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O Observatorio
O Observatorio
Por: Pradines Jr.
Capítulo 10 - O Silêncio de Hélio

Capítulo 10

O Silêncio de Hélio

Muito, muito tempo atrás, bem antes do nosso Sol apare­cer, havia uma outra estrela nesse canto da Via-Láctea. Essa estrela viveu por bastante tempo produzindo energia através da fusão de hidrogênio, o elemento químico mais simples que existe. A fusão do hidrogênio produziu um outro elemento chamado hélio. Contudo, depois de muito tempo, o hidrogênio começou a acabar. A estrela, então, passou a con­sumir o hélio que havia produzido antes e aumentou de ta­manho, virando uma gigante vermelha. O hélio se combinou na estrela para formar um outro elemento químico chamado carbono. E, assim, o tempo passou. A estrela ficou tão grande, mas tão grande, que o carbono que nela existia se espalhou pelo espaço, quando ela finalmente morreu em uma explosão de supernova. O carbono viajou pelo espaço durante milhões de anos e chegou a uma bola de ferro que orbitava uma outra estrela-bebê, o nosso futuro Sol. Essa bola de ferro demorou milhões de anos para esfriar. Quando isso aconteceu, a água que existia nessa bola formou mares. Nesses mares, surgiram seres vivos baseados no mesmo carbono que se formou na es­trela que morreu há milhões de anos. Esses seres vivos evolu­íram durante outros milhões de anos, até que deles surgiram os seres humanos. Até que surgimos eu e você.

Estávamos no pátio externo à cúpula. Eu abraçava Aurore e olhávamos as estrelas enquanto eu contava a histó­ria do carbono dos nossos corpos.

— Então somos filhos de uma estrela? — Ela me perguntou.

— Sim, francesinha. O carbono do seu corpo — e aper­tei a pele do seu braço — esse mesmo carbono foi produzido no interior de uma estrela.

— Isso é muito lindo, Héliô. Fazemos parte do universo de uma forma que não conseguimos imaginar!

— É verdade. Mas quer saber qual é a leitura mais poé­tica que faço desse ciclo?

Ela se virou para mim. Abraçou-me e fez a pergunta com um sorriso desafiador no rosto:

— Qual, meu cientista-poeta?

— Para o carbono no corpo de Aurore surgir, hélio teve que desaparecer. Então, num sentido figurado, eu tive que morrer para que você pudesse nascer.

Nossos carbonos, hidrogênios e oxigênios, produzidos em tempos e lugares distintos, viajaram por bilhões de qui­lômetros e bilhões de anos para se encontrarem no longo beijo que trocamos neste canto perdido do Sistema Solar, São Carlos.

Era sábado, 5 de novembro de 1994. Aurore viera para assistir à palestra que eu faria naquela noite, precisamente sobre a história que eu contara a ela no pátio: a síntese de elementos químicos no interior de uma estrela. Eu quebrara a cabeça pensando na melhor forma de explicar esses con­ceitos difíceis de física para o nosso público, tarefa tornada quase impossível pelo pouco tempo para a sua preparação: chegáramos a São Carlos na manhã do dia 4. Quando ex­pliquei por alto a bomba que, mais uma vez, Victor tinha jogado no meu colo com uma risadinha sarcástica, Aurore deu a dica que salvou a palestra:

— Por que você não usa bolinhas de isopor de dife­rentes cores para representar os prótons e nêutrons nos átomos? Assim você pode explicar mais facilmente as rea­ções de fusão e como os novos elementos químicos seriam produzidos a partir de elementos mais simples. Pede para as pessoas da plateia te ajudarem. Tenho certeza que ficará bem dinâmica e divertida!

Claro! Como não tinha pensado nisso antes? Bolinhas vermelhas representariam os prótons, elementos subatô­micos de carga positiva presentes no núcleo dos átomos. As cinzas representariam nêutrons, elementos semelhan­tes aos prótons mas de carga neutra. Os átomos de hidro­gênio são os mais simples que existem e se constituem, basicamente, de um próton e um elétron: uma bolinha ver­melha seria suficiente para representar um átomo simples de hidrogênio. Para não complicar muito, decidi não atri­buir nenhuma bolinha aos elétrons, uma vez que eles não seriam estritamente necessários para explicar a conversão de hidrogênio em hélio. Em coisa de meia hora, eu mon­tei um esquema em uma folha de papel em que explicaria como hidrogênio se converte em hélio na chamada “re­ação em cadeia próton-próton”, e depois como o hélio se transformaria em carbono e oxigênio em uma outra fusão nuclear chamada “triplo-alfa”. Uma vez definidas quan­tas bolinhas de isopor precisaríamos, Aurore me ajudou a comprá-las e a pintá-las. Passamos a tarde de sábado jun­tos, preparando-as.

Chegou a noite. Eu estava meio ansioso pela palestra, pois ela seria totalmente diferente do esquema de pales­tra ao qual me acostumara. O público aumentava e eu me assustei com a quantidade de crianças na sala. Aurore se di­vertia com o meu medo. Ela me assegurava:

Chéri, desencana. A palestra será ótima! Boa sorte! — Deu-me um beijo no rosto e se sentou na primeira fila.

Às 21 horas, comecei a falar. Como eu precisaria da ajuda das crianças, achei que seria bom pedir aos pais permissão para que algumas me ajudassem na explica­ção. Com a concordância de todos, passei a explicar o que era o hidrogênio de uma forma bem simples. Uma criança me ajudou segurando uma bolinha vermelha, que representava um dos tipos de átomo de hidrogênio que existem. Depois, à medida que as reações ficavam mais complexas, pedi a ajuda de outras crianças. Elas faziam o teatro simulando as fusões entre os átomos de hidro­gênio, no início da vida da estrela, e depois os de hélio, quando a estrela estava mais velha. No final da palestra, tínhamos átomos de carbono e oxigênio cuidadosamente construídos, com a ajuda das bolinhas presas entre si por pequenas hastes de madeira. Todas as pessoas entende­ram a sequência das reações, as crianças se divertiram bastante, e a mensagem final, a de que somos filhos de uma estrela, foi bastante aplaudida.

A noite ainda estava no começo quando a visitação acabou. Embora ela não soubesse a razão da minha escolha, eu a levei para o mesmo barzinho que Romero tinha me in­dicado na fatídica noite do meu aniversário. Ao entrarmos de mãos dadas, o mesmo garçom me reconheceu.

— Ah, o cara do Creep! — O rosto de Aurore indicava que ela não entendera nada da saudação à porta. O garçom nos acompanhou até uma mesinha mais recuada. Enquanto ele ajeitava uma cadeira para que ela se sentasse, e sem que ela o visse, apontou para Aurore e li os seus lábios enquanto perguntava: é ela? Assenti com a cabeça. Ele sorriu e fez o sinal de positivo com o polegar.

— Você já veio aqui, não foi? — Aurore estava descon­fiada do modo familiar como o garçom me tratou.

— Sim. Vim aqui uma vez com o Romero. — Não men­cionei o que motivara a nossa vinda antes. Trazê-la àquele bar, depois do que ocorrera naquela noite, era a forma sutil que minha mente achara para esconjurar aquelas lembran­ças ruins para sempre.

Aurore me levou de volta ao alojamento um pouco de­pois da meia-noite. Ao pararmos, nos beijamos bastante e eu quase a convidei para irmos ao meu quarto. Talvez fosse ainda um pouco cedo para isso, talvez estivesse tarde; nos entendemos tacitamente apenas com o olhar.

— Quer almoçar em casa amanhã? Preciso apresentar à minha mãe o meu novo namorado.

— Sério? E quem é ele? — Brinquei, saboreando o pra­zer de ouvir de seus próprios lábios que eu era, sem reser­vas, o seu namorado.

— Bobo! — Ela me deu um beijo nos lábios como punição.

— Francesinha, ela não sabe ainda?

— Não. Eu lhe disse que não tenho lá muita abertura com a minha mãe, lembra?

Foi bom que eu não tivesse levado Aurore para o meu quarto pois, quando abri a porta, ele estava iluminado. Encontrei PJ, assistindo a um programa qualquer na TV. Eu não esperava o seu retorno do feriado prolongado no sábado à noite. Nós nos abraçamos; formáramos uma sólida amizade depois de dividirmos o mesmo quarto por tanto tempo.

Contei como fora a viagem e o eclipse. Quando disse que Aurore tinha ido também, ele se interessou:

— E aí?

— Pois é... — Disse sorrindo. — Digamos que ela seja agora a...minha namorada!

PJ não acreditou no que eu disse. Sério? Isso é verdade? Que bom, Baiano! Cara, como estou feliz por você! Parabéns!

Continuamos a conversar um pouco mais. Meu com­panheiro de quarto ficara genuinamente contente com o meu namoro, porém eu senti algo diferente depois que lhe contei isso. Uma pitada quase imperceptível de melancolia se misturava às suas palavras. Fomos dormir. Quando o si­lêncio profundo se fez, eu notara, pela respiração do meu amigo e pelos movimentos que ele fazia na cama, que ele não conseguia relaxar. Algo se passava pela sua mente.

Acordamos não muito tarde. No quarto, tínhamos um aquecedor de água e fizemos um café após a higiene matinal. Eu já estava arrumado para o almoço na casa do professor e PJ não tinha nada planejado para o domingo. Conversávamos vendo um programa esportivo na TV. PJ era torcedor fanático do Cruzeiro e o programa falava so­bre a campanha horrível que o time mineiro fazia em 1994. Do jeito que a coisa se encaminhava, era bem provável que o time fosse rebaixado para a Série B do Campeonato Brasileiro de Futebol em 1995. Isso azedava mais ainda o humor do meu amigo.

Súbito, batem à porta. Pode entrar, falei alto. Deveria ser alguém do alojamento, pois não esperávamos a visi­ta de ninguém. Ainda era um pouco cedo para que fosse Aurore. Uma moça hesitou na entrada. Falou através da porta entreaberta, de modo que mal se via o seu rosto: Oi! É aqui que mora o PJ?

Quando eu ia responder que sim, voltei-me para o PJ e vi o efeito que aquelas palavras produziram em meu amigo.

Ele tinha reconhecido a dona da voz e, paralisado, não se levantara nem conseguira articular uma resposta. Estava de boca aberta como uma criança. Levantei-me e abri a porta para a visitante.

— Oi! Sim, ele mora aqui. Entre, por favor. Não repare na bagunça. Quarto de homem, sabe como é...

A mulher entrou. Ela tinha uma beleza diferente, clás­sica, e vestira-se com apuro naquela manhã de domingo. Até então, PJ nada dissera, mas agora conseguira, pelo me­nos, esboçar um sorriso. Depois de alguns segundos admi­rando-a, como se estivesse testemunhando uma revelação divina, ele conseguiu falar.

— Oi, Virgínia. Quanto tempo...

Estava explicado o seu estado quase catatônico. Meu amigo jamais imaginara que tornaria a ver Virgínia na vida. Também não conseguia entender como ela estava ali, no nosso quarto. Eu fiz o que poderia naquele momento: ofereci-lhe um pouco de café e a minha cadeira, pois tí­nhamos apenas duas.

— Obrigada. — Agradeceu com um sorriso, denotan­do simpatia. Sentou-se e, vestida com uma saia, cruzou as pernas de um jeito incrivelmente sexy sem ser vulgar. Uau! — pensei. PJ apresentou-me como o seu novo colega de quarto. Ela se lembrava do Demo e perguntou por ele.

Então, mais rápido que a velocidade da luz, percebi que estava segurando vela.

— Bem, PJ, eu vou nessa. Já está na hora de Aurore apa­recer. Virgínia, foi um prazer te conhecer. — Estendi a mão e as apertamos. Eu ia fazer um gracejo qualquer, mas o PJ ain­da estava esquisito e nem sei se ele conseguiria responder.

Saí do quarto e fiquei junto de outros moradores, batendo papo à frente do “aloja”. Depois de uma meia hora, PJ passa, bem-vestido, com a Virgínia. A moçada ficou em silêncio. Assim permanecemos enquanto eles entravam no carro e partiam. Fiquei contente com o meu amigo e morrendo de curiosidade para saber o que eles fariam naquele domingo.

Mas isso ficaria para depois. Nem bem o carro de Virgínia desapareceu depois do prédio do Departamento de Engenharia de Materiais, Aurore chegou. Levantei-me e saí quase correndo, mas ainda deu tempo de ouvir um gaiato comentando: caramba! Os caras do quarto 10 tão se dando bem! Nos beijamos e fomos.

Quando chegamos à casa, o professor e Safira brinca­vam no quintal. Aurore estacionou e, quando desci, o pro­fessor me abraçou com força. Telma estava lá dentro.

— Mamãe, chegamos! — Aurore gritou.

Atraída pelo nossa chegada e pelo chamado da filha, Telma apareceu à porta. Vestia um conjunto de blusa de al­cinha e saia claras; estava maquiada como se estivesse em uma festa. Ao me ver, ela não conseguiu disfarçar a surpresa.

— Hélio? O que está fazendo aqui? Eu achava que a Aurore ia me trazer o...

Aurore, então, a interrompeu com uma risada, sentin­do prazer na peça que pregara na mãe:

— Mamãe, eu trouxe o meu novo namorado para você conhecer. Mamãe, esse é o Hélio. Hélio, essa é Telma, minha mãe. — Em seguida, deu-me um beijo no rosto e segurou minha mão. Eu sorri para Telma.

Só que ela não achara graça nenhuma no chiste. Não sorriu de volta. Disse-me apenas:

— Eu estava mesmo achando estranho que você esti­vesse vindo tanto aqui em casa. — E olhou friamente para o professor. Continuou: — Entre, Hélio. Vamos almoçar.

Caramba, pensei. Será possível que essa mulher não acha graça em nada? A frieza de Telma era chocante. Será que ela ficou contrariada por ser feita de boba ou por saber que eu era o novo namorado de Aurore? As dúvidas surgiram rápidas na minha cabeça. A maior delas, no entanto, alterou o meu ânimo: será que ela está irritada por ser forçada a con­viver com alguém que viu o que não deveria?

Entramos na sala. Por algum motivo que eu não podia atinar, Aurore me pedira para eu fazer companhia para o professor no apéro, enquanto ajudava a mãe com o almoço. O professor era um grande apreciador de licor, ao passo que eu era ignorante em relação a qualquer espécie de bebida; assim, concordei com a sua escolha por um espanhol cha­mado “43”. Bebericamos o licor em silêncio, apreciando a paisagem na varanda da casa.

Aurore anunciou que o almoço estava pronto e fomos para a sala de jantar. Elas tinham arrumado os talheres de acordo com as regras da etiqueta, o que me constrangeu um pouco, pois eu não conhecia muito bem a função de cada ta­lher. Aurore percebeu o meu desconforto e me disse para eu não me preocupar. Rapidamente, e sem que a mãe a visse, explicou para que serviria cada um deles.

O professor se acercou da mesa e sentou-se à sua ca­beceira. Aurore me sugerira onde eu deveria me sentar, um lugar ao lado do professor. A refeição começaria com a en­trée e elas já preparavam a mesa para a sopinha que tomarí­amos. Com cuidado, Telma trouxe duas tigelas para a mesa, depositando-as à minha frente. Ao fazê-lo, abaixou-se. Mais uma vez, vi o que não deveria.

A blusa de Telma se abriu e, por ela não usar sutiã, o seu peito direito se revelou inteiramente para mim. Quando vi o seu peito exposto, eu desviei imediatamente o olhar, mas os detalhes do que vira, naquele instante fugaz, não saíram da minha cabeça: era um peito redondo, que tudo indicava ser bastante firme, com bico rosado e pontudo. Ela se levantou e olhou-me com um olhar sonso, como se tivesse feito aqui­lo deliberadamente para me acuar e me seduzir.

A minha sorte é que Aurore ainda estava na cozinha e não viu a cena. O professor não deu pinta de que tivesse per­cebido. Eu pensei que o professor deveria ser um excelente ator, pois não havia forma de alguém não perceber aquilo que ocorrera há poucos instantes e ainda permanecer com expressão olímpica. Meu amigo, no entanto, parecia imper­turbável. Continuou a tomar alegremente a sua sopa. Eu não tocara ainda na tigela.

Aurore veio e se sentou na sua cadeira, enquanto Telma ocupara o assento à minha frente. Ao notar que eu ainda não havia experimentado a sopa, perguntou-me malevolamente:

— O que foi, Hélio? Não gostou do que eu fiz?

Sentia-me nauseado. Poderia ter sido um mero descuido de sua parte, e dele eu ter me aproveitado ao não me antecipar ao seu movimento, ou eu poderia ter sido vítima de uma sutil e diabólica tentativa de sedução. A minha náusea se devia, em parte, ao fato de que a visão do seu peito perfeito tinha mesmo despertado o meu instinto masculino mais selvagem, e aquilo me era nojento. Como um disco de vinil arranhado, minha mente não parava de repetir: Baby Aurore deve ter ma­mado naquele peito! A minha namorada! E se ela soubesse daquilo, como reagiria? Ela me odiaria para sempre, e seria capaz também de odiar a mãe. E se tudo tivesse sido apenas um acidente? Em pensamento, eu xingava Telma: caralho, que mulher escrota! Por que diabo essa filha da puta fez isso?

Quanto tempo demorou aquele estupor? Quando dei por mim, eu notei que todos me olhavam. Eu não respondera à sua pergunta e eles aguardavam a minha resposta. Fiz um esforço sobre-humano para tomar uma colherada da sopa. Agradeci com uma frase que se queria alegre, mas que soou bastante idiota uma vez proferida:

— Hum, Telma. Gostosa!

O duplo sentido da minha resposta involuntária quase me fez vomitar a sopa que acabara de tomar. Pela primeira vez, eu a vi rir.

A partir daquele momento, eu evitava o olhar de Telma, que parecia me perseguir durante a refeição. Como eu sabia que Aurore era muito viva e captava as coisas mais recônditas, eu fazia o esforço de parecer natural para que ela não des­confiasse de algo. A fome que eu sentia quando entrara na casa desaparecera, sendo substituída por um terrível enjoo. Comer tudo o que me foi oferecido era uma tortura. Nunca imaginara que duas horas pudessem durar tanto.

Eu me ofereci para lavar os pratos, mas pedi a Aurore para me ajudar. Eu me aterrorizava com a possibilidade de ficar sozinho na cozinha com Telma. Depois daquilo que acontecera, eu achava que ela seria capaz de qualquer coi­sa, inclusive forjar alguma situação em que eu aparecesse como um tarado. Aurore seria o meu escudo humano con­tra a própria mãe.

Para meu alívio, Aurore permanecera comigo todo o tempo. Quando terminamos de lavar e secar todos os pra­tos, o professor já estava engrenando o segundo sono na poltrona, na sala. Nem sinal de Telma, que deveria ter su­bido ao seu quarto. Aurore pegou o livro sobre mitologia grega que eu lhe dera no seu aniversário e me chamou para a varanda. Deitamos juntos em uma rede e pensei que, pela primeira vez naquela tarde, eu conseguiria relaxar. Até que Aurore resolveu ler sobre Helius e Aphrodite.

Chéri, o que você sabe a respeito de Aphrodite?

— Francesinha, eu sei que ela era a deusa do amor. Não era?

— Sim, mas não apenas isso. A ela também eram asso­ciadas a beleza e a sensualidade. — Então Aurore começou a ler o verbete de Aphrodite.

Na mitologia grega, Aphrodite era uma mulher belíssima e sensual. Seu pai, Zeus, querendo evitar lutas entre os deuses pela sua mão, resolveu casá-la com o deus da metalurgia e dos artesãos, Hephaestos. Ele, que não se sentia atraente por ter um pé deformado, ficou tão feliz por ter se casado com aquela mulher linda que a cobriu de joias, especialmente desenhadas e feitas por ele.

O que leu a seguir me fez embrulhar de novo o estômago.

Com a sua habilidade manual, ele fez para ela uma espécie de corpete para realçar o seu busto, tornando-a irresistível para os homens.

— Hummm...Parece que Aphrodite usava os peitos para seduzir os homens. Será que você cairia nessa? — Ela me mostrou uma figura no livro com uma representação de Aphrodite com o busto nu.

A náusea voltou na hora. Meu Deus do céu, não é pos­sível isso, pensei. Minhas mãos ficaram geladas e eu tentava responder qualquer coisa, mas comecei a gaguejar. Aurore continuava com a sessão de tortura.

— O interessante é que tem uma história ligando Helius a Aphrodite. Escute.

Aphrodite casou-se com Hephaestos sem o amar. Dona de um apetite sexual insaciável, ela se tornou amante de Ares, o deus da guerra. Helius, o deus do Sol, viu Aphrodite tendo relações sexuais com Ares na própria cama de Hephaestos. Helius os denunciou para o marido traído.

— Nossa, chéri! Eu não sabia que você era dedo-duro!

Ela deu uma gargalhada, mas eu não consegui acom­panhá-la no gracejo. Estava assustado demais com a for­ma como essas histórias se entremeavam com o que eu sabia. Minha mente logo fez as associações: Ares...Marte... Martius...Com um misto de medo e fascínio, eu perguntei a Aurore:

— O que aconteceu após Helius contar a Hephaestos o que vira?

Ela continuou a ler:

Hephaestos fez uma rede bem fina com ouro. Assim que fla­grou os dois amantes fazendo sexo de novo em sua cama, ele os prendeu com a rede e chamou os deuses para zombar dos adúlteros nus. Apollo, Hermes e Poseidon, no entanto, simpati­zavam com Ares, e Poseidon concordou em pagar Hephaestos para que Ares fosse libertado. Aphrodite, humilhada, retornou à sua terra natal, Chipre.

Permaneci deitado ao seu lado, ruminando meus pensamentos. Uma coisa que ela me dissera causava-me incômodo.

— Sério mesmo que você achou que Helius foi dedo­-duro? — Perguntei.

— Achei, sim. A traição de Aphrodite não tinha nada a ver com ele. Meteu o nariz onde não era chamado.

Será que ela teria a mesma opinião se a adúltera fosse a sua mãe? Esse pensamento me deixou muito mal. Eu tinha que achar uma forma de mudar de assunto logo. Ela resol­veu o problema cantarolando o refrão de Defunto Caguete, de Bezerra da Silva, fazendo a mímica do dedo-duro apon­tado em minha direção. Cobria-a de cócegas e beijinhos en­quanto ela ria gostosamente.

Só que os beijinhos, aos poucos, viraram beijões. Éramos dois jovens saudáveis que, naquele início de na­moro, começavam a se explorar. Naquela rede, nossos corpos se entrelaçavam e o desejo surgiu naturalmente. Aurore não recuou quando os meus carinhos se tornaram mais ousados. Pelo contrário: ela se encarapitou sobre o meu corpo, praticamente me imobilizando enquanto o meu fôlego sumia com seus beijos quentes. Ela se sentou sobre minha cintura e segurou os meus braços para cima, como que forçando a minha rendição. Mordia o lábio infe­rior com uma expressão deliciosamente lasciva. Disse-me baixinho, balançando a cabeça:

— Aqui não dá...

Até parecia a senha para que ela saísse da rede, pois ruídos vindos da cozinha logo puderam ser ouvidos. Eu tive que ficar na rede um pouco mais; não dava ainda para sair.

Com o cair da tarde, tomamos um café enquanto con­versávamos na varanda. O professor se juntou a nós numa conversa espirituosa e agradável. Até Telma deu o ar da gra­ça. Aurore me deixou no observatório à noite e combina­mos de nos ver rapidamente na quarta-feira à tarde, quando ela teria aula na Aliança.

Foi apenas no meio do serviço que eu me liguei que eu passara o dia inteiro sem saber o que acontecera com o PJ. Quando a visitação acabou, eu praticamente saí correndo do observatório em direção ao “aloja”. Abri a porta esbafo­rido e meu amigo estava lá, ouvindo um CD do Level 42, a banda de que ele mais gostava. O som tocava Something About You quando eu entrei.

— PJ! E aí?

Ele era todo sorrisos.

— Ô trem doido, sô. Tô aqui todo esfolado! — Caímos na risada.

Então ele me contou o que acontecera durante o dia. Virgínia faria uma viagem entre Ribeirão Preto e Rio Claro, para visitar parentes, e terminou passando por São Carlos. Naquele momento, ela lhe disse, lembrou de PJ e de como ele fora doce com ela. Aí bateu a saudade. Ela resolveu procurá­-lo de novo. A visita aos parentes ficaria para depois.

— PJ, escuta, eu não quero estragar o seu dia, mas ela não falou nada sobre todo esse tempo sem te ver? Por que diacho ela sumiu?

— Baiano, ela me contou o motivo. Ela me disse que tinha um namorado na época, um cara com quem vivia um relacionamento ioiô. Numa dessas que eles voltaram, ela não quis mais continuar comigo.

— E agora?

— Agora ela disse que largou de vez o cara.

— Você acredita nisso?

— Claro que não! Ela me disse que, se a gente voltar a se relacionar, isso não será o mesmo que um namoro, pelo menos por enquanto. Eu respondi que não esperava nada dela; aprendi a lição da outra vez. Acho que ela se sentiu mais segura que eu não ia ‘xonar dessa vez e, na lata, me perguntou o que eu queria fazer. Adivinha o que eu respondi?

— Deixe-me ver...Rezar na Catedral?

— Claro! Rezamos quatro horas direto na catedral. Aquela que fica perto do pedágio de Itirapina.

Rimos muito. Apesar de rir com ele, uma parte de mim estava apreensiva. PJ jogaria um jogo muito perigoso. Vendo-o tão feliz após aquele dia maravilhoso, eu me per­guntava se ele teria maturidade para respeitar as regras que Virgínia definira.

Depois de falar sobre como foi o seu dia, PJ quis saber como tinha sido o meu.

— Foi bastante agradável.

— Agradável? Só isso?

Fora o almoço, não havia nada que eu pudesse contar em detalhes a ele. Como relatar que vira o peito de Telma? Como contar o estranho paralelo com as lendas de Helius e Aphrodite? E, sobretudo, como explicar o tesão que foram aqueles momentos com Aurore na rede? Refleti rapidamente e achei melhor preservar a intimidade da minha namorada. Resumi o dia ao almoço apenas. Tirando a entrada, é evidente.

O semestre letivo entrava na reta final. O último feria­dão previsto para antes das férias do final de ano seria o de 15 de novembro, Proclamação da República, que cairia numa terça-feira. Os professores já tinham avisado que im­prensariam a segunda-feira, dia 14. Teríamos, portanto, um final de semana bem longo para estudar e relaxar antes dos exames finais. Todas as provas e relatórios dos laboratórios deveriam acabar no dia 9 de dezembro, sexta-feira.

Como tínhamos combinado, encontrei Aurore na Aliança um pouco antes da sua aula na quarta à tarde. Foi um encontro bem rápido. Queríamos mesmo apenas nos ver para combinar o que faríamos no feriado prolongado.

— Que tal uma seção de astrofotografia na segunda­-feira à noite? Não terá visitação para atrapalhar.

— Hummm... Mas a Lua estará quase cheia. Não é ruim para fotografia? — Ela me perguntou com uma ex­pressão de dúvida.

— Ora. Então a gente tira foto da Lua!

— Sei. Foto da Lua... — Nos beijamos com discrição.

Eu teria que estudar para as provas que se avizinhavam. Consegui me recuperar do desastre de Física II com uma excelente nota no segundo exercício. No terceiro, precisava apenas de uma nota média para ser aprovado, mas eu nun­ca estudava apenas para passar. Aurore não se aborrecera por eu não poder passar mais tempo com ela no final de semana; ela sabia que eu precisava me concentrar naquele momento. Estranhou, no entanto, quando eu lhe propus, ao invés de ir à sua casa no domingo, que almoçássemos por perto do campus mesmo. Quero ficar com você apenas, eu lhe disse. Ela concordou.

Era muito raro eu não estar de serviço no final de se­mana. Ficar sozinho naquelas noites de sexta e sábado, o que outrora eu temeria, serviu-me para que eu ficasse com mais saudade de Aurore. A noite de sábado estava linda e quente, prenunciando um verão tórrido, e noites de sábado como aquelas não eram feitas para serem vividas a sós. Eu dizia a mim mesmo que nos veríamos no dia seguinte, que almoçaríamos juntos, que passaríamos juntos a noite de se­gunda no observatório, mas nada me sossegava. Decidi ligar a ela. Não me dei conta, porém, de que a Telesp havia tro­cado o orelhão da praça. Eu não tinha um cartão para usar o novo modelo de telefone que substituíra o antigo. Minhas fichas eram inúteis agora; dormi sem ouvir a voz de Aurore.

Soprava um vento fresco na manhã de domingo. Havia poucas nuvens no céu, esparsas e alongadas pelo seu efeito. Eu esperava por ela na praça XV. Ao meio-dia, eu a vi chegando sozinha na viatura. Ela logo me viu e acenou alegremente, enquanto fechava a porta sem se preocupar em trancá-la. Estava linda. Uns rapazes folgados se viraram para vê-la me­lhor quando ela passou, o que me despertou ciúmes.

— O que foi, seu bobo? — Riu quando notou minha contrariedade. Beijou-me.

— Nada. — Fingi e procurei mudar de assunto. — Você arriscou dirigir o carro do seu pai sozinha?

— Sim. Mamãe começou a colocar dificuldades para eu vir, então resolvi pegar o carro de papai. Deu tudo certo. A viatura é acabada mas funciona.

Aurore tinha recebido o seu primeiro pagamento e insistiu em pagar o almoço. Eu não quis pedir nada caro, mesmo porque não estava com muita fome. Depois de co­mermos, voltamos à praça. Havia outros casais em alguns bancos, mas encontramos um vazio e nele nos sentamos. Ela se apoiou em meu ombro e eu a abracei. Era bom ficar assim daquele jeito e ficaria horas ali, embora eu soubesse que ainda havia uns relatórios de laboratórios de física para concluir. Antes falante, Aurore quedara-se estranhamente silenciosa depois que chegáramos ao banco. Aquele tempo em que já nos conhecíamos me permitia dizer que algo ia em sua cabeça. Perguntei se estava tudo bem.

Mon chéri, tive uma baita de uma discussão com mamãe no domingo passado, depois que eu te deixei no observatório.

— Sério, francesinha? O que aconteceu?

Ela ficou em silêncio, talvez arrependida de vocalizar o seu pensamento. Entretanto, ela já tinha começado a falar, e o que começa tem que terminar.

— Eu queria que você prometesse que não vai falar com ela sobre o que vou lhe contar, está bem?

Era o tipo de coisa bem difícil de se concordar sem que se soubesse o teor do que viria depois. Como era algo relacionado a Telma, então, seria mais difícil ainda. Em respeito ao seu pedido, eu anuí. Ela tinha despertado a mi­nha curiosidade.

Alors... — Era a forma que ela usava de vez em quan­do para começar uma frase, ao invés do “então” como todo mundo em São Carlos costumava fazer –...não vejo outro jeito de dizer isso, então serei direta: mamãe não gostou nada de saber que a gente está namorando.

Fiquei surpreso, embora a reação de Telma, ao me ver, naquele domingo, tivesse deixado isso bastante claro.

— Ela lhe disse o porquê?

— Ela...acha que você não é um bom partido para mim.

— Como assim? — Lembrando da minha pergunta, tempos depois, eu me espanto como eu conseguia ser ingê­nuo daquele jeito. Aurore suspirou e me contou tudo.

Descobri que Telma não me achava alguém que pode­ria dar um bom nível de vida a Aurore. Enquanto ela me dizia isso, a minha mente relutava em entender que alguém tivesse que “dar” uma boa vida a Aurore, como se ela não fosse capaz de conquistar aquilo por si mesma. E outra: Telma trabalhava, ganhava o seu próprio dinheiro, como poderia achar que sua filha não pudesse fazer o mesmo? Mas eu tinha entendido tudo errado. O verdadeiro motivo ficaria dolorosamente claro depois.

— Mamãe me disse que você é um nordestino sem cul­tura e sem berço. Nem pai tem. Que não entendia o que eu vi em você, uma menina bonita que fala três línguas, que conhece outras culturas, que viveu na Europa. Que sua pro­fissão não é de futuro. Ela falou até da sua cor e do seu sota­que. Foi horrível, Héliô!

Aquilo foi como um soco no meu estômago. Senti um terrível aperto no coração, como se alguém o esmagasse. Aurore continuou contando detalhes da discussão, de como o professor interviera a meu favor e de como ela o calara, mas eu já não prestava atenção a mais nada. Eu permane­ci de cabeça baixa. Aurore percebeu a minha tristeza e me abraçou. Deu-me vários beijos no rosto. Ela percebeu que tinha cometido um erro.

— Hélio, por favor, me perdoe. Eu não deveria ter lhe contado isso.

— Tudo bem, francesinha. Não se preocupe com isso.

Nunca tinha me sentido tão rebaixado na vida. Aurore não tinha culpa de ter me contado sobre a discussão, mas ela julgara errado como eu a interpretaria. Aquelas palavras me fizeram lembrar das dificuldades que eu tivera na vida, de como estudara de favor naquela escola particular em Porto Seguro, de como não tinha grana nem mesmo para lanchar. Não havia passado pela sua cabeça que eu poderia, de certa forma, concordar com Telma. Quem era eu para almejar alguém como Aurore? Meus olhos subitamente se encheram de lágrimas. Aurore se torturava por ter falado aquilo. Abraçou-me e, no meu ouvido, me disse palavras que me fizeram chorar de verdade.

— Os olhos de minha mãe te veem de um jeito que não corresponde à realidade. O meu coração, Hélio, te vê de uma outra forma. O que o meu coração vê é um homem sensí­vel, inteligente e batalhador. Você é a pessoa mais brilhante que eu já conheci na vida, e olhe que eu já conheci muitos homens inteligentes. Mas não é apenas isso o que me atrai em você. Você me mostrou que o mundo da ciência não é árido. Ele é vibrante, ele é preenchido com o lirismo que só a sua sensibilidade enorme consegue captar e me transmitir. Eu percebi isso no eclipse e aquilo me fez querer ser a sua namorada. Eu sou a sua namorada pois eu quero fazer parte desse mundo em que você vive.

Ela segurou o meu rosto com as mãos. Estávamos com as nossas frontes encostadas.

— O fato de você ter vindo de baixo te fez forte. Você vai crescer muito e se tornará um grande cientista. Você será um homem muito mais culto do que já é. Você fará dou­torado e pós-doc no exterior. Você conhecerá o mundo e aprenderá outras línguas. Eu quero ser a mulher que estará ao seu lado quando isso acontecer. Eu te amo muito, Hélio. Nunca se esqueça disso.

Ela me beijou e o nosso beijo era salgado com as mi­nhas lágrimas ainda copiosas. Ficamos algum tempo as­sim, juntos. Ela me abraçava com a força daquele amor que, agora, eu me sabia senhor. Aos poucos, eu me acalmei. Finalmente, consegui falar.

— Francesinha, agora eu tenho que ir. Tome cuidado quando você voltar para casa, tá? Eu te ligarei daqui a meia hora, para me certificar de que você chegou bem.

— Não se preocupe, chéri. — Beijou-me mais uma vez. E, no meu ouvido, disse-me baixinho: amanhã será inesque­cível, viu?

Foram apenas essas palavras que conseguiram me acal­mar e me trazer de volta aos estudos. Fiz os relatórios que faltavam. A opinião de Telma sobre mim teve o estranho efeito de me estimular a fazer os melhores relatórios que eu poderia fazer.

PJ voltara do dia que tinha passado em Ribeirão e, de novo, fingia reclamar de estar todo esfolado. Virgínia não era mesmo brincadeira. Seu bom-humor não se alterou nem mesmo quando eu lhe disse que o Cruzeiro tinha tomado de 5 a 1 do Remo. Rimos muito enquanto ele contava as lou­curas que fizeram no motel. Ao me relatar todas as posições do Kama Sutra que eles haviam experimentado, eu pensava nas palavras que Aurore me dissera quando nos despedi­mos. Pois era certo que algo ficara no ar desde que eu lhe fizera a proposta fajuta de tirar fotos em uma noite de Lua quase cheia. Seria bom me preparar.

Victor Bitter costumava tirar uns cochilos no observa­tório depois do almoço. Em cima de um armário na sala de fotografia, ele mantinha um colchão que era manjado por todo mundo. De vez em quando, ouvíamos rumores de al­gum monitor que usava o colchão para um propósito que não era exatamente dormir. Na dúvida, tão logo eu pude, na segunda-feira, eu dera uma conferida à procura de alguma mancha suspeita no colchão do Victor, mas ele me parece­ra em bom estado. Pensei em levar uns lençóis limpos para cobri-lo, de qualquer forma.

A outra parte do plano infalível seria o som. Alguém tinha levado um bom aparelho e o esquecera lá há algum tempo. Quanto à música, Romero tinha gravado uma fita­-cassette com canções que ele chamava jocosamente de Eating. Coisa fina mesmo, para dar um clima daqueles: Sade, Cutting Crew, Spandau Ballet, Pet Shop Boys, Double, Foreigner, Simply Red, Rick Astley, Bryan Ferry...La pièce de résistance da fita era Said I Loved You...But I Lied, de Michael Bolton. Aurore, coitadinha, não teria a mínima chance...

Assim eu ingenuamente pensava. Aurore, entretanto, deveria ter pensado o mesmo de mim quando chegou ao observatório às oito da noite. A campainha tocou, eu sabia que era ela, e já desci com a fita vermelha que me disse­ram que era o sinal secreto dos monitores de “não pertur­be”. Quando abri a cortina, meu queixo caiu: Aurore estava vestida e maquiada para matar. Ao seu lado, uma caixa de isopor. Eu, coitadinho, é que não teria a mínima chance...

Abri a porta.

— Oi! — Eu consegui dizer, depois de alguns segun­dos admirando-a. — Como você está linda! Isso tudo é para uma sessão de astrofotografia?

— Bobo... — Ela entrou e fechei a porta. Coloquei a fita vermelha na alça enquanto girava a chave e fechava a cortina. Ela calçava sapatos altos e tinha ficado ligeiramente mais alta do que eu. Vestia um tubinho vermelho que me permitia ver como era bonito o seu corpo.

Mesmo depois de tanto tempo, a visão de Aurore na­quela noite me faz sentir tamanha emoção que, todas as ve­zes que dela eu me lembro, as lágrimas vêm aos meus olhos. Ela era a beleza incomparável da Nebulosa de Órion, a deli­cadeza dos anéis de Saturno e o calor do Sol que se sente na pele em um dia frio de inverno.

Beijamo-nos longamente. O batom, que ela tinha meti­culosamente passado nos lábios, ficara todo borrado.

— O que é isso? — Apontei para a caixa térmica que ela trouxera.

— Abra!

Quando a abri, vi uma garrafa em meio a gelo e duas taças. Ela tinha se lembrado de um detalhe que me esca­para completamente: uma garrafa de champagne. Ria en­quanto contava a história.

— Antes de sair de casa, eu fui na adega de papai e rou­bei essa garrafa de Moët & Chandon. Ele a guardava para uma ocasião especial. Só que ele não sabia que seria minha ocasião especial.

— Caramba! Se ele descobrir que foi para tomar comi­go, ele me mata.

— Desencana, Héliô. Mas ainda bem que ele não inspe­cionou a caixa quando eu perguntei se ele poderia me em­prestar a viatura.

— Peraí! Seu pai te viu quando você saiu?

— Sim. Eu disse a ele que tiraríamos fotos hoje à noite. Ele achou meio estranho que eu tivesse me arrumado toda para uma seção de astrofotografia, mas eu despistei dizendo que a gente ia para um barzinho depois.

— Estou mesmo frito. Roubei a filha do meu orienta­dor e ainda a sua garrafa de champagne...

Só então eu me lembrei de Telma.

— E a sua mãe? Falou com ela?

— Ela não tinha chegado do trabalho quando eu saí. Ainda bem. Não queria ter que ficar me explicando para ela.

Apaguei todas as luzes e subimos até a cúpula. A luz da Lua a invadia pela sua abertura. Eu havia colocado o col­chão, coberto com um lençol limpo, onde a luz beijava o piso acarpetado. Na mesa próxima à Grubb, que eu apontara a Copernicus na Lua, o som tocava I’ve Been in Love Before.

— Cadê a máquina fotográfica? — Aurore me pergun­tou, provocando-me. Ela tinha se sentado na mesa junto ao som. Beijei-a, e assim permanecemos por muito tempo, envolvidos pelas canções. Dançamos abraçados. Abrimos a garrafa e brindamos ao nosso amor. Era a primeira vez que eu bebia champagne. A bebida logo começou a fazer efeito e ela me pediu para que eu baixasse o zíper do seu vesti­do. Quando eu terminei de fazê-lo, eu me lembrei de algo. Abraçando-a por trás, disse em seu ouvido:

— Amor, me perdoe. Eu me esqueci da camisinha.

Ela se virou. Com um sorriso nos lábios, disse-me:

— Não precisa. Eu não queria mesmo que você usasse. Não estou no meu período fértil.

Então, abaixou o seu vestido. Vestida apenas com uma calcinha vermelha, ela dançava ao som de Slave to Love sob a luz da Lua. Homem nenhum teve a ventura de ver algo assim, tão lindo e sensual.

Hoje eu sei que o Céu existe, pois Aurore abrira as suas portas para mim. Ela o mostrou a mim e me guiou gentil­mente por ele. Com cuidado, explorei cada um de seus cantos naquela jornada de amor e prazer. E, no fim do caminho, tão poderosa quanto a explosão de uma supernova, a sensação de morrer em vida. A mesma vida, vertida em líquido, com que eu inundara o ventre de minha amada. Lágrimas de êxtase mo­lharam o seu corpo ainda ofegante e coberto com o nosso suor.

Continuamos abraçados e dormimos docemente, para novamente fazermos amor quando a aurora seguinte chegou.

Já era dia claro quando deixamos o observatório. Estávamos famintos de tanto amor. A padaria na esqui­na em frente era o lugar mais óbvio para comermos algo. Depois, foi difícil nos despedirmos. Cada vez que dizíamos tchau, beijávamo-nos, e o ciclo se repetia. Quando perce­bemos que tínhamos passado mais de cinco minutos nisso, gargalhamos muito. Deixei-a na viatura e observei-a partir de volta para a sua casa.

Ao entrar no quarto, PJ ainda dormia. Procurei não fa­zer ruído quando entrei e logo escondi os lençóis que usa­mos durante a noite, mas ele acordou.

— Baiano, tu tava onde?

— Passei a noite tirando foto no observatório.

Ele me pediu para abrir o janelão, pois já eram mais de oito horas e ele tinha que estudar. A luz intensa o fez esfregar os olhos e ele se sentou na cama. Quando finalmente me viu de perto, ao pegar as minhas coisas para tomar um banho, ele apontou para mim com olhos de espanto e perguntou:

— E foto deixa marca de chupão no pescoço?

De fato, quando me olhei no espelho, lá estavam as marcas que Aurore tinha me deixado. Eu não tive outro jeito a não ser confessar minha mentira e lhe contar como tinha sido maravilhosa aquela noite. Meu amigo me deu um abraço.

— Como estou feliz por você, Baiano!

Mas ele não seria PJ se não fizesse um comentário zombeteiro em seguida:

— Rapaz, transar com a filha única do orientador, que também é o chefe do observatório, na cúpula da bagaça e, ainda por cima, tomando uma Moët & Chandon roubada dele, não é para qualquer um! Tu deixou de ser um nerd nojento pra mim, Baiano. Parabéns!

Rimos e começamos uma guerra de travesseiros.

À noite, liguei para Aurore do orelhão na praça. Ela pegou a extensão para poder falar comigo sem ser pertur­bada. Contou-me que, quando chegou em casa, entrou pé ante pé para não acordar ninguém. Seu pai lhe dera um beijo carinhoso quando acordaram, mas Telma não lhe di­rigira a palavra o dia inteiro. Quando desligamos, eu me convenci de que Telma seria um gigantesco obstáculo para o nosso amor. Eu teria que achar uma forma de aparar as arestas no nosso relacionamento, se eu quisesse continuar namorando Aurore.

Quando voltei para o quarto, permaneci algum tem­po batendo papo com PJ. Logo nos aquietamos. No dia se­guinte, a etapa decisiva do semestre começaria. No silêncio do “aloja”, e na escuridão que logo se fez, eu me pus a re­lembrar todos os detalhes da noite anterior. Ainda me era impossível acreditar que eu tivera uma mulher maravilho­sa como Aurore em meus braços. Como ela estava linda na noite anterior! Como ela era sensual! Como ela tinha sido a própria...a própria...

A própria filha de Aphrodite.

Somente isso para explicar como uma menina de 19 anos pudesse ter um instinto erótico tão precoce como Aurore tinha. Aquele instinto se manifestara quando ela prendera os meus braços na rede enquanto mordia o lábio inferior, ao dançar para mim vestida apenas com aquela calcinha vermelha e ao gemer de prazer tão despudorada enquanto fazíamos amor. Então, uma sensação estranha bateu em mim. A mesma sensação que Hephaestos deveria ter tido quando recebeu, de Zeus, a mão de Aphrodite. A sensação de entrar no Olimpo da felicidade para dele ser expulso por obra e graça dele mesmo, Helius. A noite foi passada assim, com pesadelos vívidos, como se sobre mim tivesse se abatido a maldição decerto rogada por Hephaestos a Helius — ele vivia feliz sem precisar saber que era traído pela esposa. Acordei naquela quarta-feira, dia 16 de novem­bro de 1994, com a sensação opressora de que coisas terrí­veis aconteceriam.

No final daquela tarde, eu me encontraria com Aurore na Aliança Francesa, logo depois de ficar algumas horas com o professor Proust na minha Iniciação Científica. As aulas da manhã foram assistidas sob o signo da angústia. Nunca acreditei em sexto-sentido, em pressentimento, mas alguma coisa me incomodava. Quando as aulas acabaram, fui almoçar no bandejão. Não consegui comer nada, em­bora sentisse fome. Voltei ao meu quarto. Deitei-me para descansar um pouco: o que seria aquilo? Pensei em ligar para a minha mãe, mas eu sabia que ela não estaria em casa. Tampouco poderia explicar o que sentia para Aurore. Quem me ajudaria?

Quando eu me levantei para encontrar o professor Proust às duas, PJ chegou repentinamente. Conversamos. PJ chegou falante, já antecipando os planos para o final de semana com a Virgínia. Eu o ouvia, mas nada de conse­guir falar o que me incomodava. Tomei um susto quando olhei a hora: eu já estava atrasado mais de quinze minutos. Arrumei-me e saí voando para a Física.

Ao chegar na entrada do prédio, vi Fernando saindo. Eu estranhei a sua presença ali. Quando passou por mim, ele estava com a expressão crispada e, mesmo o chaman­do, ele não me respondeu. Prossegui até a sala do professor Proust. Então o maior pesadelo de minha vida começou.

Vi o professor Proust caído sobre sua mesa. Sua mão estava sobre a foto de Aurore.

Aquele era o pressentimento que eu tinha. Meu cora­ção, ligado ao dele, intuiu a dor imensa que finalmente o mataria. Pois eu sabia, assim que o vi, que não mais haveria volta. Nunca mais eu lhe lembraria uma equação que ele es­quecera. Nunca mais eu o veria dizendo tac, tac, tac enquan­to explicava algo. Nunca mais ele me abraçaria. Nunca mais dividiríamos um licor no apéro em sua varanda. Nunca mais o acompanharia em uma jornada na viatura pela campagne são-carlense. Nunca mais observaríamos os astros juntos. Ele não me levaria ao LNA. Ele não levaria a sua filha para o altar quando ela se casasse comigo. Ele não veria os netos que eu e Aurore lhe daríamos.

Corri até ele já chorando. Diferente da outra vez, ele não esboçou nenhuma resposta quando o chamei. Várias pessoas vieram quando ouviram os meus pedidos de socorro, e rapi­damente alguém chamou os bombeiros. Quando chegaram, permitiram-me que eu seguisse com ele na ambulância. Vi quando tentaram inúmeras vezes reanimá-lo. Tudo em vão.

Chegamos à Santa Casa e logo o levaram para a emer­gência. Algumas pessoas da Física também chegaram e tive que contar a mesma história várias vezes. Muitas cho­ravam, pois o professor Proust era um homem bastante estimado no departamento. Conversei com uma pessoa da recepção e contei como eu o havia achado em sua sala. Informaram-nos que o caso dele era bastante grave e que deveríamos aguardar.

Não demorou muito e uma médica, com aparência consternada, veio lá de dentro. Informaram-na que eu viera com o professor e ela se dirigiu a mim.

— Boa tarde. Eu sou a Doutora Laura, a médica que atendeu o professor Proust. Você é da família?

Talvez alguém me criticasse depois por usurpar um lu­gar na sua família. Eu era o mais próximo a isso que o pro­fessor tinha ali, sozinho, em meio a estranhos. Pela primeira vez, tive a coragem de o chamar pelo apelido e de dizer o que o Prof. Dr. Jean-Philippe Proust representava para mim:

— Sim, eu sou. Jean-Phi é o meu pai.

A médica pediu-me para que eu fosse até uma sala com ela. Havia duas cadeiras e nelas nos sentamos. Naquele mo­mento, eu já sabia o que eu ouviria.

— Ele chegou aqui com uma parada cardiorrespirató­ria. Era um quadro bastante grave. Tentamos durante mais de quarenta minutos reanimá-lo, mas, infelizmente, ele não resistiu. Sinto muito. Seu pai faleceu.

O efeito daquelas palavras foi devastador. Até então, eu ainda mantinha um fiapo de esperança de que ele pudesse se recuperar. Fui tomado por uma sensação de vazio e de tristeza que jamais imaginara existir. Chorei como o filho que ele nunca teve.

A médica prosseguiu em sua triste função.

— O seu pai já chegou aqui em óbito. Tudo indica que foi um infarto fulminante devido ao histórico de cardiopa­tia. Como ele foi trazido de outro local, nós teremos que enviar o corpo para o IML. Nós mesmos não poderemos liberá-lo. Mais uma vez, eu sinto muito. Queríamos muito ter salvado o professor.

Nada mais poderia ser feito. Minha mente começou a gritar Aurore! Aurore! Ela estava ali perto, na Aliança Francesa, e eu rezava para que ninguém se lembrasse dis­so e resolvesse ligar para ela com a notícia. Ainda havia a questão de quem avisaria a Telma. Eu calculava que uma outra pessoa poderia fazê-lo. Entre ela e a Aurore, a minha escolha era mais do que óbvia.

No caminho até a Aliança, correndo, eu chorava, en­xugava as lágrimas e tornava a chorar. Além do desespero de perder o professor, eu me mortificava com a ideia de que eu poderia ter evitado aquilo. Por que eu me atrasei para o nosso encontro? Pois, se eu tivesse chegado mais cedo, o Fernando não teria como falar para ele o que o levou ao infarto. Mas não havia como saber se Fernando tinha mesmo ido procurá-lo! Eu repassava as memórias e não me lembra­va se havia alguma sala aberta, alguém que poderia ter tes­temunhado alguma discussão entre eles. A sala do professor era um pouco isolada e não vi ninguém no meu caminho até ela. A forma como Fernando tinha saído do prédio era estranha, mas aquilo não era o suficiente para implicá-lo na morte do professor. A estranha frase que ele dissera na noite em que fora expulso do observatório, a de que o professor teria uma bela surpresa, não poderia ser entendida como uma ameaça. Além do mais, do que Fernando poderia ser acusado se até a médica acreditava que o professor tivera um infarto fulminante?

Se Fernando fora o responsável por induzir a morte do professor, o que ele poderia ter dito para que aquilo aconte­cesse? Então veio a ideia odiosa de que ele deveria ter contado que tinha o caso com Telma. Mas não havia prova alguma de que aquilo fosse verdade! Minha mente estava presa em um turbilhão de perguntas e recriminações. E se eu os tivesse investigado, mesmo que fosse uma intromissão indevida? E se se confirmassem as minhas suspeitas, como eu contaria ao professor? Quem garante que ele não me repudiaria por se meter em sua vida? Quem garante que ele não sabia do caso e resolvera se silenciar por amor ou pela Aurore? Tudo isso passava pela minha cabeça enquanto eu corria até a Aliança.

Então cheguei ao prédio. A secretária se assustou com a minha aparência quando, quase sem fôlego, eu pedi para falar com Aurore.

— Ela está em aula agora. Quem é você?

— Meu nome é Hélio. Eu sou o namorado da Aurore. Preciso muito falar com ela, mas eu quero que você a cha­me calmamente. Há alguma sala aqui em que eu possa falar com ela a sós?

— Desculpe, Hélio, mas nós não estamos autorizados a interromper nenhuma aula.

— Você não entendeu. — Falei mais firme. — Por favor, eu preciso falar com a Aurore, e tem que ser agora. Traga-a calmamente aqui. É um assunto de família. Preste atenção: diga a ela que a diretora precisa falar com ela rapidinho. Não deixe ela notar nada de estranho.

A secretária entendeu, pelo meu jeito, que eu falava sério.

Eu esperei em pé na sala. Depois de alguns instantes de silêncio, logo ouvi passos que se aproximavam. A porta se abriu e Aurore entrou. Ao me ver, sorriu com uma expres­são de surpresa.

Héliô? Ainda é cedo...

— Francesinha...Meu amor... — Eu lhe falei com uma expressão pesarosa.

Aos poucos, eu vi o seu sorriso se transformando quando ela entendeu por que eu estava ali. Ela me pergun­tou com voz e olhos de dor:

Papa?

Eu balancei a cabeça. Puxei o seu corpo para mim e eu a abracei enquanto ela chorava o choro mais triste que eu já vi. Eu tentei lhe dar força, mas nós dois tínhamos perdido um pai. Ficamos juntos no nosso sofrimento.

Telma chegou um pouco depois. Em respeito a Aurore, eu procurava disfarçar o escrutínio ao qual eu submetia todas as suas reações. Eu estava convencido de que ela era parte da cadeia de eventos que tinha levado à morte o professor Proust. Queria, a todo transe, achar alguma evidência que reforçasse a minha suspeita. No primeiro teste que eu lhe dera, ela fora aprovada; cumpriu apropriadamente o ritual de recém-viúva, chorando de uma forma contida e digna. Um tanto fria, eu diria, mas eu lhe concederia o benefício da dúvida, então.

Aurore era outra história. Era evidente que ela sentira muito mais a morte do pai. Eu queria ajudá-las, mas não sabia como. Em um momento em que Aurore era consolada pelos colegas da Aliança, eu me aproximei de Telma:

— Você esteve na Santa Casa?

— Não. Vim direto para cá, pois eu tive a mesma preo­cupação que você teve.

Eu achei por bem lhe pedir desculpas por não ter avisa­do justamente porque Aurore era a minha prioridade. Ao me certificar de que Aurore não poderia nos ouvir, continuei:

— Fui eu que descobri o professor desacordado. Deixaram-me ir com ele na ambulância. A médica da Santa Casa que tentou reanimá-lo foi que me deu a notícia do fa­lecimento. Ela me explicou que eles encaminhariam o corpo para o IML e que talvez demorasse um dia para a liberação.

— Sim, Hélio. Eu conheço o procedimento.

Ficamos um pouco em silêncio. Ela não tomava a ini­ciativa de me perguntar nada mais sobre o que ocorrera e, tampouco, ela me pedira qualquer espécie de ajuda. Meio por desencargo de consciência, disse:

— Olha, Telma, você sabe que pode contar comigo para o que precisar.

— Não se preocupe, Hélio. Eu pedi para uns parentes meus virem de Prudente e eles estarão aqui amanhã pela manhã.

Aquilo encerrava a conversa. Eu não tinha como perguntar se ela queria que eu fosse com elas para casa. Talvez Aurore me pedisse isso, mas ela estava tão devasta­da que sequer conseguia falar. Ajudei-a a entrar no carro de Telma, beijei-a, e vi quando elas foram embora com lá­grimas nos olhos.

Voltei sozinho para o alojamento. PJ estava no quarto e me abraçou quando eu entrei. Fiz um breve relato de tudo o que acontecera até o momento em que Telma e Aurore ti­nham ido embora. Havia algumas coisas, no entanto, que eu não poderia lhe contar. PJ nada sabia sobre as minhas des­confianças a respeito de Telma e o fato de ter visto Fernando saindo do prédio quando eu chegara à Física. Eu não dividi com ele, portanto, a culpa que eu sentia por ter me atrasado, justamente porque ele poderia achar que eu, indiretamente, o responsabilizasse pelo que aconteceu.

Naquela mesma noite, liguei para a minha mãe e cho­ramos juntos por um homem que ela não tinha conhecido, mas que tinha sido tão importante para o seu filho. Ela sabia sobre Aurore e ansiava pelo dia que a conheceria.

Aurore. Meu amor. Ela não saía da minha cabeça. Quão sozinha e triste ela deveria estar! Como eu queria estar naquele momento com ela, consolando-a! Eu não poderia forçar a minha presença naquela casa, entretanto. Aquilo me machucava muito. Era como se Telma estives­se nos afastando, justamente no momento em que Aurore mais precisava de mim.

Eu não consegui dormir naquela noite. Deitei-me no beliche e, 2:22 da manhã, ainda acordado, desisti. Fui para a praça em frente ao “aloja” ver se eu encontrava um pouco de paz no silêncio. Sentado em um banco, eu senti a sua presença. Senti seu abraço como naquele dia em que ele me acolhera em sua sala. Olhei para o meu lado, mas não havia ninguém. Subitamente, senti cheiro de rosas, doces como o cheiro do perfume de sua filha que preenchera a cúpula na noite em que eu lhe mostrei Netuno. Eu deveria estar deli­rando. Melhor voltar para o alojamento.

Parada em frente à praça, sem que eu tivesse percebido antes, estava a viatura.

Dela me acerquei. Como seria possível que ele a ti­vesse estacionado ali, e não perto do prédio da Física? Pus a minha mão sobre a carroceria e senti um choque. Eletricidade estática, meu cérebro de Físico treinado me dizia. Era ele me dizendo para ocupar o seu lugar, meu co­ração de filho me dizia. Assim o fiz. Sentei-me no banco do motorista, deitei-o, e só assim consegui dormir em paz. Quando a aurora chegou, eu acordei mais tranquilo, com um senso de missão. Minha missão seria cuidar da sua fi­lha. Minha Aurore. Meu amor.

Meus olhos percorreram o interior da viatura. Sobre o banco do carona, os seus óculos. Curioso, pensei. Eu me lembrava claramente de que ele estava com os mesmos óculos quando eu o achara em sua sala. Peguei-os e pensei em devolvê-los quando eu as visse de novo.

Liguei para Aurore às nove horas. Telma atendeu. Eu consegui ouvir vozes ao fundo e inferi que os seus paren­tes tinham chegado. Ela não se opôs quando eu lhe propus que gostaria de ficar com elas naquele dia até o momento do enterro, marcado para o final da tarde. Assim, peguei a bicicleta do PJ e fui.

Aurore era o próprio abatimento quando eu a encon­trei. Ao me ver, pôs-se a chorar novamente. Abracei-a. Ela me contou que a mãe tinha deixado no ar o desejo de se mudar para Presidente Prudente. Aphrodite fugindo para Chipre, pensei. Por que ela quereria ir embora de São Carlos? E como seria para nós dois tão longe? Eu tinha que fazer al­guma coisa para que isso não acontecesse, mas o quê?

Telma já tinha providenciado tudo para o funeral. Pelo menos, para alguma coisa, a sua frieza servia.

Tão jovens, nunca tínhamos passado por aquela experiência de nos despedirmos de uma pessoa. Como num pesadelo, ali estava o professor Proust. Ele parecia dormir, como das vezes em que o flagrava cochilando em sua sala de­pois do almoço. Quando o viu, Aurore desmaiou, mas logo voltou a si. Ela o tocou e fiz o mesmo. Lembrei-me, então, que eu lhe trouxera o meu último presente. Tirei do bolso uma moeda de um real e a pus sob as mãos do professor. É o pagamento a Caronte? — Aurore me perguntou. Disse que sim, e só ali eu vi um leve sorriso se esboçar em seu rosto.

Telma se aproximou do outro lado do caixão. Ainda bem que ela não me viu colocando a moeda nas mãos do pro­fessor, pensei. Estávamos tão compenetrados observando o professor que demoramos a notar a chegada de um homem. Ergui os olhos e não acreditei no que eu vi: era Fernando.

Não me cumprimentou e dirigiu-se a Aurore.

— Aurore, eu vim aqui prestar as minhas condolências. Sinto muito pelo seu pai.

De todas as pessoas que eu poderia imaginar que pu­dessem vir para o velório do professor, jamais passara pela minha cabeça que justamente ele tivesse a cara de pau de o fazer. Fuzilei-o com o olhar. Aurore, educada, agradeceu.

O simbolismo da cena era evidente: eu e Aurore, abra­çados de um lado, Fernando e Telma do outro. Separando-nos, o corpo do professor. Fernando percebeu o meu olhar de raiva e o sustentou. Aurore não notou o nosso duelo pois estava com a cabeça encostada em mim, como a dizer a Fernando: esse é o meu namorado. Telma permanecia géli­da, um braço cruzado sob o busto e a mão do outro braço sobre o queixo.

Então, num supremo ato de desprezo, Fernando se abaixou e beijou a testa do professor. Ao se abaixar, a cor­rentinha que ele usava no pescoço saltou para fora da cami­sa. Pendurado na correntinha, um crucifixo diferente. Um crucifixo no formato do Cruzeiro do Sul.

Olhei para Telma aterrorizado. Ela me fez o sinal de silêncio discretamente, pondo o indicador sobre os lábios.

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