Acordei no dia seguinte, ainda sentindo alguma fraqueza, mas me sentindo bem por ter ido tão longe na comunicação. Quem sabe, com treino e disciplina, pudesse evoluir. Eu sabia que o caminho seria longo e que talvez nunca conseguisse voltar. Era difícil me conformar com a situação, mas precisava mentalizar a possibilidade como algo concreto. Criar expectativas nunca ajuda. Não que eu não soubesse disso. Mas precisaria aprender a me virar melhor, a lutar por alguma coisa. Agora eu tinha um motivo muito forte para lutar. Diane me cobrava por não saber lutar, por ser muito passivo. Admito que eu tinha mesmo problemas com isso. Minha passividade acabava comigo. E meu espírito ia abaixo com facilidade. O medo e o sentimento de autopreservação me dominavam. A vitória obtida na comunicação, mesmo que curta e quebrada, me davam ânimo para tentar mudar. Porque dependia de mim. Eu pr
Os remédios dopantes dopavam mesmo. Minhas lembranças da clínica são muito difusas. Mas foi lá que reencontrei Amit, logo após uma crise que me fez ser praticamente amordaçado, com quatro funcionários me segurando, quando saí chutando e gritando e batendo com vontade a cabeça na parede. Eu só queria atravessar a parede e voltar à minha vida. Quando fui atirado de volta na cama, com violência e sem sutileza, vi, de relance, um sorridente Amit. Filho da mãe! Parecia gostar muito de me ver nas piores situações. Engraçado que quando precisava dele, não me aparecia. O problema é que aquela não era uma boa hora para visitas, pois os remédios me fizeram desmaiar bem rápido. Mas ele ainda estava lá quando finalmente acordei (depois de não sei quanto tempo, pois perdera a noção do tempo na clínica… N
Todas as noites, antes de dormir, eu olho para a cama e não vejo mais a razão da minha vida. Todos os dias eu acordo (quando consigo dormir) e não vejo, quando abro os olhos, aquele com quem pretendia envelhecer. Não sinto seus braços me enlaçando à noite. Não ouço seus passos arrastando pelo quarto em direção ao banheiro. Todo dia eu revivo aquele momento. Todo dia eu olho para cima e me pergunto o que fiz para merecer isso. Eu olho e me pergunto se existe justiça. Se existe lógica na vida, se existe uma luta pela qual valha mesmo a pena lutar, ou só lutamos quando temos o que amamos. Eu sempre fui vista como uma pessoa lutadora. Que, mesmo na derrota, erguia a cabeça e seguia em frente. Eu não ergo mais a cabeça. Não sei como é isso, não sei como reagir, e nem nossa filha consegue me dar suficiente razão para continuar.&nb
“Quero estar com você na alegria e no prazer / Se vier a escuridão nós então nos daremos as mãos / E parceiros na estrada da vida seremos a luz” (“Juro”, de Almir Sater & Renato Teixeira)Eu podia me desapegar de bens materiais, do emprego, dos meus DVDs e de tudo o mais que já não tinha, e não me fazia falta. Só não conseguia desapegar de meus amores mais profundos, a doce Diane e a linda Niara, por quem minhas lágrimas rezavam todas as noites. Era grande a minha vontade de entrar em contato, mas achava que não a ajudava fazendo isso. Com Niara eu sequer cogitava, pois tinha certeza de que não seria nada saudável para uma criança. Por maior e mais dolorida que fosse a saudade. Não havia certeza de que eu pudesse voltar, e Diane precisava retomar a vida, pela nossa pequena, e manter a cabeça no lugar. Talvez a maior prova d
Desde o ocorrido, nunca mais fui a mesma. Abandonei os movimentos sociais, abdiquei de meu posto como presidente de um sindicato de trabalhadores, tornei-me reclusa, perdi amigos, quase perdi o emprego (pois a paciência do chefe tinha prazo de validade), e sinto que estou perdendo minha filha. Quando ela mais precisa de mim, menos presente estou. Mesmo passando boa parte das horas de meus dias com ela, estou distante. Nunca pensei que eu fosse tão dependente de alguém, e sei hoje que sou menos forte do que gostaria. Uma guerreira fracassada. A guerra começou perdida. Eu, que sempre amei a noite, agora sinto angústia quando ela se aproxima. Eu, que sempre combati a passividade e rendi homenagens ao espírito de luta, descobri que todo mundo tem um limite. O meu era a falta que eu sentia de Solomon, e a forma como ele se foi. Senti raiva por muito tempo, raiva por ter sido abandonada, raiva de mim mesma por me considerar culpada, muita raiva del
Um ano depois, março de 2012 O tempo passava. Eu não sentia. Nem me importava. Estado de mendicância. Abandonei tudo, fui viver nas ruas. Não queria ser incômodo para ninguém. Meus pais sofreram, mas jamais entenderiam minhas razões. Eu precisava estar só. Eu e o mundo. O mundo e eu. O mundo em seu esplendor, em sua verdade, em sua crueza. O mundo real, como ele é. Sem maquiagem. Eu comia muito pouco e bebia muita água. Tomava banho nas praças públicas (quando deixavam, pois nem sempre os guardas permitiam), dormia ao relento e observava. Observava o movimento das pessoas, dos animais, pombos e cães, a fauna urbana, os prédios onde a vida deixava de acontecer, onde as pessoas se alojavam durante boa parte de suas existências deveras inúteis. Um dia, outro e mais outro, serviços repetitivos, para
Depois de tanto tempo, eu ainda sonho com ele. Quase todas as noites. Mas não são aqueles sonhos realistas que eu tive, não tenho mais aquela certeza de que conversei mesmo com ele. Às vezes eu acho que delirei, no auge do desespero, e acabei vendo e ouvindo coisas. Eu sinto falta daquele contato. Era tão idílico, tão lindo! Era algo entre o real e o onírico, mas eu nunca estava dormindo. Como se sonhasse acordada, sonhasse lindamente. E que bom seria se a vida fosse um eterno sonho. Eu que sempre tive sonhos, metas, ideais, agora vivo querendo viver em um sonho. Dentro de um sonho, como se nada mais importasse. E nada mais importa, mesmo. Por mais que eu consiga seguir a minha vida, não é, nunca será a mesma coisa. Algo se quebrou dentro de mim, e isso nunca vai passar.Eu queria voltar no tempo. Eu sempre acreditei em tantas coisas… Será que ele está bem? Para onde foi? Por que
Maltrapilho, descuidado, barbudo e empoeirado, entrei numa lanchonete bolorenta e pedi um sanduíche preguiçoso, tão preguiçoso quanto os atendentes. Aguardei numa cadeira de plástico vermelha, cujo contraste com o piso cinza e irregular demonstrava a ausência de cuidado do proprietário. Minutos depois (muitos minutos, na verdade), surgiu o sanduíche solicitado, trazido por uma garota sorridente (enfim alguém sorria). A garota se sentou ao meu lado. — Eis o seu pedido. Qual o seu nome, senhor? — perguntou-me, ainda mais sorridente (o mais estranho é que o sorriso exalava sinceridade). — Um dia fui chamado Solomon. Hoje não sei se importa ter um nome. Mas obrigado por perguntar.— Importa sim, senhor Solomon. Um belo nome, aliá
Pode me chamar de louca ou do que for, mas eu tenho certeza de que o vi novamente. E foi horrível, pois tentei falar com ele… e ele desapareceu! Que sina desgraçada a minha! Tanto esforço para colocar minha vida nos trilhos, e isso me acontece, aumentando meu desespero e me causando remorso! Eu estava tentando me reestruturar, com a ajuda do Thiago, que tem sido um anjo pra mim, mas essa aparição dele me fez desabar, e Thiago não entende como me sinto. Pra tornar as coisas mais difíceis, a Niara não gosta do Thiago, e ele também não se esforça tanto quanto eu gostaria. Ela é só uma criança, com um trauma terrível, e preciso de alguém que me ajude a curá-la, e não a maltratar ainda mais a vida dela. Não sei se ainda quero ver Solomon dessa forma tão estranha, em sonh