Minha mãe ainda estava fraca, mas já conseguia sustentar a própria voz com mais firmeza. O olhar dela, embora cansado, voltava a brilhar aos poucos. Era como ver alguém renascer de dentro da dor — e isso me acalmava.Alexandre estava ao lado dela, discreto, com as mãos nos bolsos do jaleco. Ele a observava com atenção clínica, mas também com algo mais. Um cuidado que não se ensinava nos livros. Um cuidado que, eu sabia, vinha por mim.— Doutor... obrigada. Eu jamais poderei agradecer o suficiente pelo que fez — disse minha mãe, com esforço, os olhos marejados.Ele sorriu de leve, assentindo.— Fique bem, Laura. Se recupere com calma. Não há o que agradecer... sou médico. E, além disso — ele olhou rapidamente para mim — tenho grande estima por sua filha.Meu coração vacilou. A boca secou. A garganta trancou.Sorri fraco. Precisei desviar o olhar.Eu sabia o que vinha depois. Ele havia me avisado. Quatro dias ali. Quatro dias sem descanso, ao meu lado, lidando com tudo. Era hora de part
O momento que eu mais evitava — ou talvez, secretamente, esperava — finalmente chegou. Retornei à cidade. Retornei ao hospital. Apresentei uma proposta de divórcio decente à Maria Clara, tentando ao menos preservar a dignidade que restava entre nós.Mas falar com Heitor… isso parecia cada vez mais impossível.Ele havia viajado para um congresso. Ana Liz, ao que tudo indicava, nada sabia. Os dias passavam corridos demais. A rotina me engolia. Fiquei dias fora e, ao voltar, era como se nada tivesse mudado — o trabalho se acumulava, os pacientes se sucediam, e eu mal respirava entre uma cirurgia e outra.De Maria Vitória, pouco soube desde a alta da mãe. Talvez ela estivesse me evitando. Talvez para o meu próprio bem. E eu… já não sabia o que queria de verdade.Quinze dias. Quinze dias sem uma palavra.Eu queria notícias dela. Mas se nada vinha de lá… por que eu deveria ir atrás? Não queria sufocá-la. Não queria parecer dependente.Heitor, por sua vez, me deixava no vácuo. Ignorava minha
O sono foi embora assim que Alexandre desligou. Saber que meu pai estava afundado em problemas me afligia ainda mais. Eu não queria um pai drogado. Queria aquele pai do sítio — o mesmo que entrou no carro sem pensar duas vezes, que mesmo com a habilitação vencida dirigiu quilômetros só para me levar de volta para perto da minha mãe.Eu só queria uma vida perfeita. Pelo menos isso.Deixei as lágrimas escorrerem, molhando o travesseiro. Como ele tinha chegado àquela situação? Era bonito, forte, rico — tudo o que outros homens desejavam ser — e, além disso, inteligente. A imagem dele sendo gentil e dedicado com os pacientes, nos dias que passamos no interior, me veio à mente. E, junto com ela, o medo de perdê-lo.Pela manhã, conversei com minha mãe, sem entrar em muitos detalhes.— Você não está indo atrás desse homem, está, Mavi? — perguntou com a voz desconfiada. — Ele é casado, não é?Assenti à última pergunta… e talvez à primeira também.— Não podemos continuar aqui, mãe. Pelo menos
Saí tarde do apartamento de Maria Vitória. Precisava descansar. Conversar com ela tinha sido bom — mais do que eu esperava, talvez até mais do que merecia. Deixei-a sozinha. Ela precisava de descanso. Eu também. Era necessário manter minha palavra. Não queria causar mais danos a Heitor — nem a ela.Cheguei ao meu apartamento, tirando a blusa de mangas molhadas. Pensava nela: era admirável o quanto era intensa… e corajosa. Tomei um banho quente, preparei uma sopa simples. Mas, ao entrar no quarto, parei. Um volume sob as cobertas me fez congelar.Olhei fixamente para a cama, tentando entender o que via.— Quem está aí? — perguntei, com a voz baixa, contida. Apesar do susto, me mantive calmo. A porta não estava aberta quando saí. Como…?Sem resposta, me aproximei. Puxei o edredom com cuidado.A mulher, meio sonolenta, resmungou algo e se virou, incomodada com o frio.— Maria Clara? — perguntei, surpreso.Ela não respondeu. Dormia. Ali. Na minha cama.Suspirei fundo, exausto. — Maria Cla
Era complexo para ele, eu sabia. E decidi respeitar.Saí do quarto evitando o olhar da minha mãe na sala. Alexandre fez o mesmo, embora tenha largado o paletó no encosto da cadeira.— Boa tarde, eu seguro isso aqui — ele disse, como se aquilo pudesse apagar o que acabara de acontecer.Fui direto para o meu quarto. Abri a mala, deixei as lágrimas descerem em silêncio. Peguei uma calça fina qualquer — precisava cobrir o que doía mais por dentro do que por fora.— O que aconteceu? — minha mãe perguntou, como se não soubesse.— Nada… eu só vou tirar o short — respondi, tentando soar indiferente.Ela segurou minha mão com força, me fazendo parar.— Mavi, olha pra mim. O que está acontecendo? Eu não posso permitir isso. Filha, aquele homem te arrasta para um quarto, vocês discutem por causa de uma roupa… ele é o quê, seu dono, por acaso?Neguei. Ele não era. Mas eu também não queria mais atrito entre nós.— Não é por ele… os homens estavam olhando — menti, tentando proteger todos, até mesmo
Era uma quinta-feira.Mais uma cirurgia encerrada. Tirei as luvas, a touca, o avental. Lavei as mãos em silêncio. Já no fim do procedimento, ouvi a voz de Heitor ecoando pelo corredor. Conhecia aquele timbre de longe. Cumprimentava os funcionários, simpático como sempre — e, por isso mesmo, eu sabia que ele queria algo.Continuei ali, focado no ritual pós-cirúrgico. As técnicas preparavam o paciente para a transferência. Eu seguia em direção à saída da ala quando senti a presença dele ao meu lado.Silêncio.Nem um cumprimento. Só passos sincronizados. Ele entrou comigo na sala, como quem sabia que tinha o direito. Peguei a prancheta, fiz as anotações da cirurgia, devagar.— Conversaram? — ele perguntou, cortando o ar como uma lâmina.Inspirei fundo, a caneta ainda entre os dedos.— Não há o que conversar, Heitor. Eu sou um homem. A sua filha é uma mulher. E, sinceramente, não lembro de ninguém te interrogando sobre quem você leva pra cama. Tem?Ele ficou em silêncio, mexendo na manga
Os dias foram passando, pouco a pouco. Minha mãe se recuperava, enquanto eu... parada, inquieta, encarava a grade curricular da faculdade onde meu pai havia me matriculado. A prova que fiz para entrar nem podia ser comparada a um mini teste da minha antiga faculdade. Fácil demais. Com exceção dos estágios e da monografia I e II, ainda sobravam componentes curriculares que eu já tinha cursado.Na primeira aula de estágio, eu me senti uma pré-médica — se é que esse termo existe. Era como se estivesse brincando de ser médica. Os colegas faziam perguntas básicas, coisas elementares, e o professor me entregou a papelada como se já soubesse de algo. Disse que o Hospital Fortaleza Vital havia aberto novas vagas de estágio. De alguma forma... tive a impressão de que ele sabia. Sabia de onde eu vinha. Sabia quem era meu pai. Era o tipo de privilégio disfarçado que eu nunca precisei.Mal saí da aula, fui abordada por uma professora alta, ruiva, bonita. Eu estava acostumada a correr atrás dos pr
Após a conversa com Heitor, eu me afastei de vez de Maria Vitória.Não a encontrava nos corredores do prédio, tampouco no elevador, mas eu sabia a cor e o modelo do seu carro. Sabia o percurso que fazia para ir e voltar da faculdade.Os dias passaram como passam sempre que não se quer encará-los: rápidos demais. Assustadoramente rápidos.A recuperação de Laura foi boa. Silenciosa. Clínica. Fiz minha parte como médico. Como amigo, também. Mas como homem... falhei. Falhei com Maria Clara e, agora, observando pela janela, percebo que também falhei com Maria Vitória.Continuo falhando.Maria Vitória estava lá. Matriculada. Estudando. Seguindo a vida. Não me procurava, tampouco me evitava — ela existia à margem. Discreta, como se tivesse aprendido a ser invisível dentro da própria casa. Dentro da minha vida.Eu a vi algumas vezes, de longe. Passando com a mochila pendurada em um ombro só, o crachá torto no peito, os fones nos ouvidos. Olhar firme, testa franzida. Um vulto conhecido em uma