Sicário: O Escultor de Brume Peak
Sicário: O Escultor de Brume Peak
Por: QiShuang
Capítulo 01

Estacionei em frente a delegacia. A escadaria se erguia imponente e suspirei ao ver doze policiais no topo, esperando minha chegada. Ajeitei a gravata no pescoço e passei as mãos na lateral do cabelo loiro certificando-me de que estavam rigidamente puxados para trás em um rabo de cavalo. Peguei a pasta de trabalho, de couro caramelo e saltei da pickup aprumando o peito com orgulho.

Os policiais fizeram cara de desgosto. É, eu os compreendo. Ninguém trabalha dura esfolando a bunda no asfalto para ver um criminoso como eu solto por aí, exibindo um distintivo de assessor forense. Mas o distintivo era meu.

Subi todos os degraus, um policial cujo uniforme exibia os dizeres H. Cazal cuspiu no chão perto dos meus sapatos engraxados. Troquei olhares com meu belo Victor, que usava um colete preto escrito “policial” em amarelo nas costas. Seu rosto estava cansado, de quem ficou até de madrugada trabalhando na cena do crime e catalogando provas. Vi quando seus olhos desconectaram do meu e ele viu o oficial que adentrava do meu lado.

— Que ótimo. — Cuspiu, virou a cara não querendo enfrentar a realidade e saiu de perto do bando.

No topo das escadas o detetive encarregado da sessão de homicídios e um antigo amigo — embora ele não considere amizade por mim — descruzou os braços e encarou o homem ao meu lado.

— De volta à Brume Peak. Os caras estão chateados. — E não estendeu a mão para cumprimentar meu parceiro de trabalho. — Chegou em um péssimo momento Remy.

Remy Bergeron, o homem mais sexy, cheiroso e lindo que já tive o prazer de levar para cama. Embora não fosse um assassino renomado como eu, Remy tinha sua própria fama e foi expulso de Brume Peak passando uma temporada de quatro anos em South Meadow onde apenas colecionou títulos e medalhas de honra por desvendar os mais insolúveis mistérios. O maldito tinha um dom capaz de deixar o meu pau duro, sem contar a inteligência. O rostinho simétrico de anjo não o salvava do ódio do departamento policial de Brume Peak e tenho por mim que muitos daqueles que o detestavam, o faziam por se sentir atraídos por ele da mesma forma que eu era. Alto, magro e com pescoço longo, Remy tinha os cabelos nos ombros castanhos e lisos, olhos azuis sedutores e extremamente sério. Aliás, um olhar desse cara e um soldado caía no chão, abatido, morto por dentro. Ninguém queria ouvir broncas vindas do detetive mais novo — e mais gato — do departamento.

Ele colocou a língua sobre os dentes, saboreando a carranca de mau-humor de Dylan Vasseur. O homem continuou:

— Tenho dois corpos fodidamente costurados no necrotério, uma pilha de depoimentos das mais loucas testemunhas, mais de cem horas de vídeo de câmera de vigilância… — Dylan listou seus problemas, nenhum deles me interessava.

— E ainda assim eu recebi uma ligação. — Remy o desmontou na hora. Dylan não soube o que responder e apenas calou-se. — Eu trouxe reforços, Dylan, relaxe.

— Sim, Louic é imprescindível na sua opinião, não? — O moreno tinha os olhos sérios em mim. Ele me julgava mal, sempre, me odiava, mas eu apenas me divertia com o tom de ciúmes na sua voz.

Além do mais, saber que Remy não viria resolver um caso em Brume Peak sem me chamar era algo que me deixava animado e feliz.

— Não estamos dos lados opostos e não vim para tomar o seu caso. Claro que se lembra de Yvonne Valleé.

— Sim, eu me lembro dela. — Os olhos de Dylan caíram sobre a moça de sobretudo claro e crachá escrito “detetive” preso na lapela. Ela exibia aquela fotografia ¾ como se fosse um troféu. Acho que se eu tivesse um distintivo desses eu faria a mesma coisa, especialmente se fosse uma loira gostosa no meio de um bando de machos distribuindo testosterona com rivalidade. Eu sapatearia de salto na cara deles, como sei que Yvonne queria fazer, embora ela nunca fosse dizer.

— A sua disposição, Detetive Vasseur. — Yvonne cumprimentou o chefe da operação com um sorriso quase genuíno.

— Você é sempre bem-vinda Yvonne, não posso dizer o mesmo de Louic.

— Ah, sim, você tem um caso bem pessoal comigo mesmo. — Eu provoquei.

Vi o punho de Dylan se fechar e imaginei que ele me daria mais um de seus socos de boas vindas. Tornou-se um hábito. O homem era explosivo e não se segurava, o que eu usava sempre ao meu favor, diga-se de passagem.

— Bergeron! Louic! Na minha sala agora. — Ouvi a voz do Comissário gritar dos fundos da pequena delegacia. — E Valleé, antes que eu me esqueça.

Remy sorriu para mim e tomou a frente, passando por Dylan. Eu tive que desviar da muralha de braços cruzados e cara de poucos amigos, mas Yvonne não encontrou a mesma resistência. Outros policiais estavam lá dentro, cuidando da burocracia e outros casos que não necessariamente eram sobre homicídios e não gostaram da minha presença também.

Adentrando o corredor, passei por uma sala de baias, vazias, visto que os policiais estavam em grande parte do lado de fora. Remy parou diante de uma porta de vidro onde estava escrito “Comissário Gaspard Michard”, segurou a maçaneta e abriu.

— Com sua licença, senhor.

— Que bom que vieram. Sentem-se, por favor.

Só haviam duas cadeiras, então aproximei-me de uma e puxei para Remy. Ele hesitou quando entendeu o que eu estava fazendo, mas sentou-se, ajeitando o coldre debaixo do braço e por dentro de sua roupa. Valleé sentou-se na outra cadeira e o Comissário continuou sentado. Eu fiquei com as mãos na poltrona de Remy.

— Agradeço por responderem tão depressa ao chamado. Como sabem, temos poucos detetives nesse posto e nenhum especializado como vocês. — O homem de pele escura como a noite ergueu as mãos apontando para nós. — E mais uma vez, parabenizo você, Valleé, com certeza South Meadow resplandece orgulho por tê-la como detetive na equipe.

— Estou honrada por aprender com o melhor. — Ela girou os olhos escuros sem maquiagem para Remy.

Apertei as mãos no assento da cadeira e vi que ela notou, erguendo o olhar para mim, quase ao mesmo tempo de Michard.

— Vamos direto ao assunto. Esse crime está perturbando a paz da cidade e nem preciso dizer que é impossível manter a mídia longe uma vez que o engraçadinho expôs o assassinato no meio da praça no centro da cidade.

— A que fica aqui perto, senhor? — Perguntei. — Não vi nada sobre isso na televisão.

— Talvez porque estivesse assistindo ao canal de esportes, Sr. Louic. — Remy inseriu, deslizando o dedo sobre a sobrancelha.

— Na verdade eu estava assistindo ao canal de sexo gay.

Michard pigarreou. Valleé arregalou os olhos, mas manteve a cara de megera desagradável de sempre e Remy prendeu a respiração para não gargalhar. Eu sei que ele adorou a piada.

— Um poema sobre o crime estava preso na testa da vítima com uma tachinha escolar. Era da própria vítima. — O Comissário juntou as mãos. — Janine Boutin trabalhava como recepcionista em uma clínica dentária, vinte e dois anos, juntando salário para sair da cidade e cursar faculdade de veterinária.

— Com licença senhor! — Valleé levantou a mão como se estivesse na escola. — Como identificaram a vítima? Eu vi as fotografias do corpo no jornal e é assustador, quem cometeu o crime desmembrou a vítima e recosturou seu corpo como se ela fosse uma aranha.

— Uma aranha? Que criativo! — Inseri. — Alguém deve ter reconhecido.

— Se a face dela estivesse intacta. O assassino a desfigurou com ácido. — Valleé inseriu, detonando com a minha teoria.

— Interessante como ele desumaniza as vítimas.

— Exatamente o meu ponto. — Remy concordou, endireitando-se na cadeira e jogando os cabelos para trás. Se de mim ninguém tomava credibilidade, dele era o reverso. Os olhos dos dois policiais na sala caíram sobre ele com curiosidade, antecipando uma dedução digna do Sherlock Holmes ou algum detetive muito foda da televisão. — Ele está se expondo, criando obras de arte.

— Eu não sei como vocês vão traçar o perfil desse maldito, mas eu o quero preso e rápido! — O Comissário bateu o punho fechado na mesa. Dava para ver o quanto o assunto o estressava. — A sala de reuniões será o QG de vocês, sei que trouxe um time, Remy, mas exijo que três dos meus homens trabalhem direto no caso. Dylan Vasseur, claro. Vocês escolhem os outros dois.

— Um deles tem que ser Noel Naudé. — Yvonne disse. Lembrei do loirinho, de olhos apertados, viciado em velocidade, que percorre a cidade em cima de uma moto. É, ele é bom. — E o outro pode ser…

— Aquele Cazal. — Adiantei-me. Qualquer um menos Victor, ou eu estaria fodidamente ferrado.

— Estamos definidos? — O Comissário olhou para Remy, esperando que ele aprovasse ou não as escolhas.

— É, que jeito. — Levantou-se e deixou a sala.

Pensando bem, acho que Remy estava mais desconcertado porque Dylan estaria no caso.

Quando deixou Brume Peak após desvendarmos os mistérios acerca do caso do “Médico e o Monstro”, Remy e Dylan brigaram feio. Sei disso porque os dois não têm se falado mais e Dylan nos afastou do caso, tomando todos os louros por prender os assassinos dos homicídios por decapitação. No entanto, eu tenho certeza que os motivos por trás dessa rachadura na amizade dos dois nada tem a ver com rivalidade profissional. Tem a ver comigo.

Eu e Remy nos envolvemos e foi bom para cacete. Ele tinha essa curiosidade mórbida sobre mim enquanto eu nutria uma enorme obsessão por ele, mas tão logo eu pude provar que era o assassino por trás da morte de seu irmão e, inclusive, revelei o paradeiro da ossada, Remy nunca mais me procurou, ou falou comigo. Ele me bloqueou em todas as suas redes sociais e devolveu todos os presentes e cartas que ousei enviar para sua caixa postal na delegacia de South Meadow.

Segui logo atrás do detetive de olhos azuis e vi quando ele entrou na sala de reuniões, colocando todo mundo que estava descansando lá para fora e exigindo os arquivos referentes ao caso. Valleé segurou no meu ombro:

— Esse será um longo trabalho.

— Nem me fale. — Retruquei olhando na direção da mulher. Um sorriso se formou em meu rosto. — Vou curtir cada segundo dele.

*

Uma vez que a sala de reuniões virou nosso local de trabalho, o lugar recebeu diversas caixas, computadores e um quadro para um mapa do crime. Fiquei mexendo nas tachinhas que usaríamos para pregar as fotos enquanto eu lia uma cópia do poema deixado pelo assassino:

De sensualidade esvoaçante

Pernas longas e braços envolventes

A teia tecia a moça

E ela tinha belos dentes”

— Quer um café? — A voz de Dylan chamou minha atenção e o vi debruçar-se sobre Remy, que tinha espalhado fotos por toda a mesa.

— Ahn, claro.

— Ainda toma com muito açúcar e canela?

— E leite de amêndoas.

— É como uma criança. — Cazal se espreguiçou em uma cadeira, soltando os depoimentos que estava lendo. Hector, como se chamava, era um homem baixo, de quarenta e poucos anos, cabelos cacheados e lábios finos. Acho que ele tinha o hábito de beber vinho, pois sua pele era naturalmente mais escura nos lábios. — Não tem nada útil aqui. Todos viram o corpo, ninguém viu o assassino.

— Ele estava lá. — Remy virou os olhos para ele e de repente, jogou em mim, como se precisasse de uma confirmação da minha parte. E eu amei que ele buscasse apoio nesse momento.

Eu era o único ali capaz de compreender a sua genialidade e os desejos bizarros do assassino, por isso, eu era o seu porto seguro.

— Um cara não esculpiria o corpo dessa forma, não o exporia no meio da cidade e não estaria lá para apreciar o sucesso de sua obra. — Confirmei.

O olhar de Remy amenizou, um leve sorriso querendo se formar em seus lábios, mas então, ele desviou os olhos de mim e ficou em pé:

— É claro que ele poderia ser qualquer um nesses depoimentos, visto que os policiais não fizeram as perguntas certas. E inútil ler, talvez na próxima.

— E você avisa só agora? — Naudé comprimiu a boca, formando um beiço de desgosto. O loiro de olhos apertados e barbudo, largou os papéis desordenadamente em cima da mesa.

Valleé se aproximou com a caixa dos depoimentos e tanto Naudé quanto Cazal começaram a colocar suas leituras lá. Ela tampou e colocou no chão, chutou para o lado com seus saltos altos.

— Estou pronta para discutir o perfil agora, se vocês tiverem. — Ela puxou uma cadeira e se sentou de um jeito elegante, fazendo os olhos escuros de Cazal brilharem de desejo. Eu conhecia aquele olhar de lobo, o mesmo que eu tinha quando via Remy. — Tracei pontos em comuns das duas vítimas.

— Eu tenho os laudos médicos que podem ajudar na análise forense. — Cazal buscou uma pasta.

— Eu os decorei. — Dylan voltou com duas canecas de café. Uma para si mesmo e a outra, estendeu para Remy, que assoprou o líquido antes de provar. — A costura é boa, mas os padrões são amadores, não é nenhum cirurgião, mas alguém que tem interesse em anatomia, ou não faria as incisões de forma correta e teríamos uma obra muito mais bagunçada. — O homem de cabelos curtos e arrepiados sentou-se ao lado de Naudé, que cheirava os próprios sovacos, não podendo ser mais desinteressado nos crimes. — A morte das duas vítimas é estrangulamento. Ele usa as próprias mãos.

— Claro que usa, quer tocar nas suas vítimas, são como massinha de modelar para ele. — Girei na cadeira, brincando. Todos me encararam firme, assustados, me comparando silenciosamente com o perfil do assassino. — Não, não fui eu, podem conferir com os dados da tornozeleira eletrônica, a propósito. Além disso eu seria muito menos imundo em meus métodos.

— Imundo? A pessoa por trás desse crime é limpa, não deixou rastros. — Cazal rapidamente retrucou.

— Talvez você não os veja… — Remy interrompeu, a caneca encostando nos lábios, avermelhando a pele com o calor da bebida. — Mas todo assassino em série possui um padrão e um método. Especialmente em crimes como esse. — Deu um gole. Soltou a caneca em cima da mesa ao lado das fotos e ninguém ousou interrompê-lo. — Podemos esperar por melhorias entre um crime e outro, inclusive, melhor identificá-las para traçar uma área de interesse, ou uma intolerância aos erros.

— Viu só! — Sorri, mantendo os braços cruzados. — A costura precisa de prática, mas eventualmente melhorará. — Eu disse. Os olhares voltaram esquisitos na minha direção. — Não me olhem assim, não pontuei o suficiente em medicina, Remy já me apontou o fato como meu maior erro.

Como em um jogo de tênis, os olhares voltaram para cima de Remy e senti um calor raivoso no olhar de Dylan. Ele detestava o fato de que eu e Remy conversamos, tivemos uma conexão e muito mais.

— Todos eles cometem erro. Ou se tornam arrogantes demais ou descontrolados. — E Remy olhava para mim ao dizer essas palavras. Senti azia na mesma hora. Desgraçado, não era um elogio.

— O perfeccionismo também é interior. Sanar desejos como esse pode se tornar um desafio e nunca ser suficiente. — Retruquei.

— Talvez eu deva dizer gananciosos. — Remy não desistiu. A língua afiada rolando entre os dentes, os olhos firmes em mim sem quebrar contato visual.

— Talvez você deva dizer, determinado.

— Maníaco. — Ele rangeu os dentes e as narinas expandiram.

— Eu diria insaciável.

Dylan coçou a garganta e nos interrompeu.

— Vamos traçar o perfil das vítimas primeiro. — Ficou em pé com sua caneca na mão e deu a volta na mesa, indo até o quadro que seria usado no mapa do crime e que ainda estava vazio.

Remy abaixou a cabeça, cortando contato comigo. Eu cruzei as pernas, meu pau ficou duro.

— Mulheres, entre vinte e trinta anos, cabelos enrolados e escuros… — Cazal pegou uma ficha de anotações inciais.

— Tanto a secretária quanto a garçonete foram vistas saindo de seu trabalho no mesmo horário e eram moças de família, do mesmo bairro. — Naudé disse.

— Além disso as duas usavam o mesmo aplicativo para relacionamentos. — Valleé pontuou. — Aposto que vocês não viram isso!

— A pessoa que cometeu esses crimes não está interessado no histórico de suas vítimas, apenas no perfil físico. Acredite, eu já estive lá. — Eu disse.

Atrair o olhar de Remy foi apenas um bônus, mas a equipe ficou desconfortável com meu comentário e Dylan se irritou.

— Louic, já chega. — O detetive virou-se para mim, eu nem precisava ver auras para deduzir que a dele estava pegando fogo. — Estamos cooperando, não precisa deixar as coisas ainda mais bizarras com seus comentários inoportunos.

— Inoportunos? — Comprei a briga. — Vocês ficariam rodando em círculos perseguindo pistas estúpidas se não fosse por mim.

— Acha que precisamos de você, cara? — Cazal cuspiu as palavras. — Você não merece estar entre nós, não passa de escória! Está aqui porque o Comissário fez um acordo, caso contrário apodreceria na prisão que é o seu lugar.

— Cazal! — Dylan gritou, tentando conter o seu funcionário. — Você não precisa explicar o básico.

— Okay, chega. — Remy arrastou a cadeira e se levantou. — Preciso tomar ar, pausa de vinte minutos.

Ele abriu a porta e deixou a sala. Fiquei em pé, pronto para seguir Remy, mas Dylan saiu correndo atrás dele e nem tive chances.

— Vamos tomar um café? — Valleé encarou Naudé.

— Agora mesmo. Divirtam-se, bonecas. — O loiro levantou-se e seguiu Yvonne para fora da saleta.

Sentei de novo na cadeira giratória. Cazal me mostrou sua arma no coldre como se me ameaçasse m****r de volta para o xilindró.

A investigação nem tinha começado e eu já estava de saco cheio daquilo.

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