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Zoonose
Zoonose
Por: Fernando Barreto
Capítulo 1

Sem igreja, sem polícia, sem chefes, sem impostos e sem governantes.

Aproveitando dos princípios que os uniam ideologicamente, estavam agora fora da cidade, isolados no meio da Mata Atlântica desde o início da pandemia. A descrença na humanização da sociedade era a maior motivação para o isolamento.

Zími e Mila Cox encaravam cada um a seu modo a comodidade do rancho sem nome, onde o ócio que muitas vezes é feito do isolamento se transformava em músicas gravadas toscamente em fitas k7 para depois serem digitalizadas e então disponibilizadas.

Apesar de

lançarem essas gravações em mídias físicas nos poucos shows que faziam juntos sob o nome de Crop Circles e também as disponibilizarem na internet com certa regularidade, tinham agora tempo livre e não sofriam qualquer tipo de pressão, já que seu público era constituído basicamente de pessoas que eles conheciam pessoalmente e com as quais mantinham contato na rede, enquanto a mídia tradicional os ignorava por completo, pois não tinham amigos que se apresentavam social ou profissionalmente como jornalistas musicais, e quando conheciam alguma dessas pessoas, logo já sabiam se eram ou não do ramo, em termos de inteligência, informação e bom gosto.

A diferença geracional entre eles enriquecia o convívio. Nem deus, nem pátria, nem família,

Tinham em comum o fato de serem minoria. Era hora de deixar que a maioria vivesse na cidade como bem entendessem. Tinham em mente que a humanidade é maior que o estado, mas era hora da maioria decidir sobre essa questão. O mais bizarro é que eles votaram para que decidissem sobre seus destinos.

Zími tinha quarenta e sete anos, aprendeu desde cedo na escola que era para sentar e calar a boca. Não o surpreendia que a essa altura do século vinte e um as pessoas da sua idade o decepcionassem tanto em todos os aspectos.

Viveu por um bom tempo as dificuldades impostas aos apreciadores de música pela indústria do entretenimento, que especialmente no Brasil castigava essas pessoas com muita falta de informação e a ausência de inúmeros lançamentos de discos importantes no país.

Mila Cox tinha dezenove anos e nasceu com a indústria musical em agonia. Nunca precisou esperar que suas músicas preferidas tocassem no rádio e comprava discos sabendo o que esperar deles e não apenas baseada no que as pessoas diziam.

Eles não tinham a popularidade como obsessão e nem romantizavam a falta dela. Havia nesse caso o benefício do retrospecto e a história do Rock para mostrar a Cox uma série de justiças e injustiças relativas à popularidade de artistas relevantes.

Fama só parecia atraente acompanhada de dinheiro e dos motivos certos para tê-la. Não havia para eles herança, latifúndio do avô, nem sonegação, lavagem de dinheiro ou exploração brutal do trabalho. E a arte não os remuneraria a ponto de transformar certo princípios.

Havia também o fato de não terem uma música exatamente palatável para os padrões das emissoras de FM e muito menos para o que era apresentado na televisão.

Seus seguidores não eram números, e sim pessoas de verdade com gosto musical bastante distinto.

Cox nasceu no século vinte e um e a televisão já não significava nada para ela, enquanto Zími na sua infância nos anos setenta e início dos anos oitenta sonhava com uma programação televisiva decente, especialmente depois de ver pela primeira vez um vídeo cassete e assistir a fitas com programas antigos do Top of the Pops, com uma prima mais velha que era bem à frente das outras pessoas que conhecia.

Zími dizia que chegou onde chegou porque tudo que planejou ao longo da vida deu errado, mas por fim encontrou a paz, antes mesmo do que esperava e ainda que de uma forma estranha, com o mundo em chamas e em meio a uma pandemia.

Esperou por décadas que alguma coisa realmente louca acontecesse no planeta para que certos paradigmas que o assombravam desde os anos setenta caíssem por terra.

Mila Cox era uma jovem de dezenove anos, pressionada antes da pandemia para que decidisse sobre seu futuro acadêmico. Sabia apenas que essa seria uma trajetória ligada à arte, e já lidava com conselhos que sugeriam que esse seria um caminho de fome e insegurança financeira. O outro caminho era se tornar uma escrava agradecida pela oportunidade.

Para Zími, vinte e oito anos mais velho, a falta de perspectivas

para o futuro era algo que conheceu bem durante os quarenta e sete anos que já havia vivido antes da pandemia. Décadas de incertezas impostas pelas pessoas que apoiavam o caminho torto que levou o mundo à situação bizarra em que agora se encontra o endureceram o bastante para que naquele período pudesse apenas usar seu tempo com entretenimento e alguma produção artística. Com um pouco de paciência estaria morto ou chegaria a uma condição de vida mais agradável.

Agora, a prosperidade do pomar em seu quintal lavava sua alma dos medos que tinha naquele mundo que não existe mais.

Devaneios impostos por pessoas de seu convívio e oficializados pela mídia corporativa estavam agora destruídos. Mila considerava Zími uma espécie estranha de visionário por saber com décadas de antecedência que aquilo tudo daria numa merda global sem precedentes.

Quando falava sobre futuras consequências desastrosas que a forma como o mundo era conduzido traria , Zími ouvia em resposta que contar com isso ainda em vida era como esperar que ganhasse na loteria para resolver seus problemas financeiros crônicos. No entanto, seu estilo de vida que fugia das extravagâncias materiais fez com que se adaptasse rapidamente à nova realidade do mundo.

A base oprimida da pirâmide social agora estava abandonada por aqueles que os enchiam de coragem para acreditar que valia a pena ser sugado pelo sistema, porque o futuro seria melhor. Até porque essas pessoas agora estavam com medo de um futuro que pensavam estar distante demais para que vivessem para presenciar.

Zími não carregava a mágoa de ter acreditado nisso. Sua fé sempre fora calcada na certeza de que viveria para ver a explosão de merda que viria inevitavelmente, mesmo sem saber que seria inicialmente em forma de vírus.

Quando sua vida escolar se tornou uma fraude no curso ginasial, ouvia com frequência que viraria mendigo.

A maioria das pessoas que diziam isso morreram bem antes da pandemia e não puderam ver o resultado crônico de suas convicções baseadas em mentiras, corrupção e ignorância. Gente que viveu sem pandemia e sem internet, num mundo em que o opressor oficializava o que poderia ser sabido pela massa, sob o filtro corrupto do interesse dos poucos que mandavam. Daí o seu desprezo pela mídia corporativa, esta que agora tentava sobreviver, com um passado que lhe tira credibilidade, e um presente e um futuro sob o advento da internet, algo que lhe tira a razão de existir.

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