Dra. Brandburry está batendo a caneta em sua mesa de madeira maciça. Isso me deixa nervosa. Tap. Tap. Tap. Meus olhos estão fixos em seus dedos pequenos e gorduchos. Ela tem unhas pequenas e gorduchas também. Sem esmalte. Dra. Brandburry tem olhos pequenos, escuros e perspicazes. Ela é uma intelectual. Do tipo que não usa maquiagem, que está sempre séria e que só precisa olhar para você por um minuto para analisar sua vida inteira. Ela me dá medo. Eu tenho medo de muitas coisas. É por isso que estou aqui no consultório psiquátrico. Para vencer meus medos.
Eu mordo a minha unha arrancando um pedaço de esmalte preto. Minha perna direita não para quieta. Fico batendo o pé freneticamente. Estou vestindo uma camiseta branca com a estampa da estrela do Mario Bros e uma calça jeans pretá que comprei em uma liquidação numa loja na qual eu nunca poderia comprar nada que não estivesse liquidando.
— Eu acho que faria bem para você. — Dra. Brandburry continua a bater sua caneta na mesa. É uma caneta prateada e fina.
— Eu não sei…
Meus músculos estão tensos, sinto uma forte pressão nos ombros como se eu tivesse carregando uma pedra bem grande e pesada! Não tenho vontade de ir a lugar nenhum especialmente um lugar no qual eu tenho que falar dos meus problemas e ouvir pessoas que não conheço falarem de seus problemas também.
— A reunião do Centro Pearse ocorre aos domingos. É em um lugar agradável e bonito.
— Não gosto de lugares tumultuados.
Ela sabe disso. A Dra. Brandburry é minha psiquiatra. Ela sabe que eu tenho medo de gente! Por que ela quer que eu vá ficar trancada em uma sala com um monte de gente ao meu redor? Eu não gosto dessa ideia.
— Não vão muitas pessoas. Grupos com no máximo dez jovens.
— Não gosto de pessoas desconhecidas.
Pessoas desconhecidas são o grande problema da humanidade. Pessoas desconhecidas são más, se aproximam de você com um sorriso simpático e as piores das intenções, elas te maltratam e se aproveitam de você. Eu realmente não gosto de pessoas desconhecidas.
— Você estará cem por cento segura eu te garanto. — Dra. Brandburry me diz com um sorriso em seus lábios pequenos e finos. Ela para de bater a caneta na mesa para cruzar os braços. — Vamos fazer um acordo. Você vai na primeira reunião, mas se não gostar de lá, não vá na próxima.
Não respondo logo de primeira. Tenho que me certificar de que essa proposta não é um truque! Sabe como psiquiatras são, eles te dão um remédio dizendo que isso vai acalmar você e te fazer bem, mas não é totalmente verdade. Eles te viciam no remédio e você não consegue mais viver sem os comprimidos. Não quero que a Dra. Brandburry me vicie em reuniões de ajuda em grupo.
— Não precisarei ir mais?
— Se achar que é inútil, não precisará ir.
— Concordo! — Falo rapidamente para não dar à Dra. Brandburry tempo de desistir de sua proposta.
— Ótimo. — Vejo um sorriso se abrir em seu rosto e tenho certeza que caí no truque. A Dra. Brandburry pega de cima de sua mesa um papel comprido e entrega para mim. É um panfleto. — Ligarei para os seus pais para confirmar sua presença.
Tenho certeza disso. Dra. Brandburry fará o possível para certificar-se de que eu não vou escapar dessa reunião. Eu estico o braço e alcanço o panfleto. É um papel mole e rosado. Está escrito “Nunca Desista!” em letras amarelas grandes. O panfleto quer me convencer a não desistir de vencer meus medos ou de que não devo desistir de ir nessa reunião? Qualquer uma das duas me causa desespero. Mas tudo bem. Eu só preciso ir a uma reunião, dizer que não acho que fará diferença no meu tratamento e nunca mais precisar sair de casa novamente! Fácil.
— Vejo você semana que vem, Iris. — Minha psiquiatra se despede.
Ergo a cabeça para ela, mas Dra. Brandburry já está escrevendo alguma coisa na minha ficha médica. Talvez ela me dê uma estrelinha dourada por eu ter aceitado ir a reunião sem xingar.
Enfio o panfleto no bolso da minha mochila preta com uma costela humana desenhada em cinza e fico em pé, colocando a mochila nas costas. Ando até a porta branca e giro a maçaneta. Olho para os meus pés para ter certeza de que não vou tropeçar e fecho a porta atrás de mim. Meus olhos caem em cima do sofá vermelho da sala de espera, onde uma pessoa desconhecida está sentada no mesmo local em que eu costumo ficar para esperar meus pais.
A pessoa desconhecida está chorando, parece ser mais jovem que eu e não sei dizer realmente se é uma garota ou um garoto. Sua feição é muito delicada, quase angelical. Os cabelos são bem escuros e caem em sua bochecha contrastando com sua pele pálida. Os olhos são um espetáculo a parte. Não é um azul comum, aquele tom cinzento que as pessoas normalmente possuem. Esses olhos são intensamente azuis, uma cor profunda como um oceano e são capazes de tirar meu fôlego. Prendo a respiração, porque sinto como se eu estivesse mergulhando no mar.
Há algo nesses olhos alagados que me deixa confortável e pela primeira vez em muito tempo, não tenho medo de uma pessoa desconhecida.
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Ah, ótimo. Viro a cabeça para o lado na tentativa estúpida de escapar dos olhos castanhos da garota que saiu da sala da Dra. Brandburry. É uma garota muito bonita, magra, de cabelos negros compridos e olhos grandes. O tipo de garota pelo qual nenhum garoto quer ser visto chorando. É, estou chorando. Eu faço isso bastante. Sou incapaz de me manter firme, acho que nasci sem controle emocional.
Eu suspiro. Cubro a boca e o nariz com a minha mão. Está calor, mas estou usando um moletom preto dois números maiores que o meu para que as mangas possam esconder bem minhas mãos, deixo apenas os dedos de fora e as vezes cubro todo o polegar. Funciona para esconder as marcas das mordidas que eu faço em mim mesmo quando preciso sentir dor. Somente a dor me faz parar de chorar. Costumo morder até as costas das mãos, mas meu local favorito é o pulso. Dói mais, porém não é tão fácil de esconder.
Passo as pontas dos dedos em meus olhos para segurar uma gota grande de lágrima que já quer cair. Mordo a parte interna do meu lábio inferior para conter o choro. Eu não sou muito bom de chorar. Costumo segurar o choro o máximo que dá, mas quando eu explodo, é como se um rio inteiro escapasse dos meus olhos. Costumo encharcar o travesseiro ou as mangas da roupa que eu estiver usando. Tsc.
Escuto a menina sentar-se no sofá azul que fica bem ao lado de onde estou. Procuro olhar para ela com o canto dos olhos. Há diversas maneiras de olhar para alguém sem realmente focar o olhar diretamente no alvo… quero dizer, eu costumo olhar para um objeto próximo à pessoa e confiar no que consigo enxergar pela lateral. Eu não tenho muita coragem de olhar diretamente para ninguém, quando faço isso acabo encrencado e apanhando nos fundos da escola. Aconteceu hoje. De novo.
Só de pensar nisso a minha visão borra. São mais lágrimas que tenho que secar. Aperto meus lábios evitando fazer uma careta de tristeza. Olho para o vaso vermelho e comprido que segura galhos secos e decoram o canto da sala. Posso ver a garota mexer em sua mochila. Ela está vestindo uma calça preta e uma camiseta amarela com dois olhos negros, acho que é a estrela do Mario Bros, aquele jogo da Nintendo.
A garota tira uma caixa retangular e cor-de-rosa da mochila e olha para mim. Eu viro o rosto para evitar qualquer contato, mas é tarde demais. Ela já estica o braço na minha direção e coloca a caixa de lenços bem debaixo do meu nariz.
— Aqui, pode usar. — A voz dela é calma, bem suave, tem uma leve rouquidão que chega a ser sexy. Consigo ver apenas a caixa, um lenço de papel para fora esperando ser pego e os dedos delicados da menina. O esmalte é preto, mas parece que ela tem o hábito de cutucar o esmalte quando fica nervosa. Em seu polegar ela usa um anel dourado no formato de uma estrela que me faz ter vontade de fazer um desejo: o de ser capaz de sorrir.
Puxo um lenço de papel e coloco no rosto, para fugir daquela situação o mais rápido possível e sinto o cheiro perfumado do lenço de papel. É um aroma adocicado e que me causa conforto. Entretanto, eu não me sinto confortável quando as pessoas conversam comigo. Tenho a impressão de que estão me julgando e tenho medo de fazer algo que elas não gostem e se irritem. Num geral as pessoas se irritam comigo. As vezes elas se irritam tanto que me batem.
— Pega mais. Um vai ser pouco. — Ela diz novamente, balançando a caixa de lenço na minha frente.
Pego mais alguns só para ela parar de balançar a caixa na minha frente e quando tenho um bolo de papel nas mãos, me afasto, para deixar claro que já terminei. Estou secando minhas lágrimas com os lenços quando escuto o zíper da mochila dela se fechar e isso me traz certo alívio. Acho que ela vai me deixar em paz.
— Eu me chamo Iris e você?
— Skye. — Respondo, mas minha voz é quase inaudível. Ao menos foi isso o que o professor de literatura me disse quando pediu para que eu lesse a página 56 de Orgulho e Preconceito. Foi humilhante, todo mundo começou a rir de mim.
— Muito prazer, Skye. — Ela dá uma risadinha. Olho para seus pés. Posso ver que ela usa um sapato baixo de estampa branca com cerejas pequenas. Eu gosto de cereja.
O silêncio fica entre a gente. É tempo o suficiente para que eu comece a pensar em todos os motivos que fazem uma pessoa como ela estar nesse consultório. Ela estava rindo e não chorando… e parece bem simpática. Tenho por mim que pessoas simpáticas não sofrem com nada… e se ela não tem problemas, por que estaria no consultório da Dra. Brandburry? Talvez tenha vindo por engano. Ou talvez seja uma daquelas adolescentes que os pais mandam se tratar mesmo sem motivo ou porque estão um pouco estressadas.
— Espero que passe. — A garota diz. Como só estamos nós dois na sala de espera, creio que foi para mim.
Por que ela se importa? Ela nem me conhece! Seco meus olhos, mas não acho que sou capaz de parar de chorar agora. Balanço a cabeça de um lado para o outro para desanuviar a mente, mas é impossível. As vezes as piores memórias funcionam como um mar, cheio de ondas que vão em vem, trazendo lá do fundo aquilo que você desejaria esquecer.
— Existem coisas impossíveis de esquecer... — Eu a respondo. Não sei bem porque me dou ao trabalho de respondê-la, já que acho que ela não me entenderia… mas é algo no tom de sua voz, uma espécie de convite que não consigo recusar.
— Lembrar de uma dor do passado é criar uma nova dor e sofrer novamente. — Posso vê-la bater os ombros com os cantos dos meus olhos. O tom de sua voz me dá a impressão de que ela fala por experiência própria. Como se ela fosse uma sofredora também.
— Algumas dores podem ser sentidas eternamente. — Os lenços da minha mão já estão encharcados e Iris oferece-me novamente a caixa de lenços da qual pego mais um montinho de papel. — Há uma grande diferença entre a alegria e a tristeza. As alegrias podem ser intensas. As tristezas são sempre profundas.
— Isso seria como dizer que a tristeza é superior que a alegria. — Ela retruca com simplicidade. — E se isso fosse verdade, não existiria a esperança.
Tomo fôlego para respondê-la. O abrir da porta do consultório nos interrompe:
— Skye Hirsch. — Escuto Dra. Brandburry chamar o meu nome enquanto está em pé parada na porta da saleta de seu consultório. Bem, não é realmente meu nome. Meu nome mesmo é Skye Bellamy, mas já mudei de sobrenome três vezes… espero que seja a última.
Fico em pé e olho mais uma vez para a menina. Ela está roendo a unha e me lança um sorriso de lábios fechados. Um daqueles sorrisos simpáticos que não querem dizer nada, mas que te infectam. Normalmente não respondo sorrisos porque responder sorrisos pode te colocar em situações perigosas… mas essa garota me infecta. É uma espécie de doença do riso. Minha boca acaba se mexendo sem que eu perceba e eu lanço um sorriso para ela também.
Viro para a Dra. Brandburry me aguarda com impaciência. Credo! Essa mulher deve odiar o emprego dela! Com certeza pagam menos do que ela acha que merece. Eu entro na sala gelada pelo ar-condicionado ainda segurando um monte de lenço de papel nas mãos. O cheiro de álcool esterilizante impregna o local. Apesar de ser um consultório luxuoso, o Centro Clínico Pearse de Reabilitação Mental é uma organização sem fins lucrativos, atende gratuitamente… eu não tenho dinheiro para bancar esse tipo de tratamento.
Eu me sento em uma das cadeiras pretas que ficam em frente à mesa da Dra. Brandburry. Antes mesmo de que minha psiquiatra consiga se sentar em sua cadeira grande e marrom, eu já estou chorando de novo. Droga, eu vou enlouquecer se continuar assim. Coloco todos os lenços de papel de uma vez no rosto e respiro fundo o perfume adocicado, o que me remete à garota que eu acabei de conhecer… e mesmo que eu sinta uma profunda tristeza… tenho uma intensa vontade de sorrir.
É possível que desejos feitos em sala de espera se realizem?
IRISMamãe tamborila os dedos no volante impaciente comigo. Ela é uma mulher bonita, mas que engordou muito depois que engravidou de mim e de minha irmã mais velha Keira. Foi por esse motivo que meu pai divorciou-se dela e se casou com uma outra mulher vinte anos mais nova e quarenta quilos mais magra. Tenho pena de minha mãe, a vida não tem sido boa com ela.— Se você entrar, podemos provar calças, quem sabe encontramos algo na promoção que sirva em você.
IRISA fachada do Centro Pearse é muito convidativa. Há um caminho de pedras por um jardim bem aparado que leva direto a uma porta dupla de vidro que reflete a luz da manhã agradável de domingo. A arquitetura é quadrada e clean, as paredes pintadas de branco parecem bem limpas e cuidadas, os vidros das janelas e portas não parecem empoeirados e posso ver que lá dentro é bem iluminado. Há uma suntuosa placa de cimento e metal com os dizeres: “Centro Clínico Pearse de Reabilitação Mental” . Eu já estive aqui milhões de vezes, quando venho para a consulta com minha psiquiatra, mas hoje parece que é a primeira vez.
IRISQue vergonha.Meu primeiro dia no Centro Pearse e eu já tive uma crise de pânico. Minhas unhas estão cravadas na pele do pulso de Skye, por cima da manga do moletom que ele usa, mas ainda assim é um ato desesperado. Posso sentir as lágrimas escorrerem dos meus olhos pelo meu rosto e minha visão borra. Só vejo manchas.— Ei, qual o
IRIS Alguma vez você já teve muita vontade de estar em um local, mas não conseguiu ir? Não quando seus pais não deixam, ou porque você tem um compromisso marcado anteriormente e que não pode ser desmarcado, mas simplesmente não conseguir ir. Toda a animação que eu estava sentindo após o meu dia feliz no Centro Pearse, desapareceu de tarde. Fiquei extremamente exausta. Não fui na festa de aniversário da Sammy e desde então, ela não responde minhas mensagens. — IRIS A maçaneta era quadrada de metal prateado e fosco. No meio da porta marrom lia-se “Masculino”, mas eu não prestei atenção antes de abrir. Meus olhos estavam ardendo e as lágrimas já queriam rolar. Eu só precisava me esconder em um local seguro para ligar para minha mãe implorando que ela viesse me buscar. Não tinha intenção de entrar no banheiro masculino do Centro Pearse, mas entrei. Eu estava segurando um lenço de papel e ele estava todo borrado com minha sombra azul-marinho, lápis e rímel preto. A visão da maquiagem derretendo de forma desastrosa foi constatada quando eu me olhei no espelho, tinha até manchado a minha camiseta branca 06: Lágrimas compartilhadas
IRIS É a primeira vez que vejo mamãe sorrir para me levar em algum lugar ou me deixar faltar na aula. Normalmente quando saímos de casa é uma guerra, eu enrolo, faço de tudo para atrasar e o impossível para não precisar mais sair… não hoje. Hoje estou tão ansiosa que até estava pronta primeiro que ela. Escolhi uma camiseta que é toda cor-de-rosa com o Ursinho Pooh na frente, a estampa cobre toda a camiseta e está escrito “Doce como mel” em inglês. Fiz mamãe lavar minha calça jeans preta ontem a noite para poder usá-la (não vou de calça branca porque o Skye me disse ser muito desastrado e não quer
IRIS Iris: “Sammy, você acha que a gente combina?” Enviei um SMS para a Sammy no meio da minha aula, segurando o celular em baixo da mesa. A mensagem continha um coração de símbolos ascii, dentro dele escrevi o meu nome e o de Skye. Fiz a mesma coisa o dia inteiro em todo os fóruns que eu frequento, inclusive o de One Direction… não que eu goste
IRIS As grossas gotas de chuva estouravam em cima do para-brisa do carro. Mamãe freou bruscamente e o cinto de segurança me deu um gancho. Sorte que eu estou de jaqueta de couro preta e o cinto prendeu na gola antes de me enforcar. É um domingo frio e chuvoso, daqueles que faz com que ninguém queira sair de casa... Mamãe não queria sair e eu tive que insistir para ela me trazer. — Último capítulo