4. DESPERDÍCIOS

(Ryan)

— O que quer, cara?  — Bernardo me olha desconfiado. 

— Não posso te chamar para beber casualmente?  – Pergunto franzindo as sobrancelhas, ele ri virando todo o conteúdo do copo de uma vez. Estamos em um bar bem conceituado e perto da empresa.

— Acha mesmo que vou acreditar que sacrificou seu tempo para ficar aqui de boa comigo? Fale logo, não vim aqui atoa. — Bernardo dobra os punhos da camisa social.

Pedimos outra bebida que não demora a chegar.

  — É o seguinte, preciso da sua ajuda. – Empurro o copo vazio para o centro da mesa. Chega, não posso chegar em casa bêbado. — Preciso que encontre algumas mulheres para mim.

Bernardo explode em gargalhadas que levam minha paciência pelos ares. Leva alguns minutos para que consiga parar.

— Desde quando precisa de ajuda? Está tão enferrujado assim?   — Seu tom é de deboche. 

Passo a mão no rosto que com certeza deve estar vermelho de raiva. 

— Eu não estou enferrujado! As mulheres que me refiro não são do tipo que conheço, por isso preciso de você. – Bernardo termina sua bebida e b**e de leve o copo na mesa. Sinal de que não vai continuar bebendo. Ele franze as sobrancelhas.

— Como assim?  — Respiro fundo me preparando para narrar a loucura que vou fazer.

— Eu vou me casar.  – Bernardo explode em outra crise de riso, é maior que a anterior e chega a chamar atenção de algumas pessoas. 

"Não mate seu amigo, Ryan. Você precisa dele."

Limpo a garganta. 

— Como estava dizendo... Vou me casar. – Não posso culpar Bernardo por rir, é loucura dizer isso em voz alta. — É ...  o último desejo da minha mãe. 

Empurro as palavras e o clima descontraído se esvai, vejo sua expressão assumir a seriedade do assunto. Decido pedir outra bebida, vou precisar. Conto a ele sobre a conversa que tive com Helena, Bernardo entende que por mais que casar seja última coisa que eu faria na vida não posso ignorar esse sonho de Helena,  não quando a vida dela está escorregando pelos nossos dedos. 

— E o que exatamente tenho que fazer? – Ele pergunta.

— Não sei, só sei que precisamos encontrar boas moças, dessas que fazem o estilo esposa perfeita. Simpática, dócil,  bonita e essas coisas. Preciso de algumas para avaliar, não posso simplesmente escolher qualquer uma. Tenho que testá-las, não posso colocar qualquer uma ao lado da minha mãe. 

Apoio os cotovelos na mesa, sinto raiva só de pensar em deixar uma oportunista entrar na minha casa.

 Explico sobre o contrato, já que a garota vai ter um bom salário por mês enquanto durar o contrato e suas despesas essenciais não serão incluídas nesse salário pois serão pagas por mim, acredito que a missão se torne um pouco mais fácil, mas não menos complicada. 

— Ok, mas como vou encontrar e juntar essas mulheres? Isso é o que, um concurso? – Ele pergunta irônico. 

De repente tenho uma idéia. 

— Já sei. — Seus olhos verdes assumem um brilho de confusão.— Podemos simular uma entrevista para um cargo na empresa, assim vou poder fazer perguntas e investigar a vida das candidatas. Elas vem até nós procurando um trabalho...

— E aí a proposta verdadeira será feita apenas para a escolhida no fim do processo seletivo? – Bernardo gesticula e eu concordo em um aceno. 

— É isso. É exatamente que vamos fazer. Você é um gênio. — Sorrio, isso vai ser divertido.

Quando saímos do bar fica acertado que o cargo a ser oferecido será o de secretária de Bernardo, muitas vão concorrer ao cargo, é um bom atrativo. Volto a empresa apenas para passar instruções a Lívia, ela divulga a vaga em um site de empregos enquanto ainda estou presente, manda algumas mensagens em seu celular e só assim me sinto satisfeito. 

Só chego em casa depois das quatro da tarde, Jamily informa que Helena está dormindo, me esperou para o café mas teve que tomar remédio e não foi capaz de lutar contra o sono. Passo no quarto dela para ver se está bem, depois tomo um banho e vou comer alguma coisa. Passo as próximas duas horas esticado no sofá assistindo TV, e então meu celular toca. Vejo o nome estampado no Visor, é Carolina. 

— Quem é vivo nem sempre aparece. 

— Carol.  – O entusiasmo em ouvir sua voz é zero. 

— Ryan, como você está?  

— Bem, obrigado. — A resposta é quase automática, mas me lembro da boa educação que Helena me deu. — E você?  

— Estou bem aqui também, mas poderia estar melhor, faz tanto tempo desde que te vi. — Realmente faz muito tempo. A voz de Carol não é melosa nem nada, ela não é desse tipo, sabe ser uma mulher interesse na medida certa, sem ser seca e nem carinhosa demais, exatamente no ponto, talvez por isso goste dela. 

Tento me lembrar o motivo de não procurá-la mais e da minha apatia no início da ligação e já não consigo, talvez seja o peso da situação da minha mãe, talvez eu esteja mesmo enferrujado como Bernardo disse, talvez Helena tenha razão quando diz que quase não saio mais. Talvez eu devesse sair, Carol não é nem de longe o tipo de mulher que procuro para casar,  mas a idéia de sair é apenas para passar um tempo agradável. Eu preciso e acho que mereço. 

— Estou um pouco... Ocupado ultimamente. Mas não menos interessado em marcar alguma coisa. 

— Tem planos para o fim de semana? — Seu tom de voz é alegre, chego a conclusão que a leveza da companhia dela vai me fazer bem. 

— Agora tenho, se você não tiver. — Ouço um riso abafado do outro lado da linha. 

— Então parece que agora tenho também.  

— Sábado, passo aí as oito, esteja pronta. Tudo bem?  

— Claro que sim, onde vamos?  — Ela pergunta curiosa 

— Surpresa. 

— Ah não, Ryan! Preciso saber o que vestir.

— Você sempre sabe o que vestir. – Sei que ela está sorrindo do outro lado da ligação. 

Ando bipolar e desanimado para eventos sociais ultimamente, depois que Helena passou mal seriamente durante uma viagem que fiz o sentimento de apreensão e culpa sempre se fazem presente quando saio para me divertir, engraçado como o mesmo não acontece quando estou trabalhando. Tento não deixar de sair, mas o incômodo sempre está lá quando o faço.  É capaz de eu me arrepender do convite, mas prometo a mim mesmo que vou.  Preciso me distrair ao menos por algumas horas. 

(Gabriela) 

Beth receber alta do hospital foi a única coisa boa que me aconteceu essa  semana, porque de resto minha vida está indo de mal a pior. Beth está impedida de trabalhar e repouso, Fernanda está morando aqui de novo por um tempo, o que significa que as provocações voltaram, venho engolindo muita coisa para não começar uma discussão e aborrecer a mamãe. 

Deixo para chorar sozinha, não comento nada com Beth, nossas conversas são leves, nada de emoções fortes mas ainda posso dividir meus lamentos com Leila e Aline. Na última semana andei pensando no motivo pelo qual meus pais biológicos não me quiseram, será que eu era uma criança ruim? Será que fui motivo de complicação durante a gravidez?

 Beth me encontrou quando eu tinha quase um ano, minha mãe biológica ficou comigo até então? Me deu para outra pessoa assim que nasci e esta também não me quis? Rejeitada duas vezes, será? Eu poderia ter tido sorte em encontrar uma boa família que me adotasse, como Aline. Assim jamais me sentiria uma intrusa como Fernanda e Eduarda me fazem sentir quando estão juntas. 

Na loja, Ingrid, uma megera do grande grupo que não vai com a minha cara armou para que a gerente pensasse que roubei um valor do caixa, até as câmeras de segurança deixaram de funcionar misteriosamente no momento. Por falta de provas a gerente deixou o episódio passar, mas disse que ficaria de olho em mim. 

A sensação de ser alguém suspeita acaba comigo, nunca tive muita coisa mas sempre tive honestidade, sempre trabalhei e procurei ser uma das melhores funcionárias, me machuca ser acusada de roubo e ter a gerência me olhando atravessado. Principalmente agora quando tudo parece dar errado na minha vida, por mais magoada que eu esteja não posso me dar ao luxo de me demitir, preciso do emprego, agora mais ainda já que Beth não vai mais trabalhar. 

Estou em mais um expediente, após o almoço Leila me dá uma caixa com chocolates, agradeço e como os bombons. É a parte mais doce do meu dia e a única, pois no fim do expediente sou chamada por Samira, no setor de recursos humanos. Vou até lá com o coração apertado, cada eco do meu salto é um pulo do meu coração.

— Entre. – Samira me olha, seus óculos delicados dão o ar de seriedade. Me sento na cadeira em frente a mesa dela.

— Gabriela, tivemos alguns problemas com relação a você e Ingrid na última semana... 

— Sim. – Me apresso em confirmar. — Marcela conversou comigo, mas pela falta de provas acabou que... 

— Agradecemos pelo tempo que se dedicou a empresa, mas a partir de hoje não precisaremos mais dos seus serviços. – Foi como levar um banho de água fria. A expressão de Samira é de pena, apesar do tom da sua voz é firme. 

Demitida. 

Estou demitida. O ar ficou preso na minha garganta por vários minutos. Respiro fundo tentando juntar os cacos de dignidade, se é que ainda tenho e me levanto. Vou até o banheiro, minha visão já está embaçada pelas lágrimas e agradeço por não esbarrar em ninguém.

Entro no banheiro, está vazio.

Olho o meu reflexo no espelho, estou perfeitamente arrumada dentro da blusa justa de mangas curtas e calça flaire. Cabelo arrumado, batom rosa e olhos borrados pelas lágrimas. 

Tiro os olhos do meu reflexo, abaixo a cabeça e deixo as lágrimas caírem na pia de mármore, faz mais de um ano que trabalho aqui, vou sentir falta desse emprego, e não quero nem pensar em como o salário mesmo não sendo lá essas coisas vai me fazer falta. 

Lavo o rosto e tiro a maquiagem, preciso chegar em casa parecendo um ser humano e não um zumbi, Beth não pode ficar preocupada com uma cara de choro. A porta se abre, é Leila e eu suspiro aliviada. 

— O que aconteceu?  — Aceno negando, segurando o choro.

— Estou demitida, Lê. — Evitei olhá-la nos olhos para não desmoronar, vi pelo reflexo ela assumir o choque da notícia. Ela abraçou meus ombros. 

— Amiga, não se desespera. Sei que precisa do emprego mas estou aqui. – Ela me virou até me olhar nos olhos, seus olhos negros cheios de lágrimas. — Vou te ajudar a conseguir outra coisa melhor, vamos procurar juntas. 

Concordo com a cabeça e a abraço.

— Droga, vou sentir sua falta. — Ela limpa as lágrimas e faz uma careta que me faz rir quando nos separamos. As caretas dela sempre me fazem rir. 

— Vamos embora, vou com você. Já deu o horário. 

Nós juntamos nossas coisas e saímos, Leila ainda me chama para tomarmos café na confeitaria perto da loja e eu aceito, me afogar em chantilly e chocolate parece me dar forças para chegar em casa aparentando bom estado. E também para não dar esse gosto a Nanda e Duda. 

Assim que chego em casa,  entro e vou direto para o quarto, tomo banho, coloco um pijama confortável e deito de lado na minha cama abraçando um travesseiro, após desidratar de tanto chorar acabo dormindo. Sonho com dias melhores.

(Ryan)  

— Não quero que passe nenhuma ligação hoje. Cancele minha agenda. — Ordeno quando passo por Lívia, ela levanta o olhar do computador a sua frente  e parece assustada. Provavelmente com o tom de voz que uso. 

— Sim, senhor. Bom dia. — Ela pisca algumas vezes e ajeita os óculos que nunca a vi usando antes. 

Acordei irritado, hoje é o dia da m*****a seleção, tem mulheres extremamente animadas e falantes em cada parte desse prédio. Não esperava que houvessem tantas candidatas, devia ser algo de porte menor. Passando os olhos nas mulheres que atravessaram meu caminho no trajeto até aqui não encontrei uma que parecesse à altura do meu propósito, vai ser mais difícil do que pensei.

Vou para minha sala e tiro o terno que parece me sufocar e largo em alguma cadeira próxima. Me acomodo e pressiono as têmporas tentando relaxar.  Preciso de um bom café para me preparar para acabar com essa multidão que está espalhada pela empresa.

Como um anjo enviado na hora certa, Lívia entra em minha sala com um café e deixa em cima de minha mesa. Respiro fundo passando a mão no rosto, deixei minha irritação transparecer na forma que falei com ela quando entrei. 

— Obrigado. — Ela apenas concorda e mantém a seriedade. 

— As candidatas estão reunidas e organizadas no auditório. Vou aguardar sua autorização para deixá-las entrar. 

— Ok. Obrigado.— Lívia pede licença e sai da sala. Eficiente ela, está linda em uma saia justa vermelha e uma blusa branca social de mangas longas. 

Podia ser ela. Não podia ser qualquer uma? Passo os dedos entre os cabelos consciente de que os deixo bagunçados. Que se dane, sou o dono dessa droga de empresa posso vir como quiser. Tomo o café e aviso a Lívia para dizer a Bernardo que a seleção começou, o infeliz nem apareceu na minha sala até agora, é claro que vai me deixar sozinho nessa.

 Ligo o computador e olho as câmeras do auditório, está cheio. Não dá para testá-las assim. Tenho uma idéia, preparo algumas situações e testo uma por uma de diversas formas, deixo-as sozinhas na minha sala com o gabarito da prova escrita por perto, ou algum envelope com uma boa quantia de dinheiro. 

Assim faço com mais de trinta mulheres, mudando a forma de testá-las... Elas caem feito patos. Só quatro passam nos testes, mas as quatro não passam pelas perguntas. Posso ver claramente Helena torcendo o nariz para elas, uma parece fechada demais, a outra é inconveniente. 

Quase quatro da tarde é a hora que termino esse show de horrores. Bernando aparece animado na minha sala, penso na possibilidade de ter uma metralhadora a postos embaixo da minha mesa. 

— Então, quem foi a felizarda? – Ele entra jogando papéis em minha mesa e se sentando na cadeira a frente. 

— Onde você se meteu? – Ele faz sinal negativo com o dedo indicador. 

— Algumas escolhas temos que fazer sozinhos.  – Encaro Bernardo e encosto na cadeira, volto a descansar meus pés na mesa. 

— Ninguém. – O estado de graça abandona seu rosto, ele parece incrédulo. 

— Como assim ninguém, Ryan? Está me dizendo que no meio de tanta mulher você não escolheu ninguém? – Pressiona ele.

— Não. Se estivesse aqui saberia. Não é fácil, Bernardo, não posso sair escolhendo qualquer uma. –Tiro os pés da mesa quando ele faz uma careta de irritação. 

— Qualquer uma? – Ele ri com ironia e nega com a cabeça.— Você tinha o que? Quarenta mulheres? Mais de quarenta mulheres naquele auditório!  

— Quarenta mulheres que saíram do quinto dos infernos. Apenas quatro passaram no primeiro teste...— Puxo a cadeira giratória para mais perto da mesa e encaro Bernardo nos olhos.— Só quatro. – Repito pausadamente. 

— E por que não escolheu uma das quatro? 

— Helena não ia gostar delas.— Bernardo bufa e encosta na cadeira. 

— Isso vai ser mais difícil do que imaginei que seria. – Bernardo cobre os olhos.

Saio da empresa quase seis da tarde, uma tarde que eu poderia ter passado ao lado da minha mãe jogada no lixo. Entro no carro e fico parado alguns minutos com as mãos apoiadas no volante, constato que esse é o motivo da minha irritação, senti desde que acordei que essa seleção não ia dar em boa coisa, e o tempo é algo precioso agora. Em breve minhas tardes com Helena serão apenas lembranças. 

Decido não repetir isso, qualquer idéia para encontrar essa mulher teria que ser colocada em prática no período da manhã. 

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