Uma mesa em Veneza
Uma mesa em Veneza
Por: Rafanaele Damasceno
Prólogo

Após tantas pesquisas cuidadosas, já não era novidade para Giulia que ao chegar na charmosa Itália era como estar em algumas fotografias dos livros. Tampouco pôde surpreender-se ao ficar sem fôlego quando chegou em Veneza.

A cidade mais romântica” seu marido Robert disse com um suspiro romanesco, e ainda que pudesse ouvi-lo, Giulia ocupava-se enchendo seus olhos cor de mel de uma beleza tão estúpida como aquela. “Existem mais turistas aqui do que moradores”, Robert continuava a dizer coisas das quais Giulia sabia.

Mesmo após cinco anos de casamento e ele continuava a fazê-lo, dizer coisas que Giulia já sabia, como quando ela estava em dúvida se compraria um livro e ele se dispôs a dizer o que a crítica havia escrito a respeito dele. Ela daria tudo para tê-las pelo resto de sua vida invés de ter de aprender a lidar com sua vida sem elas novamente. 

Ela tomou seu fôlego de volta e ao chegarem na casa que haviam alugado, sentiu um aconchego íntimo. Como poderia ela ir do caos que costumava ser sua vida a um estado proporcional a paz de espírito? Como poderia o mundo ser tão grande a ponto de oferecê-la ambas as coisas através de lugares tão distintos?

Giulia pôs a mala por sobre o sofá da sala pensando que nunca pôde se dar tempo o bastante para curtir paz de espírito após determinado momento em sua vida.

Crescer num jornal no qual, não era vista como alguém possível de ao menos continuar lá por três anos, exigiu tempo, esforço e estresse. 

A casa alugada em Veneza era, em contrapartida com o cenário do lugar em sua grande maioria, moderna, porém feita de madeira. Ainda assim era iluminada e bem arejada, tinha uma parede de vidro próxima a uma espécie de pequena estufa que ganhava o necessário da luz do dia e harmonizava com o resto da casa.

Giulia não compreendia muito bem de decoração ou o que quer que fosse, mas sabia quando uma casa a agradava. 

— Nós fizemos uma ótima escolha. — Robert disse como quem lê seus pensamentos. — Vamos pedir algo para comer?

— Eu tomarei um banho, vou dormir um pouco. — Giulia respondeu com cansaço em sua voz, Robert deu de ombros como quem concorda ligeiramente.

— Se importa de eu ir tomar banho antes?

— Não. — Ela disse simplesmente e o observou se afastar com aquela blusa branca de mangas longas que cobriam até seus pulsos, sempre tão confortável quanto parecia. Giulia sentou-se no sofá e escorou a cabeça na mão enquanto seu braço estava apoiado no sofá exercendo um pouco da carga de seu corpo.

Agora ela olhava para o espaço vazio deixado por Robert, se fechasse os olhos poderia vê-lo exatamente na situação em que o conheceu, numa festa para poucos amigos de Amber, sua amiga que estava interessa de uma forma nada amigável em Robert.

Giulia lembrava vividamente de uma Amber nervosa, arrumando as bebidas e questionando a decoração, que apesar de simplória por se tratar de algo exclusivo e para poucos, devia ficar impecável.

Amber jamais teve tanto cuidado com decorações, em verdade achava irritante cuidar delas sempre que havia uma ocasião e sempre escolhia profissionais para fazê-lo, quando Robert passou pela porta e Giulia viu o sorriso frouxo no rosto de Amber mesclado a um leve nervosismo, ela soube que Amber continuava sem se importar com decoração e que Robert era o único motivo de todo seu empenho naquela noite.

Ele estava com aquela blusa branca e tinha um sorriso tão charmoso quanto seus cabelos grisalhos e seu jeito de se portar, Giulia soube apenas em vê-lo caminhando na direção das duas.

Robert McCarthy tinha cheiro de promessa e agia com gentileza, oh Giulia descobriu com suas rápidas observações iniciais que ele podia ser muito mais do que isso e era o que havia de convidativo sobre aquele homem.

As pessoas fazem muitas coisas por promessas implícitas, e Giulia sabia que não diferia do resto delas. Bastou meia hora de conversa e sorrisos trocados com Robert para que ela percebesse que não se importava com o fato de que Amber o queria desesperadamente.

Ela faria tudo para que fosse dela a chance de poder ter algo com Robert McCarthy, seu empenho não fora o mais assíduo de todos, Giulia já havia se esforçado mais para sair com alguém, porém isso deveu-se ao interesse mútuo de Robert.

Amber? Giulia não sabia como ela estava, mesmo após tantos anos, ela reprovou completamente a possibilidade de Giulia e seu desejado Robert e provavelmente deve ter-se irritado ainda mais ao saber do casamento dos dois.

Giulia não se importou, sentia que nunca havia sido realmente próxima de Amber, tantas vezes o silêncio esticava-se entre as duas e se falavam como se fosse uma obrigação a ser mantida pelo bem da educação. 

Além disso, ela nunca quis se provar uma boa pessoa, sempre achou que não precisava provar nada para ninguém, tudo o que tinha de fazer era seguir seus objetivos e as pessoas que realmente gostariam dela, estariam ao seu lado porque ela seria agradável o bastante, e não pelo fato de que tinha de desdobrar-se para agradá-los.

Em determinado ponto de sua vida, ela se reduzira em duas coisas: Robert e trabalho e uma parte delas estava indo embora. Havia uma ruptura em sua vida, ela iria se partir ao meio e para Giulia nada restava se não assistir até que lhe faltasse parte dela.

Ao descobrir que tinha câncer em estado muito avançado, Robert negou-se a fazer qualquer tipo de tratamento invasivo e agressivo apenas para que pudesse durar um pouco mais enquanto se acabava gradativamente. 

Ele resolveu curtir a vida da maneira que sentia falta, mas daquela vez com Giulia ao seu lado, fez uma lista de desejos para que os dois cumprissem juntos e, estar ali era seu penúltimo desejo. 

Robert McCarthy havia sido um aventureiro que exalava vida e sua animação podia saltar aos olhos na grande maioria das vezes, era o tipo de pessoa que se pudesse ser uma personificação do que é saber viver, seria ele.

Mas agora, vendo-se no espelho daquele banheiro de uma casa alugada em Veneza, não havia sobrado muita coisa do que ele era ou costumava ser. Robert deslizou as pontas de seus dedos por seu rosto enquanto se negava a desviar o olhar da realidade imutável.

Tentou manter sua barba rala e esbranquiçada como seus cabelos grisalhos, mas isso não disfarçava o fato de seu rosto estar mais magro. Robert não esperava emagrecer tanto, havia sombras debaixo de seus olhos, olheiras que não costumava ter.

Uma vez, teve um ataque de ansiedade e Giulia saiu às pressas de seu trabalho para tentar acalentá-lo em casa, ele continuava a insistir que assim como não precisava de babá, também não havia necessidade de que a esposa largasse tudo porque um homem de quarenta anos estava passando mal. Robert viu no olhar de Giulia a vontade de rebatê-lo imediatamente, mas sua boca se manteve fechada a muito custo, ele sabia, pois ela o respeitava. 

Robert desceu o olhar por seu corpo e teve mais desgostos, mesmo sem fazer qualquer tratamento que apenas estragaria ainda mais sua aparência, aquela doença parecia ter a necessidade de roubá-lo de si mesmo antes de finalmente levá-lo. 

Não quero definhar”, ele havia comunicado quando Giulia voltou do trabalho numa tarde de terça-feira. No entanto, o espelho estava dizendo-o como uma verdade irrefutável: “Você está definhando”.

Quando Robert finalmente saiu do banheiro, encontrou Giulia sentada na cama com suas costas escoradas contra a cabeceira fuçando em seu celular, decidindo onde iriam primeiro no passeio que fariam no dia seguinte.

Você quer montar os passeios por lista? Não! Tudo bem. Nós podemos decidir lá, acho que fazer isso estragaria um pouco a magia.” Disse Robert e Giulia não encontrou sentindo algum que fosse naquela “lógica”, mas resolveu concordar porque seria uma maneira prática de lidar com algo do tipo.

Mas quando o silêncio já estava exagerado e Giulia não ouviu a voz do marido após ouvir o chuveiro desligar e a porta abrir, ela levantou a cabeça rapidamente e o encontrou olhando-a com aqueles olhos novamente.

— Ah não. — Ela começou. — Você pensou bastante outra vez antes e durante o banho? — Apesar de perguntar, Giulia já sabia a resposta.

— Eu sei. Eu não deveria fazer isso porque eu quem a convenci de que aproveitaria tudo que planejamos ao seu lado até que não pudesse fazer mais isso. É que… desculpe-me por todas as traições.

Eu… — Um suspiro forte e audível de Giulia fora o suficiente para que Robert não completasse sua sentença.

— Você já pediu isso Robert, nós já conversamos sobre isso. Eu já sabia, bem, desconfiava e você sabia que eu desconfiava. Você não me procurava mais para fazer sexo, nem eu reclamava por isso, sabe que nos tornamos bons amigos apesar de que para todos ao nosso redor, não exista amor mais próspero que nosso.

— Eu te amo. – Ele disse como se fosse sua única certeza em meio a tudo e Giulia sorriu.

— Eu também te amo, mas nós sabemos que não é o tipo de amor que fez Romeu se matar antes de checar se Julieta poderia estar viva, ou foi o contrário? — Ela questionou com uma expressão confusa e engraçada arrancando um pequeno sorriso torto do marido.

— Eu queria ser o grande amor da sua vida e não o seu amor que virou seu amigo. – Robert confessou se aproximando e Giulia o acompanhou com seu olhar.

— Robert. Nosso amor virou amizade nas sombras da rotina e nós deixamos que assim fosse porque nos era mais agradável assim, porque gostamos de morar juntos, de passar algum tempo um com o outro e nós nos amamos, não mais daquela forma, é verdade, mas as coisas são como são. Prefiro ser casada com você, um grande amigo de quem gosto de cuidar e com quem amo dividir a vida do que ficar me perdendo em algum amor. Eu não preciso disso. — Robert a olhou com hesitação, Giulia inspirava segurança sempre que expressava seu ponto de vista, pois o tomava e o tinha como uma verdade. 

— E quando eu for? — Ambos sabiam com exatidão do que ele estava falando.

— Eu ainda terei meu emprego. — Giulia respondeu desviando seu olhar para a tela de seu celular novamente ignorando o balançar doloroso de seu coração no peito apenas com a suposição de algo para o qual ela já devia estar mais preparada do que realmente estava.

Robert ficou olhando-a por um tempo, tentado a contradizer embora soubesse que ela rebateria tudo com a mesma disposição de sempre. Esse fato sempre fez com que discussões com Giulia fossem insuportáveis, afinal ela sempre se colocava no posto de “a dona da razão”.

No entanto, daquela vez era sobre a vida da própria Giulia e Robert odiava admitir para si mesmo que não podia tomar decisões por ela. Giulia jamais precisou de um protetor, e para Robert, quando começaram a sair, tornou-se claro o fato de que para Giulia um parceiro não significa alguém que tenta protegê-la de uma fragilidade que ela não tem.

No dia que se seguiu, Robert acordou disposto, pois visitariam a Piazza San Marco. Foram pela manhã com a válida justificava de que não haviam feito nada no dia anterior após sua chegada que não fosse descansar. 

— É apenas a igreja mais famosa da cidade! — Robert exclamou empolgado, bem quando eles entraram na Basílica di San Marco.

Giulia estava ocupada olhando para toda a arquitetura, não poderia dizer que já havia visto qualquer coisa daquele tipo e sabia que se maravilhar com as coisas que iria ver ao longo daquela viagem seria algo que deveria ser entendido como rotineiro enquanto estivesse ali.

Sentiu-se pequena demais em algo tão grande, de tamanha magnitude, a arquitetura de arregalar olhos e receber suspiros era uma mistura de vários estilos como o românico e o renascentista. 

— Pode-se dizer que eles sabiam como chamar a atenção dos fiéis. — Giulia finalmente comentou se referindo ao fato de que após o período do renascimento, a razão detinha o poder de libertar o homem a ponto de a igreja católica perder fiéis e necessitar de uma reformar para assim os atrair novamente.

— Não é por acaso que a arte barroca nasceu na Itália. — Robert respondeu como se justificasse muito bem enquanto encarava os mosaicos que retratavam a vida de Jesus Cristo, ele estava prestes a acrescentar que alguns daqueles mosaicos foram substituídos, mas tinha a leve impressão de que Giulia já sabia e ficaria calada novamente.

Giulia levou sua atenção para as imagens dos mosaicos no chão, no entanto, nem todos podiam ser vistos, pois alguns deles estavam cobertos por tapetes. Mas não era como se Giulia pudesse se sentir privada de arte, aquele lugar inteiro exalava e era a própria arte. Estava um pouco desnorteada, nunca viajara para fora do país com Robert.

Quando os dois se conheceram, Giulia ainda estava tentando ter seu espaço conquistado em seu trabalho e não mediu esforços para isso, nem mesmo sonhou com viagens ao exterior, tudo o que podia pensar era provar para todos eles que estavam errados sobre ela. E sabia que podia fazê-lo, já havia passado por coisas piores do que pessoas em cargos superiores duvidando de sua capacidade.

Giulia odiava quando uma situação tentava fazê-la provar que possuía mérito o suficiente para conquistar algo, ainda assim sabia que não havia escolha em relação ao seu trabalho que não se provar.

Não podia se dar ao luxo de sair apenas caminhando para fora após se demitir porque não acreditavam nela, o mercado é voraz e ainda mais para uma mulher, então Giulia soube que se não pudesse lidar com aquilo, talvez o próximo passo deveria ser morrer de fome. 

— Vamos ver o tesouro paroquial. — Robert disse pegando sua mão e puxando-a gentilmente. Após verem o tesouro paroquial, foram ver a ‘Pala d'Oro.

Para Giulia fora bastante simples compreender porque a ‘Pala d'Oro era a atração principal da basílica, ela estava certa de que nunca vira tantas pedras preciosas em toda sua vida. Ao seu lado, Robert não se conteve por mais tempo e continuou agindo como seu guia turístico para fazer uso de todas suas pesquisas e dizia que havia itens roubados de Constantinopla ali.

Em seguida, os dois foram para o museu e obviamente surpreenderam-se em silêncio com a carruagem de bronze dourada, entretanto, o que naquele lugar não seria surpreendente? Giulia se perguntou mentalmente enquanto observava o objeto, chegava a ser um elegante exagero. 

Quando sua visita a Basílica di San Marco tivera fim, Robert e Giulia foram a um dos vários bares que cercavam a basílica. Decidiram que não pediriam nada forte demais e sentados se puseram a observar turistas passarem deslumbrados, Robert riu atraindo o olhar de Giulia.

— Nós somos assim. — Ele disse com certeza.

— Oh, eu não tenho dúvidas. — Giulia concordou com um esboço de sorriso em seus lábios meramente curvados.

— Eu acho que aqui é um belo lugar para você se inspirar para o último desejo da minha lista, não? — Ele perguntou tomando um pequeno gole de sua bebida e sentindo o sabor espalhar-se gradativamente por sua boca.

O corpo de Giulia ficou tenso, embora Robert estivesse ocupado demais para perceber, ela comprimiu seus lábios carnudos em meio ao silêncio como se buscasse uma resposta para aquela pergunta, mas a resposta era óbvia.

— Claro. — Giulia disse finalmente.

— Vamos ficar pelo tempo que você quiser, e que suas férias permitirem, claro. Eu nem me importo com esse negócio de tempo, Veneza é um paraíso. — Giulia pôde ouvir seu suspiro de satisfação.

— E se você ficar entediado? — Questionou receosa.

— Então terá sido melhor do que ficar entediado em qualquer outro lugar. — Robert respondera como se tivesse aquela resposta guardada em sua mente por muito tempo, pois ela vinha carregada de muita convicção.

Porém Giulia sabia que era apenas o efeito de Veneza que havia entrado na cabeça do marido, e muito provavelmente em seu coração. Não podia culpá-lo, era extasiante, ainda assim, preocupava-se com o último item da lista de desejos dele e tinha motivos plausíveis para isso.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >
capítulo anteriorpróximo capítulo

Capítulos relacionados

Último capítulo