Sem igreja, sem polícia, sem chefes, sem impostos e sem governantes.
Aproveitando dos princípios que os uniam ideologicamente, estavam agora fora da cidade, isolados no meio da Mata Atlântica desde o início da pandemia. A descrença na humanização da sociedade era a maior motivação para o isolamento.
Zími e Mila Cox encaravam cada um a seu modo a comodidade do rancho sem nome, onde o ócio que muitas vezes é feito do isolamento se transformava em músicas gravadas toscamente em fitas k7 para depois serem digitalizadas e então disponibilizadas.Apesar de
lançarem essas gravações em mídias físicas nos poucos shows que faziam juntos sob o nome de Crop Circles e também as disponibilizarem na internet com certa regularidade, tinham agora tempo livre e não sofriam qualquer tipo de pressão, já que seu público era constituído basicamente de pessoas que eles conheciam pessoalmente e com as quais mantinham contato na rede, enquanto a mídia tradicional os ignorava por completo, pois não tinham amigos que se apresentavam social ou profissionalmente como jornalistas musicais, e quando conheciam alguma dessas pessoas, logo já sabiam se eram ou não do ramo, em termos de inteligência, informação e bom gosto.A diferença geracional entre eles enriquecia o convívio. Nem deus, nem pátria, nem família,
Tinham em comum o fato de serem minoria. Era hora de deixar que a maioria vivesse na cidade como bem entendessem. Tinham em mente que a humanidade é maior que o estado, mas era hora da maioria decidir sobre essa questão. O mais bizarro é que eles votaram para que decidissem sobre seus destinos.
Zími tinha quarenta e sete anos, aprendeu desde cedo na escola que era para sentar e calar a boca. Não o surpreendia que a essa altura do século vinte e um as pessoas da sua idade o decepcionassem tanto em todos os aspectos.
Viveu por um bom tempo as dificuldades impostas aos apreciadores de música pela indústria do entretenimento, que especialmente no Brasil castigava essas pessoas com muita falta de informação e a ausência de inúmeros lançamentos de discos importantes no país.Mila Cox tinha dezenove anos e nasceu com a indústria musical em agonia. Nunca precisou esperar que suas músicas preferidas tocassem no rádio e comprava discos sabendo o que esperar deles e não apenas baseada no que as pessoas diziam.
Eles não tinham a popularidade como obsessão e nem romantizavam a falta dela. Havia nesse caso o benefício do retrospecto e a história do Rock para mostrar a Cox uma série de justiças e injustiças relativas à popularidade de artistas relevantes.
Fama só parecia atraente acompanhada de dinheiro e dos motivos certos para tê-la. Não havia para eles herança, latifúndio do avô, nem sonegação, lavagem de dinheiro ou exploração brutal do trabalho. E a arte não os remuneraria a ponto de transformar certo princípios.
Havia também o fato de não terem uma música exatamente palatável para os padrões das emissoras de FM e muito menos para o que era apresentado na televisão.
Seus seguidores não eram números, e sim pessoas de verdade com gosto musical bastante distinto.Cox nasceu no século vinte e um e a televisão já não significava nada para ela, enquanto Zími na sua infância nos anos setenta e início dos anos oitenta sonhava com uma programação televisiva decente, especialmente depois de ver pela primeira vez um vídeo cassete e assistir a fitas com programas antigos do Top of the Pops, com uma prima mais velha que era bem à frente das outras pessoas que conhecia.
Zími dizia que chegou onde chegou porque tudo que planejou ao longo da vida deu errado, mas por fim encontrou a paz, antes mesmo do que esperava e ainda que de uma forma estranha, com o mundo em chamas e em meio a uma pandemia.
Esperou por décadas que alguma coisa realmente louca acontecesse no planeta para que certos paradigmas que o assombravam desde os anos setenta caíssem por terra.
Mila Cox era uma jovem de dezenove anos, pressionada antes da pandemia para que decidisse sobre seu futuro acadêmico. Sabia apenas que essa seria uma trajetória ligada à arte, e já lidava com conselhos que sugeriam que esse seria um caminho de fome e insegurança financeira. O outro caminho era se tornar uma escrava agradecida pela oportunidade.
Para Zími, vinte e oito anos mais velho, a falta de perspectivas
para o futuro era algo que conheceu bem durante os quarenta e sete anos que já havia vivido antes da pandemia. Décadas de incertezas impostas pelas pessoas que apoiavam o caminho torto que levou o mundo à situação bizarra em que agora se encontra o endureceram o bastante para que naquele período pudesse apenas usar seu tempo com entretenimento e alguma produção artística. Com um pouco de paciência estaria morto ou chegaria a uma condição de vida mais agradável.Agora, a prosperidade do pomar em seu quintal lavava sua alma dos medos que tinha naquele mundo que não existe mais.Devaneios impostos por pessoas de seu convívio e oficializados pela mídia corporativa estavam agora destruídos. Mila considerava Zími uma espécie estranha de visionário por saber com décadas de antecedência que aquilo tudo daria numa merda global sem precedentes.
Quando falava sobre futuras consequências desastrosas que a forma como o mundo era conduzido traria , Zími ouvia em resposta que contar com isso ainda em vida era como esperar que ganhasse na loteria para resolver seus problemas financeiros crônicos. No entanto, seu estilo de vida que fugia das extravagâncias materiais fez com que se adaptasse rapidamente à nova realidade do mundo.
A base oprimida da pirâmide social agora estava abandonada por aqueles que os enchiam de coragem para acreditar que valia a pena ser sugado pelo sistema, porque o futuro seria melhor. Até porque essas pessoas agora estavam com medo de um futuro que pensavam estar distante demais para que vivessem para presenciar.
Zími não carregava a mágoa de ter acreditado nisso. Sua fé sempre fora calcada na certeza de que viveria para ver a explosão de merda que viria inevitavelmente, mesmo sem saber que seria inicialmente em forma de vírus.
Quando sua vida escolar se tornou uma fraude no curso ginasial, ouvia com frequência que viraria mendigo.
A maioria das pessoas que diziam isso morreram bem antes da pandemia e não puderam ver o resultado crônico de suas convicções baseadas em mentiras, corrupção e ignorância. Gente que viveu sem pandemia e sem internet, num mundo em que o opressor oficializava o que poderia ser sabido pela massa, sob o filtro corrupto do interesse dos poucos que mandavam. Daí o seu desprezo pela mídia corporativa, esta que agora tentava sobreviver, com um passado que lhe tira credibilidade, e um presente e um futuro sob o advento da internet, algo que lhe tira a razão de existir.
O que havia em comum entre Zími e Brito era o completo desprezo por Deus, pela pátria e pela família. Algumas convergências ideológicas que não fizeram deles pessoas tão queridas um ao outro.O resto tinha menos relevância, mas Mila Cox queria saber quem era Brito, que solicitou sua amizade numa rede social e tinha Zími como amigo em comum.Brito era amigo de alguns amigos de Zími e seu vizinho de bairro em São Paulo por muitos anos.Zími começou a descrevê-lo a partir de lembranças que ainda eram claras.Como a ocasião em que Brito estava furioso e como sempre julgava ter razão. Seus monólogos eram sua válvula de escape._ Se eu pudesse enfatizar o quanto é gran
Brito esperava pela entrega de uma pizza à noite em seu apartamento pouco antes das vinte e treês horas de um domingo de Julho de 2011. Até aquele momento, embora soubesse que no dia seguinte precisaria comprar mais maconha, não pensava que a quantidade ainda disponível se resumia apenas ao baseado que acompanharia as cervejas até que a pizza chegasse. Achava que teria o baseado da manhã seguinte. Isso lhe daria algum conforto.Demoraria mais para sair de casa. Já estava com mais sono do que fome, mas sabia que o cheiro do queijo derretido da pizza abriria seu apetite. Dito e feito. Dormiu sem escovar os dentes, no pequeno sofá de sua sala, roncando mais que uma motosserra. Na manhã seguinte, havia um pedaço de pizza de calabresa e outro de alicheAs latas de cerveja vazias haviam preenchido o pequeno cesto de lixo de sua sala e seria precis
Brito morava no último andar de seu prédio, o décimo sexto. Gostava de deixar a TV ligada no canal que filmava a portaria de seu prédio. Costumava se referir àquele canal como TV POVINHO.Gostava de ver seus vizinhos entrando e saindo do prédio enquanto podia sentir-se isolado deles. O áudio não podia ser captado, mas as imagens eram suficientes para que concluísse que não tinha nenhum tipo de vínculo afetivo com aquela que era sua vizinhança desde criança.Gostava de algumas comodidades relativas à localização de seu apartamento, nada além disso. Se fosse por outras razões, teria ido embora dali sem olhar para trás. Quase sempre que pegava o elevador para descer ao térreo, mesmo de madrugada, a probabilidade de o elevador parar em alguns dos quinze andares abaixo an
A parede do banheiro do apartamento de Brito começou a ser quebrada numa manhã de quinta-feira para o conserto de um cano. Na noite anterior seu pai foi avisar-lhe da necessidade desse reparo, causando grande chateação a Brito. Ele precisava fazer com que o dia do conserto do cano do banheiro passasse o mais rápido possível. Reformas em casa o deixavam realmente triste.Na época em que era estudante e estava sempre atrasado e o banheiro que sobrava tinha que ser dividido, essas reformas eram tão repugnantes quanto um procedimento cirúrgico nos olhos. Mas Brito cresceu ouvindo que a vida era dura mesmo para quem não tinha um casa e muito menos um banheiro e também para pessoas que não tinham o que comer. Enfim, era algo desagradável, mas ele tentaria viver aquele dia sem lamúrias.Ele podia cagar e tomar banho no b
Quando voltou para casa naquela noite, Brito não estava tão bêbado. O conserto em seu banheiro tinha sido efetuado com sucesso.O conhaque tinha sido dividido por três caras que gostavam de bebida e por isso a quantidade de álcool ingerida até então tinha sido insuficiente para que a embriaguez de Brito chegasse ao ponto em que ele se considerava satisfeito. Brito tinha pego um cartão de Dema, com seu endereço e o número do telefone fixo e o do celular. Dema morava no centro da cidade, na Rua do Boticário. É uma viela imunda, cheia de nóias, próxima ao Largo do Paissandu.No cartão dizia que Dema tinha um grande catálogo de rock e música em geral e que gravava cds piratas com encartes fiéis aos originais. Saber que aquele sujeito era eunuco fazia com que Brito se sentisse na obrigaç&atil
Brito pediu enfaticamente a Vânia para que fosse discreta na sua chegada ao prédio dele. Tinha pedido com antecedência ao porteiro que quando Vânia chegasse ela subisse sem a necessidade de interfonar. Isso só para que seu pai não ouvisse o interfone do outro apartamento.As cozinhas dos apartamentos de Brito e de Britão eram dividias apenas por uma parede e de um lado era possível ouvir o interfone do outro apartamento caso houvesse algum silêncio. A mãe de Brito havia viajado no dia anterior para o casamento de uma sobrinha. Era prima de Brito e tinha trinta e um anos.Brito havia perdido o contato com todos os seus primos, mas lembrava de quando essa garota nasceu. Manteve algum contato com ela e suas irmãs até a época em que essa que se casaria tinha doze anos.
Os moradores mais velhos do condomínio viviam apáticos em seus microcosmos, cheios de medo na fase final de suas vidas. Se pudessem imaginar o que aconteceria com o mundo a partir de 2020 estariam mais tranquilos por terem certa longevidade garantida antes da pandemia.Tinham medo do dia seguinte. As crianças descontroladas viviam sofrendo com a falta de espaço e estavam sempre cheias de energia ruim por causa do excesso de açúcar no organismo.A repressão sobre elas vinha das câmeras instaladas nos elevadores, nas escadas e no hall de entrada do prédio. Através do canal de TV que transmitia o que essas câmeras captavam, Brito assistia de seu apartamento a essa movimentação sufocada e lembrava que em seus tempos de criança as coisas eram diferentes.Mesmo sendo ele um cara que também
Então Zími contou a Mila Cox que naquele momento Brito em sua lembrança era apenas o filho do Britão, que é um tipo de pessoa que não se enquadra no que se espera de um mundo renovado depois da pandemia.Pelo que podiam saber através de seu perfil na internet, Brito parecia estar bem e não ter tido qualquer problema com o fato de se manter em isolamento. Estava à beira dos cinquenta anos e provavelmente estava em seu apartamento vendo o mundo em chamas pela televisão, ironizando o fato de que as pessoas votam para isso.Zími pensava então em como estariam os outros dos quais lembrou para poder situar Brito em seu passado. Provavelmente não os reconheceria na rua, por trás da máscara e do tempo que passou.