Desde o ocorrido, nunca mais fui a mesma. Abandonei os movimentos sociais, abdiquei de meu posto como presidente de um sindicato de trabalhadores, tornei-me reclusa, perdi amigos, quase perdi o emprego (pois a paciência do chefe tinha prazo de validade), e sinto que estou perdendo minha filha. Quando ela mais precisa de mim, menos presente estou. Mesmo passando boa parte das horas de meus dias com ela, estou distante. Nunca pensei que eu fosse tão dependente de alguém, e sei hoje que sou menos forte do que gostaria. Uma guerreira fracassada. A guerra começou perdida. Eu, que sempre amei a noite, agora sinto angústia quando ela se aproxima. Eu, que sempre combati a passividade e rendi homenagens ao espírito de luta, descobri que todo mundo tem um limite. O meu era a falta que eu sentia de Solomon, e a forma como ele se foi. Senti raiva por muito tempo, raiva por ter sido abandonada, raiva de mim mesma por me considerar culpada, muita raiva del
Um ano depois, março de 2012 O tempo passava. Eu não sentia. Nem me importava. Estado de mendicância. Abandonei tudo, fui viver nas ruas. Não queria ser incômodo para ninguém. Meus pais sofreram, mas jamais entenderiam minhas razões. Eu precisava estar só. Eu e o mundo. O mundo e eu. O mundo em seu esplendor, em sua verdade, em sua crueza. O mundo real, como ele é. Sem maquiagem. Eu comia muito pouco e bebia muita água. Tomava banho nas praças públicas (quando deixavam, pois nem sempre os guardas permitiam), dormia ao relento e observava. Observava o movimento das pessoas, dos animais, pombos e cães, a fauna urbana, os prédios onde a vida deixava de acontecer, onde as pessoas se alojavam durante boa parte de suas existências deveras inúteis. Um dia, outro e mais outro, serviços repetitivos, para
Depois de tanto tempo, eu ainda sonho com ele. Quase todas as noites. Mas não são aqueles sonhos realistas que eu tive, não tenho mais aquela certeza de que conversei mesmo com ele. Às vezes eu acho que delirei, no auge do desespero, e acabei vendo e ouvindo coisas. Eu sinto falta daquele contato. Era tão idílico, tão lindo! Era algo entre o real e o onírico, mas eu nunca estava dormindo. Como se sonhasse acordada, sonhasse lindamente. E que bom seria se a vida fosse um eterno sonho. Eu que sempre tive sonhos, metas, ideais, agora vivo querendo viver em um sonho. Dentro de um sonho, como se nada mais importasse. E nada mais importa, mesmo. Por mais que eu consiga seguir a minha vida, não é, nunca será a mesma coisa. Algo se quebrou dentro de mim, e isso nunca vai passar.Eu queria voltar no tempo. Eu sempre acreditei em tantas coisas… Será que ele está bem? Para onde foi? Por que
Maltrapilho, descuidado, barbudo e empoeirado, entrei numa lanchonete bolorenta e pedi um sanduíche preguiçoso, tão preguiçoso quanto os atendentes. Aguardei numa cadeira de plástico vermelha, cujo contraste com o piso cinza e irregular demonstrava a ausência de cuidado do proprietário. Minutos depois (muitos minutos, na verdade), surgiu o sanduíche solicitado, trazido por uma garota sorridente (enfim alguém sorria). A garota se sentou ao meu lado. — Eis o seu pedido. Qual o seu nome, senhor? — perguntou-me, ainda mais sorridente (o mais estranho é que o sorriso exalava sinceridade). — Um dia fui chamado Solomon. Hoje não sei se importa ter um nome. Mas obrigado por perguntar.— Importa sim, senhor Solomon. Um belo nome, aliá
Pode me chamar de louca ou do que for, mas eu tenho certeza de que o vi novamente. E foi horrível, pois tentei falar com ele… e ele desapareceu! Que sina desgraçada a minha! Tanto esforço para colocar minha vida nos trilhos, e isso me acontece, aumentando meu desespero e me causando remorso! Eu estava tentando me reestruturar, com a ajuda do Thiago, que tem sido um anjo pra mim, mas essa aparição dele me fez desabar, e Thiago não entende como me sinto. Pra tornar as coisas mais difíceis, a Niara não gosta do Thiago, e ele também não se esforça tanto quanto eu gostaria. Ela é só uma criança, com um trauma terrível, e preciso de alguém que me ajude a curá-la, e não a maltratar ainda mais a vida dela. Não sei se ainda quero ver Solomon dessa forma tão estranha, em sonh
Joana era mais direta que Amit, mas eu sentia que ela não me dizia tudo. Porém, era uma companhia agradável, e me ajudava a me conhecer melhor e redirecionar minhas ações. Entendi que não deveria tentar me comunicar mais com Diane, pois eu impedia que ela se conformasse com meu desaparecimento e pudesse levar a vida adiante. Intimamente eu sabia ou imaginava isso, mas não aceitava e ninguém me dissera, até então, que seria o mais adequado: evitar contato.Era duro para mim. Eu me sentia mais desnorteado ainda, sabendo que fazia mal à Diane, insistindo com os contatos. Estar longe dela também me fazia mal, mas não podia conceber tanto egoísmo em minhas atitudes. Então, de fato, decidi não tentar mais, após a última e frustrante tentativa. Continuei perambulando pelas ruas. Joana me ofereceu um colchão e um chuveiro em sua pequena casa. Aceitei o
Não sei qual dos dois estava mais estupefato pelo encontro inesperado, se eu ou minha pequena francesa. Parecia um sonho (ou pesadelo), mas as cores e cheiros entregavam o jogo: estava acontecendo. Diane estava morrendo naquela maca, enquanto sua (alma? consciência?) flutuava assustada na penumbra da paisagem branca. Eu estabelecia um contato exatamente no momento de sua morte. — Solomon… — Ela disse, em tom choroso. — O que foi que eu fiz, Solomon? O que foi que eu fiz, meu Deus do céu?— Eu não sei, Diane… Eu é que te pergunto! Como eu vim parar aqui, e o que você tá fazendo nesse lugar?— Eu… eu me matei! Eu acho que me matei… eu estou morta? É isso? Isso é a morte? Mas se for, como eu tô te vendo agora, me explique, por favor, eu vou ficar louca, eu só queria me
— Meu nome é Joana. Eu estou nesse plano de existência há mais de 15 anos, e aprendi muito. Meu aprendizado começou no plano anterior, pois eu estudava magia. Vivi de forma bem intensa, não posso reclamar. Eu aprendi o valor da jornada naquele plano, e em outros anteriores. Mas acho que sou estradeira desde os primórdios. Devo ter sido uma espermatozoide viajante. É a minha sina. A estrada é a minha vida. E gosto de gente. Adoro pessoas, adoro o conhecimento, adoro, adoro, adoro muito tudo isso! Amo a vida, e quando “morri” do lado de lá, entrei em pânico, achando que era o fim de tudo. Foi quando percebi que era apenas o início. E entendi que não existe morte. Existem planos de existência, e este em que estamos, Solomon, é um estado transitório. Que pode ser tão ou mais longo que uma vida bem vivida.&n
Eu nunca vou entender o que houve com Solomon, mas hoje eu sei que ele está bem, pois eu o vi quando estava morta. Eu tive uma EQM (Experiência de Quase-Morte). Os médicos ouviram a minha história e me olharam como se eu fosse louca. Mas eu sei, dentro de mim, eu sei que o que aconteceu foi real, que eu vi Solomon, falei com ele, e ele me salvou. Ele me fez recuar e perceber o quanto estava errada em abandonar minha vida e deixar Niara e meus pais nesse mundo ingrato, sozinhos. Não, não, eu não tenho esse direito, e agradeço ao meu marido por me dar essa lição, em circunstâncias tão estranhas. Hoje eu vejo a vida de forma muito diferente. Eu sei que tirar a minha vida não seria libertador, não me jogaria em escuridão e sono eterno. Isso aqui é só uma passagem, mais uma etapa. Sendo assim, &eacut