Quando em Vegas
Quando em Vegas
Por: Carol Moura
Prólogo

A lista

Seu olhar mortificado só me deixava mais revoltada.

Ele não tinha o direito de estar se sentindo mal. Era ele quem estava fazendo aquilo comigo. Em seus olhos, eu podia ver que ele não se sentia bem com a situação, mas pouco me importava. A culpa era dele, afinal de contas.

Como se atrevia a me olhar com tanta... compaixão?

Olhei para os papéis espalhados pela mesa e me senti ainda mais indignada, revoltada para ser mais precisa. Não havia espaço para qualquer outro sentimento dentro de mim naquele momento. E eu seguraria a indignação e revolta o quanto pudesse, pois, no momento em que eu deixasse a mágoa tomar conta de mim, tudo desabaria. Tudo.

O que eu fiz para merecer aquilo? Por que ele não se importou mais cedo?

Quando questionei, ele desdenhou de minhas preocupações. Disse que não era nada. E então tirou todo meu chão.

Desgraçado!

— Linda, querida, por favor, sente-se, vamos conversar com calma sobre os... Linda! Linda! Espere!

Sequer fiquei para ouvir o que ele tinha para me dizer. Dei as costas e o deixei gritando enquanto eu saía do local que me sufocava.

Desci os andares do prédio pelas escadas — esperar o elevador não era uma opção — e quando cheguei ao térreo, abri a porta corta-incêndio com força e me joguei para o hall do grande complexo de salas. Puxei uma grande quantidade de ar quando finalmente cheguei do lado de fora do prédio.

Jenny estava me aguardando ao lado do carro e prontamente andou até a porta e a abriu para mim.

— Senhorita Hatman — cumprimentou assim que entrei no carro.

Ela era minha motorista havia dois anos, nos falávamos pouco, mas ela era observadora e sabia fazer as perguntas certas nos momentos precisos. Então, no instante em que ela contornou o carro e entrou no lugar do motorista para começar a dirigir, simplesmente se manteve concentrada na direção enquanto me perguntava suavemente se estava tudo bem comigo.

— Tudo bem, Jenny. Me leve para casa, por favor — solicitei enquanto pegava meu telefone na bolsa.

Quando não ouvi a sua afirmativa, levantei os olhos para ver o motivo do silêncio. Ela me olhava através do espelho retrovisor com o cenho franzido, como se estivesse tentando entender o motivo pelo qual eu estava querendo ir para casa no meio da tarde de uma terça-feira, quando tudo o que fazia, mesmo aos finais de semana, era trabalhar.

— Algum problema? — indaguei, levantando a sobrancelha para ela, que imediatamente desviou o olhar e prestou atenção na estrada.

— Não, senhorita.

— Bom, me leve para casa, por favor.

Voltei minha atenção para o telefone que, como eu esperava, tinha muitas chamadas não atendidas e outros muitos e-mails para serem respondidos.

— Como quiser.

Procurei me concentrar no trabalho por um momento, mas pela primeira vez em muito tempo, não consegui pensar na rede de hotéis que eu presidia desde a morte do meu pai, Len Hatman.

Fui criada para tomar conta do império que havia sido criado com a Hatman Hotéis desde muito cedo. Aos dezesseis, já me esforçava por um G.P.A.[1] impecável. Aos dezoito, já estava na faculdade cursando Negócios. Aos vinte e três, já me candidatava a uma especialização em hotelaria e hospitalidade e aos vinte e oito assumi a presidência da rede hoteleira após a morte do meu pai.

Aos trinta, estava sentada dentro do meu carro, indo para casa com a cabeça cheia de merda (sem trocadilhos), me sentindo a pessoa mais traída e sem chão do mundo e esperando por um encontro com a adega de vinhos herdada do meu pai.

Fodam-se os e-mails e as ligações. Eu tinha uma merda de vice-presidente para lidar com os problemas da empresa, além dois conselheiros bem pagos. Fodam-se as preocupações. Foda-se agir da forma correta. Fiz isso durante a vida toda para passar pelo que estou passando agora?

FO-DA-SE!

**

Quando pedi para Jenny me levar para casa, me referi à cobertura em um dos hotéis da família, em Beverly Hills. Aquele era um dos mais luxuosos hotéis da rede. O último andar fora todo convertido para ser meu apartamento e escritório quando assumi as empresas de Len Hatman, meu pai. Len e minha mãe, Judy Hatman, eram separados há alguns anos, e eu morava com ela e meu padrasto, Oswald Carly, um médico renomado. Quando papai faleceu e eu assumi os negócios da família de vez, pensei que seria melhor me mudar e seguir com minha independência.

Ao passar pela recepção do hotel, Howard, o concierge, me abordou com seu iPad a postos.

— Boa tarde, senhorita Hatman. Chegou cedo... — Observou, me fazendo revirar os olhos.

— Olá, Howie — cumprimentei sem parar de andar e seguindo para os elevadores.

— Temos muitas ligações e recados para a senhorita hoje... — Iniciou enquanto deslizava a caneta pelo aparelho em suas mãos, procurando pelos recados.

— Passe para Stacy, Howard, hoje não atenderei ninguém.

Howie soltou um suspiro assustado e parou de andar. Pela visão periférica, pude vê-lo congelado em seu lugar. Ignorando sua reação, pressionei o botão para que o elevador se abrisse.

— Mas sua mãe... — O concierge deu um passo em minha direção para tentar falar novamente.

— Eu não estou para ninguém, Howard — fui taxativa e entrei no elevador, logo digitando o código de acesso a minha suíte.

— Sim, senhora... — Sua voz era trêmula, como se estivesse ferido pelas minhas palavras. Howie era quase tão workaholic quanto eu. Quase.

Enquanto o elevador subia, peguei meu telefone pela última vez. Enviei uma mensagem para Stacy, minha secretária, avisando que não atenderia ninguém até uma segunda ordem e que ela passasse tudo para Louis Castillos, vice-presidente da Hatman Hotéis. Sem aguardar qualquer resposta, desliguei o telefone e o joguei novamente dentro da bolsa.

Quando as portas do elevador se abriram, eu já havia retirado os sapatos. Assim que pisei no tapete fofo da suíte, respirei fundo e atirei o par longe, junto com a bolsa. Caminhei diretamente até a adega, estrategicamente instalada entre o quarto e a sala para dividir o grande ambiente e me dar alguma privacidade. Era imensa e repleta dos melhores vinhos que o dinheiro poderia comprar. Vinhos que foram guardados pelo meu pai e que mantive reservados para serem consumidos apenas em ocasiões especiais.

— Bem, acho que essa é uma baita ocasião especial, não é, papai? — falei alto e ri em seguida. Estava falando sozinha, talvez minha cabeça já estivesse apresentando problemas. Talvez eu só quisesse alguém para conversar.

Talvez eu quisesse meu pai para conversar.

Pegando um Bordeaux de mil novecentos e muito tempo, andei até a cristaleira e saquei um taça e o saca-rolhas. Tive alguma dificuldade e estraçalhei a rolha um pouco ao abrir a garrafa. Sorri sem realmente estar com vontade e servi uma pequena quantidade daquele antigo vinho.

— Para você, papai — resmunguei novamente e bati delicadamente o gargalo na taça para brindar, levando a garrafa até meus lábios e deixando a taça para o meu pai imaginário.

**

Na segunda garrafa, eu estava entediada. Geralmente, quando estava assim, eu trabalhava. Bem, normalmente eu trabalhava para compensar qualquer coisa. Então, se eu estava brava, trabalhava, se estava feliz, trabalhava ainda mais...

O que eu estava sentindo naquele momento?

Medo?

Tristeza?

Por que eu não estava trabalhando?

Olhei para a televisão e pensei na quantidade de tempo em que eu não assistia nada. Será que ainda passava Punky - A Levada da Breca ou Blossom? Caramba, será que ainda passava Goosebumps?

Pegando o controle remoto, estrategicamente colocado ao lado da televisão pela equipe de governança, me senti patética ao perceber que não havia ligado aquela televisão (ou qualquer uma) em anos. Sequer sabia o que era diversão havia muito tempo.

Ligando a enorme televisão, subi no sofá e me ajeitei, sentando em cima dos pés. Eu precisava tirar a saia e a blusa, que combinavam perfeitamente com o blazer atirado em algum canto do quarto. As roupas estavam me apertando e dificultando minha tentativa de ficar confortável, mas já estava tonta demais para mudar de roupa.

Que horas são? O sol ainda está brilhando...

Era cedo. Muito cedo, considerando o fato de que eu sempre chegava do trabalho tarde. Passava do horário normal de expediente com frequência, chegava quando a noite já havia caído.

Comecei a zapear pelos inúmeros canais disponíveis e parei em algum filme de terror. Era algo relacionado a exorcismo, e eu não estava bêbada o suficiente para ter coragem de encarar algum demônio vomitando ou torcendo partes de seu corpo.

Foi então que parei em um filme que estava começando.

— Um Amor Para Recordar — resmunguei sozinha. — Deve ser bonitinho.

Foi a coisa mais cruel que assisti na vida.

As lágrimas grossas e gordas caíam ao mesmo passo em que outra garrafa de vinho era consumida.

Deus! Que merda de filme foi aquele?

Eles se apaixonam, ela mostra uma lista fofa para ele e simplesmente se casam antes da garota morrer de câncer?

Que tipo de ser humano escreve um roteiro destes?

Enquanto fungava e analisava os créditos do filme subindo, pensei em Jamie Elizabeth Sullivan e Landon Carter, dois jovens apaixonados que só queriam viver o seu amor juntos, mas não puderam.

Mesmo a lista de Jamie não foi realizada por completo. Ainda assim, aos dezessete anos, eles viveram muito mais do que eu, com mais que o dobro de sua idade.

Debilmente, porque aquilo era apenas um filme baseado em um livro e aquelas pessoas eram apenas personagens, pensei que, mesmo jovens, Landon e Jamie tinham encontrado o amor, dançaram juntos, estiveram em dois lugares ao mesmo tempo, e ele até fez uma tatuagem nela.

Aos trinta, eu não conseguia me lembrar se algum dia tive um diário, alguém que me fizesse suspirar ou uma lista de coisas que eu gostaria de fazer.

Que fim levaria a minha vida?

Em que momento eu aproveitaria tudo o que fora deixado pelo meu pai?

Dando mais um grande gole na garrafa de vinho, fui atrás de papel e caneta.

— Eu também tenho direito a isso — resmunguei, limpando as lágrimas e a coriza do nariz. — Vou fazer minha própria lista!

Encontrei o bloco e caneta do hotel e voltei para o meu lugar.

Coisas como escalar o Everest, tomar banho nas piscinas quentes e naturais em meio ao gelo na Islândia e dar uma volta na Red Light Street em Amsterdã enquanto comia um brownie de maconha passaram pela minha cabeça.

Entretanto estava ansiosa para ter os itens completos em minha lista. Se eu colocasse coisas muito complexas, talvez demorasse mais tempo para poder completa-las.

Talvez eu nunca conseguisse realizá-las.

— Talvez eu devesse fazer algo mais simples... — murmurei, batendo com a caneta no bloco. — O que fazer...? O que fazer...?

Foi então que um novo filme começou. E o seu nome me chamou atenção.

Jogo de Amor em Las Vegas.

LAS VEGAS!

VEGAS!

Eu nunca tinha ido para Las Vegas, a não ser para inspecionar dois hotéis da rede que ficavam lá. Nunca para diversão. Não encontrava tempo para aproveitar como a cidade e eu merecíamos, mas sempre tive vontade. Uma vontade ofuscada pelo foco no trabalho e na tentativa de honrar o império que meu pai havia construído.

Tentando não pensar em meu pai novamente, respirei fundo e voltei ao meu plano.

VEGAS!

— Uma lista de coisas para fazer em Las Vegas! — exclamei como se fosse uma grande novidade.

Provavelmente milhares de pessoas já haviam feito uma lista sobre isso. Especialmente pessoas moribundas. Como Jamie Sullivan. Outros livros deprimentes deviam estar cheios de listas para fazer. Mas, em minha mente bêbada, aquela lista era inédita.

Até porque minha lista seria um pouquinho diferente.

Então escrevi na primeira página do bloco:

LISTA DE MERDAS PARA FAZER EM LAS VEGAS!

  1. Ir para Las Vegas;
  2. Gastar uma pequena fortuna em um cassino;
  3. Experimentar drinques exóticos enquanto reclama da vida para o Barman;
  4. Ver um show de go-go boy;
  5. Dançar em frente ao Bellagio;
  6. Andar em uma limousine com a cabeça para fora do teto solar enquanto canto a música tema de Titanic;
  7. Fazer uma tatuagem;
  8. Assistir a um show cover da Tina Turner;
  9. Casar com um estranho na capela do Elvis;
  10. Transar com o marido estranho.

— Bem, bem... — suspirei, olhando para a lista. — Para fazer tudo isso, preciso ir para Vegas...

Andei até a bolsa e peguei meu telefone. Liguei o aparelho e ignorei enquanto ele apitava loucamente. Precisada do número da minha assistente.

— Stacy?

— Sim, senhorita Hatman? — A voz de minha assistente parecia aliviada quando me atendeu. — Tenho alguns recados urgentes...

— Sem recados, Stacy! Mande preparar o jatinho. Estou indo para Las Vegas.

[1] Grade point average: média das notas do aluno para ingressar em universidades nos Estados Unidos.

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