As rodas da carroça continuaram a ranger, avançando pelas ruas de terra da vila. O som dos cascos batendo no chão parecia ecoar dentro da cabeça de Helena, como marteladas secas e implacáveis. Rowan já não estava mais em seu campo de visão — só restava o vazio no peito, o eco de sua voz sendo calada à força.
Ela se encolheu mais uma vez, agarrada às barras da pequena jaula de madeira. O frio não vinha do clima, mas do olhar das pessoas que surgiam nas janelas, nas portas, nos becos. Como sombras silenciosas, eles a seguiam com os olhos, alguns murmurando orações, outros cuspindo ao chão ao vê-la passar.
— Feiticeira… — sussurrou uma mulher, agarrando uma criança pelo braço.
Duas semanas se passaramO sino da capela tocou alto naquela manhã cinzenta, cortando o ar como uma lâmina. As badaladas ressoavam por toda a vila, chamando o povo para o que já sabiam ser um espetáculo de condenação. As portas da igreja foram abertas com força e, sob o altar erguido no centro da praça, Padre Mathias surgiu envolto em sua batina escura como breu.A multidão se reunia em ondas, sussurrando entre si. Velhos, mulheres com crianças no colo, jovens ansiosos por ver algo que pudessem contar depois. O ar carregava um cheiro de fumaça e ansiedade.No alto do estrado, Mathias ergueu os braços, as mangas longas pendendo como asas de um corvo.— Irmãos e irmãs! &m
O céu estava coberto por nuvens espessas quando os sinos começaram a soar. Um som lento, arrastado, fúnebre.Na cela, Helena já estava de pé. A noite fora longa, e o sono, inexistente. Seus olhos estavam fundos, mas havia neles uma luz difícil de explicar — algo entre resistência e fé. Fé em uma única coisa: Tristan.Ela ouviu passos pesados, então vozes se aproximando. A tranca rangeu, e dois soldados entraram. Um segurava correntes, o outro, um olhar vazio.— Está na hora, bruxa — disse um deles, sem emoção.Helena não respondeu. Esticou os pulsos com firmeza, encarando os homens. O clique das algemas ressoou como o som final de uma sentença.
Três dias antes…O céu estava tingido de dourado quando Tristan partiu com seu cavalo de volta para casa. A vitória tinha sido dura, seu corpo estava coberto de poeira e cansaço, mas sua mente... sua mente estava em Helena. Era tudo o que queria agora — um banho quente, os braços dela, sua voz doce o recebendo no lar que haviam construído com tanto amor.A estrada de volta era silenciosa, cortando pelos campos já meio secos, quando ele encontrou um grupo de viajantes no caminho. Eram dois homens e uma mulher, rostos fechados, carregando sacos e conversas abafadas. Ao passar por eles, ouviu algo que fez seu coração parar:— …foi levada como bruxa, a fogueira tá pronta. Dizem que amanhã cedo…
O sol já começava a se esconder no horizonte quando Tristan deixou os escombros da cabana para trás, montado em seu cavalo como uma sombra viva, o rosto tenso, as mãos firmes nas rédeas. A imagem dos corpos dos animais, o cheiro de fumaça e destruição, o silêncio cortante da ausência de Helena — tudo aquilo queimava dentro dele como brasa na carne.Ele não gritou. Não chorou. Apenas cavalgou.Precisava de homens. Não qualquer homens — precisaria daqueles em quem podia confiar com a própria vida. Homens que lutaram ao seu lado quando ele não era ninguém além de uma lâmina a serviço da guerra. Homens que ainda deviam favores ou, no mínimo, carregavam respeito suficiente por sua fúria para segui-lo sem question
Tristan não sentia cansaço. O peso nos ombros não vinha da viagem, nem das batalhas vencidas dias antes. Era outra coisa — algo escuro, denso, pulsando em cada músculo. Ódio. Um ódio que queimava de dentro pra fora, como se quisesse devorar o mundo inteiro.A vila estava diante dele. As casas de pedra, as mesmas que um dia ele protegeu com espada em punho, agora pareciam inimigas. Cada janela fechada, cada porta trancada… cúmplices. Traidores, todos eles. Nenhum tinha levantado a voz. Nenhum tinha impedido. Se ela sangrou, se ela chorou, foi com o silêncio de todos ao redor.Uma sentinela no alto da torre mal teve tempo de tocar o sino antes de uma flecha atravessar sua garganta. O som abafado de seu corpo caindo despertou a vila com o gosto metálico do terror.
A multidão rugia como um mar em fúria. Gritos e vaias se erguiam na praça, o cheiro de fumaça já presente no ar. No centro, a estrutura da fogueira se erguia como um altar grotesco — troncos empilhados, trapos embebidos em óleo, cordas apertadas com brutalidade. E ali, amarrada, com os cabelos desgrenhados e a pele suja de terra e sangue seco, estava Helena.Os olhos dela varriam a multidão com um desespero surdo. O coração batia tão alto que era como se o mundo inteiro ouvisse. Mas ninguém ouvia. Ninguém via. Para eles, ela não era Helena. Era um monstro. Uma bruxa. Um espetáculo.O padre Mathias erguia os braços e gritava passagens sagradas, cuspindo condenação entre cada palavra.— Qu
A vila ardia em sombras e fumaça.Casas fechadas, portas escancaradas com pressa, barris tombados, sangue misturado à lama — tudo era sinal da guerra silenciosa que se espalhava como praga. Os gritos haviam diminuído, mas o ar ainda tremia com a tensão de algo prestes a explodir.Padre Mathias corria por vielas estreitas, a batina rasgada pela pressa, o rosto suado e manchado de fuligem. Seus olhos se reviravam de um lado para o outro como os de um rato encurralado.— Eles vão me matar… eles vão me matar… — murmurava para si, tropeçando nos próprios pés.Passou por trás da capela, onde alguns fiéis mortos jaziam. Evitou olhar. Sua fé agora era apenas medo. Fé de que pudesse escapar.Mas o destino já o observava.
A noite caía pesada sobre o vilarejo, as sombras dançando nas paredes de madeira da pequena casa onde Helena se escondia. O vento uivava através das frestas da pequena casa de pedra, carregando consigo o cheiro de chuva e medo. Helena, encolhida atrás de um baú de madeira, pressionava as mãos pequenas contra os ouvidos, tentando abafar as vozes que ecoavam pela casa. Mas era impossível não ouvir.— Não podemos continuar assim, Wilhelm! — A voz da mãe soava cortante, desesperada. — Essa marca... Essa maldição... Ela vai trazer desgraça para todos nós!— Ela é só uma criança — retrucou o pai, mas a hesitação em sua voz era evidente. — Não sabemos se... se é mesmo o que dizem.— Abra os olhos! — A mãe interrompeu, a voz embargada pelo medo. — Todos sabem o que aquela marca significa. O padre Mathias viu! Ele mesmo disse que é obra do demônio. Como podemos manter isso sob nosso teto?Helena apertou ainda mais as mãos contra os ouvidos, como se pudesse afastar aquelas palavras. Os olhos ar