fundo, parecendo levemente envergonhada enquanto coloca o anel em meu dedo anelar. - Ela disse que era para eu dá-lo a moça que prendesse meu coração, aquela com quem eu planejasse passas o resto da minha vida. - Ela beija o anel em meu dedo. - Acho que ela já sabia que eu sou lésbica. - Boonie sorri para mim.

      Sorrio de volta e lhe entrego meu presente. É um colar de ouro simples com um coração. Dentro do coração, no entanto, Boonie encontra a foto de sua avó, que faleceu dois anos atrás. A luz da lanterna, vejo lágrimas se formando nos cantos dos olhos de Boonie.

      - Ah, Kat. - Ela me abraça com força e a ouço chorando baixinho em meu ombro. Acaricio gentilmente suas costas, tentando confortá-la com o gesto, e isso parece ajudar. - Eu falei sério hoje pela manhã. - Ela se afasta, morde o lábio e coloca uma mecha de seu cabelo atrás da orelha. - Eu te amo, Katherine. Eu te amo mais do que tudo. - Não consigo responder, então, para mudar de assunto e também para amenizar o fato de eu não dizer as mesmas palavras, dou um beijo rápido em seus lábios.

      - Me deixe colocar isso. - Pego o colar de suas mãos e o prendo em seu pescoço. - Obrigada por tudo Boonie, obrigada por ser quem você é. - Ela sorri, entendendo, mesmo eu não tendo dito as palavras, que eu realmente gosto dela, mas não da mesma forma.

      - Eu senti tanto falta de estar assim com você. - Diz ela, enquanto se aproxima e beija meu pescoço, me prende contra uma árvore.

      - Eu… - Paro no meio da frase e olho para a esquerda, assustada. - Boonie, você ouviu isso? - Ela nega com a cabeça e beija meus lábios. Tento me perder em seus beijos, mas então ouço novamente. É um rosnado, como o de um animal selvagem.

      - Merda. - Boonie pragueja quando a mini lanterna no chão se apaga.

      Vasculho as árvores em busca da origem do som. Está muito escuro,a única luz, que agora vem da lua, é suficiente apenas para que eu consiga distinguir os contornos das árvores ao nosso redor. E então eu ouço novamente, dessa vez bem mais perto. Olho para a esquerda mais atentamente e então eu vejo. No início parece um lobo, mas ele é muito, muito mais do que um lobo comum.

      Empurro Boonie para trás com todas as minhas forças quando o lobisomem avança e salta sobre nós, me prendendo contra o chão e cravando suas garras em meus braços. Grito de dor e jogo-o longe com minha magia. O lobo bate nas árvores, mas imediatamente se põe de pé novamente, rosnando e se preparando para atacar outra vez.

      - Boonie, corre. - Mas, ao invés de correr para longe, ela corre em minha direção.

      Quando Boonie me alcança, crio um círculo de proteção ao nosso redor, grata por minha tia não ter pegado leve nos treinos. Encaro o lobo, que está circulando o campo de força, como se soubesse que eu não tenho a capacidade de mantê-lo de pé por muito tempo... E ele está certo. Normalmente eu não seria capaz de manter o escudo por mais de cinco minutos. Esse fato, somado com o fato de que o sangue não para de escorrer de meus ferimentos… Na melhor das hipóteses, conseguirei por uns dois.

      - Boonie, me escuta. - Afasto meus braços de Boonie, que tenta, desesperadamente, estancar o sangramento. Seguro seu rosto em minhas mãos e olho em seus olhos. - Você precisa correr. Vou segurar o lobisomem por um tempo, mas preciso que você corra. Preciso que você fale para a minha tia o que aconteceu. - Boonie olha em direção ao lobo e nega com a cabeça.

      - Não, Katherine. Você sabe que não é forte o suficiente para isso. Venha comigo. Venha ou ficarei com você, porque eu te amo e o amor é assim. - Abro a boca para negar, dizer que ela tem que correr, mas então sinto o círculo de força caindo. Olho para o lobo e noto, com um sobressalto, ele erguer os lábios por cima das presas, quase como um sorriso, enquanto se prepara para atacar.

      No último instante, Boonie coloca seu corpo entre eu e o lobo, tentando me proteger. O impacto do corpo do lobisomem contra os nossos faz com que eu caia para trás e bata a cabeça com força em uma pedra. Sinto o cheiro de sangue e minha visão fica nublada. Desesperada, tento me levantar para afastar o lobo dela, mas não consigo me manter de pé e caio novamente.

      Olho em direção a Boonie e congelo. O lobo está sobre ela e, mesmo na escuridão, iluminada apenas pela luz da lua e com a visão embaçada, vejo quando ele crava as garras no peito dela, fazendo o sangue se espalhar pelo chão da floresta e deixar o ar carregado do cheiro metálico. Vejo, desesperada, quando aquele animal morde seu pescoço, como se fosse…

      A raiva toma conta de meus sentidos. Olho em direção ao lobo e desejo, mais do que tudo, que ele sofra. Concentro-me nas lições de minha tia, em uma mais especificamente, que até agora não pude treinar. Imagino o sangue do lobo esquentando em suas veias e correndo cada vez mais rápido.

      No início, nada acontece. Estou esgotada e sinto dores mais intensas do que jamais senti, mas a raiva que sinto por aquele lobo faz com eu me concentre ainda mais.

      Depois de alguns instantes, o lobisomem da um passo para trás, saindo de cima do corpo de Boonie e olhando em minha direção, sou sua próxima vítima, sei disso pelo brilho em seus olhos.

      Respiro fundo e imagino tudo novamente. Seu sangue esquentando e correndo rápido por suas veias, seu coração acelerando, seus pulmões falhando.

      Quando estou prestes a desistir, mal conseguindo manter meus olhos abertos ante a névoa de exaustão que paira sobre mim, o lobo da um passo para trás. Ele se encolhe, como se sentisse uma forte dor. Um uivo de desespero sai pelo focinho do animal, enquanto ele estremece e se contorce no chão, em agonia.

      Os sons que ele emite e o cheiro de sangue permeiam o ar, enquanto, aos poucos, vou perdendo a consciência. A última coisa que vejo antes de deixar que a escuridão me envolva é a lua, branca e redonda, brilhando sobre mim, quase como uma promessa.

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