Brasil é o meu sobrenome. Um homem chamado Brasil em um país de mesmo nome. Solomon Alberto Brasil, descendente de escravos. Meus bisavós nasceram dentro de uma senzala. Não sei quase nada sobre eles. Apenas histórias, lendas, mitos. Todo registro se perdeu. Meus avós já eram alforriados, trabalharam em lavouras, em um esquema que pouco diferia de escravidão. Comeram o pão, aquele famoso, bem amassado, duro e seco. Vidas tão áridas quanto as terras que eles cultivavam.
Meus pais são nordestinos. Cresceram em Pernambuco. Ainda jovens, desceram ao Paraná, em busca de oportunidades. Encontraram subempregos, vilas periféricas e sentiram fome. Além da fome que atacava o estômago, havia o preconceito que atacava a alma. Talvez isso fosse o pior.
Eram lutadores. Melhor dizendo, são até hoje, estejam onde estiverem. Eu sinto que eles estão vivos e bem, apesar das saudades. Acredito que irei reencontrá-los algum dia e em algum plano, que não aquele onde estão, nem esse onde estou agora.
O que é a vida, senão uma sucessão de eventos nem sempre explicáveis? Não quero bancar o filósofo, mas quando vivemos coisas que quase ninguém mais vive, é inevitável “viajar”. E viajar pode significar atravessar eras e épocas diferentes, sem ter consciência disso. Nunca fui ateu, mas tampouco me importava com religião. Um católico não-praticante, admirador do sincretismo bonito e colorido do catolicismo com ritos afro-brasileiros.
Fui um jovem razoavelmente feliz, moleque, da rua. Subia em árvores, andava de skate e carrinho de rolimã, nunca tive videogames e adorava namorar as garotas do bairro nas festinhas de fim de semana. As dificuldades diárias eu tirava de letra. Meus pais batalhadores faziam o impossível para não deixar faltar comida. Eu tinha um irmão mais velho, que começou cedo a ajudar em casa, e uma irmã mais nova, que pouca infância teve para manter a casa em pé. Eu fazia meus “rolos”, vendia, trocava, comprava, negociava, e conseguia pelo menos não atrapalhar a família. Dona Zilma e Seu Nelson eram duros, mas transpiravam amor. Nunca me senti humilhado por eles. Eram justos, corretos, e as relações em casa eram bastante boas.
Nossos problemas eram financeiros, mesmo. Estudei a vida toda em escola pública, em São José dos Pinhais (cidade localizada na região metropolitana de Curitiba), e foi no fim do Ensino Fundamental que conheci aquela que se tornaria minha esposa anos mais tarde. Não tínhamos mais de quinze anos.
Ela era uma jovem muito bela e diferente, uma beleza talvez exótica. Morena clara, olhos verdes, cabelos cacheados à altura dos ombros, um olhar firme e marcante. Bastante desenvolta, tinha uma segurança natural de quem já nascera daquele jeito. O nome dela? Diane Ravel. Filha de missionários franceses, que vieram ao Brasil em missão no fim dos anos 70. Eles trabalhavam em áreas indígenas no interior do Paraná, e a pequena Diane os acompanhou desde o nascimento. Ela estudou em escolas indígenas até os doze anos, e ainda aprendeu a ler e escrever em português e francês. Até hoje acho que foi o biquinho dela dizendo “mon amour” que me conquistou. Embora nascida no Brasil, em meio às missões, o biquinho era bem francês.
As circunstâncias de nosso encontro foram inusitadas: eu conhecia Diane somente de vista até aquele momento. Estava jogando futebol com meus colegas no intervalo entre as aulas, quando cometi uma falta em um adversário. A falta não foi tão dura, mas ele e mais dois jogadores vieram para cima de mim, proferindo uma série de ofensas, das quais lembro apenas das que realmente me afetaram: “preto vagabundo”, “preto nojento”, “favelado de merda”. Fiquei atordoado e sem ação, pois até então não sentira de fato o preconceito.
Diane ouviu os xingamentos e chegou na “voadora” (moral) para me defender, detonando os rapazes e me puxando da quadra. Levou-me à Direção, onde me fez denunciar a situação. Amigos do meu time tinham partido para a briga com os três agressores, mas à essa altura a conversa já tinha atingido a esfera administrativa. No fim, o diretor exigiu que eles se desculpassem comigo, o que fizeram, sem tanta sinceridade, mas não houve nenhuma outra consequência. Nem uma mera suspensão, como Diane tinha sugerido (exigido).
Assustado com tudo aquilo, fui para casa pensando na forma como fora tão prontamente defendido pela bela garota com quem eu nunca tinha conversado.
Quando ela contava treze anos, seus pais se mudaram para a região de São José dos Pinhais, onde passaram a trabalhar com comunidades carentes locais. Um trabalho mais localizado. Diane diz que fizeram isso em função dela, para que pudesse estudar e ter uma certa estabilidade, e não ficar andando de comunidade em comunidade. Fato é que ela não teve a menor dificuldade de adaptação e sempre foi muito inteligente. Em pouco tempo, era líder de turma. E adorava peitar o diretor. Era bocuda, sabia fazer política, e não costumava pedir: exigia. Puxou pelos pais…
Ela é um ano mais nova que eu. Nós nos conhecemos na oitava série, fim do ensino fundamental, em 1997. Eu havia reprovado o sétimo ano, mas ela nunca teve sequer uma nota vermelha.
O primeiro olhar que ela direcionou à minha pessoa me derrubou. Foi direto e quente. Nunca esquecerei. Nem nas próximas vidas, imagino. Eu gostava de chamá-la de Princesa Diane, no que era prontamente rechaçado: “princesa, não. Guerreira Diane!”. Eu achava graça e fazia mais para importuná-la, mas ela tinha razão. Uma guerreira sim, e nunca entrava em uma guerra para perder. O problema é que não temos controle de tudo. Um dia somos derrotados…
Começamos a namorar menos de um mês depois de nos conhecermos, no início do ano letivo de 97. Uma das coisas que me marcaram é que, diferente de dois namoros anteriores em que fui vítima de racismo por parte da família das garotas – embora não tivesse muita consciência disso na época –, não tive problemas com os pais de Diane. Afinal, a mãe dela era branca, e o pai, negro, um tom de pele mais escuro que o meu. Devo dizer que meu sogro é uma das pessoas mais incríveis que tive a oportunidade de conhecer e conviver. Dono de um sorriso esplendoroso, presença física marcante, barulhento, mas calmo, muito calmo. A voz tonitruante de quem sabe o que está fazendo. Em nenhum momento eu senti insegurança no homem.
Eu fui o primeiro e único namorado de Diane. Tudo no ritmo dela. Não me precipitei, pois estava mesmo apaixonado. Deixei as coisas rolarem livremente, e quando aconteceu… Bem, foi um desastre, mas isso não vem ao caso. A partir da segunda, foi só alegria e a paixão se tornou cumplicidade. Os pais dela aceitaram muito bem o namoro, mesmo sendo o primeiro da única filha. Eles não tinham o apego típico das pessoas medrosas. Décadas vivendo vidas alheias em comunidades tão díspares os tornaram resistentes a crises de ciúmes ou síndromes de ninho abandonado. Sorte minha.
Eu não era, nem jamais fui muito da luta. Não que não me importasse, ou que não concordasse. Apenas era meu jeito de ser, tranquilo. Nunca gostei de conflitos e assumo que não levo jeito para lidar com eles. Por vezes, em situações negativas, simplesmente me entregava às corredeiras e rumava em direção à cachoeira, para descer passivamente rio abaixo, estatelando-se nas pedras lá embaixo. Nesses momentos é que Diane lutava por mim, para mim e por nós. Ela era particularmente apaixonada por uma música do Raul Seixas, chamada “Tente Outra Vez”. Era o seu mantra. Em situações difíceis, costumava cantar a canção, rodopiando pela sala ou onde estivesse, com seu sorriso franco e belo, a boca escancarada cheia de lindos dentes.
Mas o tempo passou. Esse é o problema do tempo. Ele passa. E a gente nem sempre acompanha. Casamos novos. Eu tinha apenas 19 anos. Ela, 18. Entramos juntos na faculdade. Ela fez Sociologia. Eu embarquei na Administração e me tornei vendedor. Tínhamos lá nossas divergências ideológicas. Às vezes acho que ela esperava muito mais de mim. Eu só queria viver a minha vida em paz, sem me incomodar com mais nada, se tivesse comida na mesa. Ela queria mais. Ela queria arte e diversão. Talvez esse tenha sido meu maior erro. Não ter dado a devida atenção à arte.
Quatro anos após o casório, recebemos nossa primeira filha, batizada Niara Ravel Brasil. Niara é um nome lindo. Foi escolha da Diane. É um nome de origem africana, que significa “aquele que tem grandes propósitos”. Ela tinha cinco anos quando nos vimos pela última vez, em uma lanchonete de beira de estrada…
Eu não sei dizer onde minha vida começa. Se no meu nascimento (ou concepção), ou se naquele dia fatídico em que entramos numa lanchonete, durante uma viagem, para descansar, comer alguma coisa, e relaxar depois de mais uma discussão ríspida.Eu tinha 28 anos. Teoricamente, tínhamos viajado para comemorar nove anos de casados. Passamos dois dias em Foz do Iguaçu. Dois dias bizarros. Originalmente, passaríamos uma semana. Mas Diane e eu não estávamos tão conectados quanto gostaríamos. Ou quanto eu gostaria, ao menos. Não posso falar por ela.Ela era professora de Sociologia no ensino médio, e estava cogitando fazer Mestrado na área. Nas horas vagas, era anarquista profissional, participava de todas as manifestações possíveis, e fazia questão de estar na linha de frente dos protestos. Admiro isso nel
… Até acordar em uma cama de hospital. Sim, era uma cama de hospital. Roupa de cama toda branca, as paredes também brancas, um saquinho de soro fisiológico – ou algum outro remédio – pendurado ao lado da cama, ligado ao meu braço direito, uma das pernas para cima, toda enfaixada, pendurada, como naqueles desenhos animados que eu assistia quando criança. Não fazia a mais remota ideia de como havia parado ali. Tentei mover os braços, sem sucesso. Dor. Mal conseguia abrir um dos olhos. Aparelhos por todos os lados. Uma enfermeira se aproximou:— Bom dia, senhor Solomon, vejo que acordou. Vamos tomar uma sopinha? — Lançou-me um sorriso radiante. Tentei falar, não consegui. Não saía som, e de qualquer forma, doía demais. Dúvidas, dúvidas, muitas, infinitas (multiverso). Algumas palavras vinham à mente, como se ditadas por outra voz
Eu estava em Curitiba. Era a Curitiba de sempre, mas… também não era. Subitamente, eu me vi morando com meus pais. Eu era um vendedor, continuava sendo um vendedor, e deveria vender coisas! Mas eu já não tinha mais a mínima ideia do que fazer ou como proceder, pois, apesar de ser a mesma cidade, não podia conceber uma vida sem minha família, em um ambiente em que ninguém parecia saber que eu tinha uma família. Meus pais eram meus pais, mas de alguma maneira, não pareciam meus pais, pelo simples fato de terem eliminado de suas memórias os últimos 10 ou 12 anos de minha vida. Nada fazia sentido. Eu quase tive ímpetos de voltar ao hospital, onde ainda parecia estar em uma espécie de bolha protetora. Uma vez na realidade, a dor é mais forte. Precisava trabalhar para conseguir dinheiro. Voltei, então, a contragosto, para o serviço. Eu era representante de vendas d
Acordei sobressaltado e suando em bicas. Sonhei com Diane, que gritava por mim de um lugar muito distante. Era uma espécie de abismo, onde ela caía e ficava cada vez mais distante, como se estivesse sendo sugada pelo ralo. Parecia tão real que, mesmo acordado, ainda ouvia nitidamente a voz dela. Real demais. Mais que qualquer sonho que eu já tivera. Era madrugada. Estava em um hotel bem simples em Umuarama. Pulei da cama barulhenta e caminhei até a janela. Lua cheia, bela, profunda. Fiquei pensando se aquele satélite tão brilhante era o mesmo que eu conhecia. Nunca a vira tão viva. Parecia dialogar comigo. Um silêncio infinito, contrastando com meu sonho ainda vívido, lívido, assustador. Em algum sentido, porém, em algum lugar, eu sentia que o sonho podia ser uma espécie de comunicação. Amit era um mist&eacu
Digamos que você teve um “pequeno azar”, Amit disse. Tem que ser muito cínico para falar em “pequeno azar” numa situação dessas. Eu simplesmente (segundo ele, claro) atravessei uma espécie de portal entre-mundos e vim parar nessa cópia de mundo. Eu não entendi porra nenhuma do que ele me contou, aliás. Eu atravesso um portal e venho parar em um mundo idêntico ao meu, onde apenas minha esposa e filha não existem? E por que não há “outro eu” aqui? O cara queria mesmo me convencer de que tive um “pequeno azar”? A desgraça é que eu não tinha mais ninguém com quem contar. — Sim, um pequeno azar. Bem pequeno, claro. Acredite, em situações semelhantes, muita gente teve destinos bem piores. Vai me dizer que nunca ouviu falar no Triângulo
Havíamos rodado a esmo, Amit e eu, até ele desaparecer. Segui em frente e parei em Francisco Beltrão. Dei entrada em um hotel simplório, quarto 32. O local estava quase vazio, a não ser pela presença de dois homens que pareciam beirar os cinquenta anos, sentados em cadeiras de vime, bebendo cerveja, quase em frente ao hotel. Não pude deixar de ouvir que falavam de uma cidade misteriosa, próxima à Fazenda Luar*, que aparecia para alguns viajantes. Àquela altura eu não duvidava de mais nada, e foi isso que me fez querer distância da tal Fazenda, mas puxei uma cadeira e conversei um pouco com os locais enquanto esperava a noite chegar. Contaram alguns causos da região, e um deles, não sei se falavam para me assustar, dava conta de um rapaz chamado Alex que, naquele mesmo ano, 2010, meses antes, dormira exatamente no quarto 32 daquele hotel e fora encontrado caminhando à noit
Acordei no dia seguinte, ainda sentindo alguma fraqueza, mas me sentindo bem por ter ido tão longe na comunicação. Quem sabe, com treino e disciplina, pudesse evoluir. Eu sabia que o caminho seria longo e que talvez nunca conseguisse voltar. Era difícil me conformar com a situação, mas precisava mentalizar a possibilidade como algo concreto. Criar expectativas nunca ajuda. Não que eu não soubesse disso. Mas precisaria aprender a me virar melhor, a lutar por alguma coisa. Agora eu tinha um motivo muito forte para lutar. Diane me cobrava por não saber lutar, por ser muito passivo. Admito que eu tinha mesmo problemas com isso. Minha passividade acabava comigo. E meu espírito ia abaixo com facilidade. O medo e o sentimento de autopreservação me dominavam. A vitória obtida na comunicação, mesmo que curta e quebrada, me davam ânimo para tentar mudar. Porque dependia de mim. Eu pr
Os remédios dopantes dopavam mesmo. Minhas lembranças da clínica são muito difusas. Mas foi lá que reencontrei Amit, logo após uma crise que me fez ser praticamente amordaçado, com quatro funcionários me segurando, quando saí chutando e gritando e batendo com vontade a cabeça na parede. Eu só queria atravessar a parede e voltar à minha vida. Quando fui atirado de volta na cama, com violência e sem sutileza, vi, de relance, um sorridente Amit. Filho da mãe! Parecia gostar muito de me ver nas piores situações. Engraçado que quando precisava dele, não me aparecia. O problema é que aquela não era uma boa hora para visitas, pois os remédios me fizeram desmaiar bem rápido. Mas ele ainda estava lá quando finalmente acordei (depois de não sei quanto tempo, pois perdera a noção do tempo na clínica… N