O Guerreiro Fantasma e A Senhora da Vida e da Morte
O Guerreiro Fantasma e A Senhora da Vida e da Morte
Por: Gisele Abrantes
Capítulo I - Um Dia como Outros

Dezoito horas. Em uma sexta feira como todas as outras, qualquer um ficaria feliz naquele momento, por maiores que fossem as filas dos transportes públicos e os congestionamentos. Mas enquanto todos se preparavam para ir para suas casas, Sofia deixava a redação para o segundo turno de trabalho. Pensava quando, em seus anos de faculdade, sonhou que chegaria àquele ponto – presa em um carro com o ar condicionado quebrado, com o motorista e o fotógrafo indo em direção a mais uma cobertura das noitadas da Lapa, para mais uma noite mal dormida sabia-se lá ao som do quê. Abriu o laptop e acessou os dados da pauta – cobertura da final de um festival de bandas. Riu. Alguns poucos anos atrás era ela nos palcos dos festivais universitários. E quando poderia imaginar que justamente o fato de já ter participado de uma banda de folk metal a levaria à vaga de repórter no suplemento semanal para jovens no segundo jornal mais vendido da cidade, com uma coluna de eventos, em sua maioria de gosto duvidoso, escolhidos pela editora? Quantas vezes não se flagrou imaginando se o público consumidor realmente prestava atenção nas duas páginas com pequenas fotos e algumas notas sobre os acontecimentos da semana? De qualquer forma, era aquilo que pagava as suas vultosas dívidas com o cartão de crédito, muito bem justificadas por roupas, perfumes, sapatos, incensos, livros, apetrechos para as aulas de ioga (as quais não frequentava havia já algum tempo) e o curso de alemão, que o pai insistia que ela fizesse, apesar de já ter obtido quase todos os certificados de proficiência na língua germânica. Isto sem contar as novidades eletrônicas: câmeras, celulares, peças de computador. Sabia que devia se controlar, mas tudo aquilo era demais para ela... A sorte é que dividia o aluguel com Milena, sua amiga desde os idos tempos de faculdade. Se não fosse a boa condição de Milena, certamente estaria morando com sua mãe em algum lugar do Sul onde ela desenvolvia mais uma de suas pesquisas e recebia um salário para lecionar em uma faculdade. E o pior é que as festas do fim de ano já se aproximavam e sabia que teria que ir para lá...

Sofia deixava o pensamento voar por todos esses pontos, quase um exercício mental para não se estressar com o calor ou o trânsito, e nem sequer reparou que o carro já havia chegado ao seu destino. Despertou daquela espécie de transe com Carlos, o fotógrafo, lhe chamando.

- Sei que será uma noite infernal com muito barulho lá dentro e que preferiria ficar aqui, mas eu não posso fazer o seu trabalho.

- Obrigada por me lembrar disso Carlos. – Disse Sofia, saindo do carro com sua maxi bolsa cheia de livros, o laptop no braço esquerdo e uma garrafa de isotônico cor de rosa na mão direita, e sem perceber, deixou a caixa com os óculos cair no chão.

- Eu não sei por que traz uma bolsa tão grande para ainda carregar mais coisas nas mãos... – Disse o colega.

- Porque eu carrego muitas coisas e nem tudo cabe na bolsa, por mais que ela seja enorme. E não olhe para mim com esse ar acusador. Sabe muito bem que uma mulher prevenida vale por duas. Quantas vezes me pediu um guarda chuva emprestado e eu tinha?

- No fundo da bolsa depois dos estojos de maquiagem, casacos, conjuntos de canetas, biscoitos velhos e o que mais mesmo? Ah, sim, um livro de I Ching.

- As canetas eram para marcar o que eu estava lendo.

- E nesse caso você precisava de todas as doze.

- Claro. Doze é um número muito interessante, sabia?

- Um é melhor, e certamente reduziria o seu peso... Francamente, me pergunto como você encontra a chave de casa?

- Garanto que ela está em um lugar bem seguro. – Provavelmente no fundo escuro da bolsa, o que a faria jogar todo o conteúdo no chão do corredor do prédio até encontrá-la, às cinco da manhã de sábado. – E agora, vamos parar de falar de minha bolsa, e vamos trabalhar. Eu vou ficar lá em cima, nos encontramos no final, ok?

- Sim, comandante. – Respondeu Carlos, batendo continência.

- E já sabe, pegue as fotos das bandas e de todos os tipos inusitados do local. E não se esqueça de pegar os telefones para pedirmos as autorizações depois. Ah! E não se aproveite disso para dar em cima das meninas, muito menos das de menor, ok? Alguma pergunta?

- Posso beber uma cerveja?

- A sua câmera tem estabilizador de imagens?

- Sou um profissional!

- Tudo bem, beba a sua cerveja, está um calor pavoroso aqui dentro mesmo... Eu vou para o meu posto. – Ela estava irritada de ter que passar sua noite de sexta ali, queria fazer o que tinha que ser feito, torcer para que não houvesse um grande atraso, que as bandas ao menos fossem boas, e que ligassem o ar condicionado da casa o mais rápido possível.

Sentou-se em uma mesa no mezanino, perto de um alvo para dardos. Logo o garçom veio lhe oferecer algo para beber, o que ela dispensou, a princípio. Pediu apenas uma porção de castanhas de caju, que ia mordiscando enquanto lia o “programa” do espetáculo. Seis bandas, estilos variados, uma ponte para confusões. Vasculhou o material que havia conseguido sobre cada uma delas, nada de muito interessante, a princípio. Na verdade, nada que valesse à pena, se não fosse o patrocinador do festival e todas as propagandas na TV. Nem mesmo o prêmio parecia muito atrativo – simplesmente uma gravação de cd. Observando a ficha dos supostos produtores, já sabia que os ganhadores teriam horas de stress pela frente. Colocou mais uma castanha na boca quando sua atenção foi tragada por uma cena no palco. Um rapaz alto, mulato, de calça cáqui e camisa quadriculada discutia com um rapaz um pouco mais baixo, camiseta azul, calça jeans surrada, cabelos longos e desalinhados. Nada de importante. Chamou o garçom, pediu algo para beber, e continuou com o que fazia, até os seguranças do local intervirem no que acontecia lá embaixo. Foi então que percebeu que o rapaz de camisa azul olhava em sua direção. Abaixou a cabeça e começou a digitar algumas linhas no laptop.

Finalmente o show começou. Uma banda de pop rock, outra que misturava rock com MPB, um grupo de rock meloso moda, um grupo de j-rock (algo bastante inusitado), uma banda de metal (será que alguém ainda ousava?) e uma banda cheia de letras questionadoras, a dos dois rapazes brigões do início do evento. O rapaz mulato era o vocalista, e presumivelmente o outro, o guitarrista. Eram até bem afinados, e mesmo sem ter grandes chances, pareciam os melhores músicos dali, além dos rapazes da banda de rock-mpb, mas aquele era um estilo que lhe irritava tremendamente... Restava esperar. Quase uma hora por conta de um DJ péssimo, para vir o resultado. Como já era esperado, a banda de rock meloso havia vencido o concurso, para euforia dos presentes no local, seguida pela banda que misturava rock com MPB, e pela banda de metal, uma grata surpresa. Mais uma música da banda vencedora, e enquanto os vitoriosos comemoravam no palco, Sofia já arrumava tudo o que havia espalhado pela mesa, quando o rapaz da calça cáqui e camisa quadriculada passou por ela, esbravejando com outros dois:

- Pra mim já chega! Se vocês querem continuar se inscrevendo nesses festivais para perder, para continuar escrevendo letras que ninguém se importa em escutar, tudo bem. Eu estou fora!

A confusão continuou em outra mesa, no canto. O vocalista gesticulava, arregalava os olhos, parecia o próprio Otelo furioso porque Desdêmona havia preferido Iago... Ao menos, em seus pensamentos... Havia, porém, só três integrantes ali. Onde estava o guitarrista? Pelo visto, aquela era uma banda que além de perder o festival, parecia acabar ali... Era uma pena, escreveria algo sobre as letras das músicas, que o vocalista tanto criticava. Finalmente o queixoso se levantou da mesa e passou furioso, esbarrando em alguém sentado o bar. O rapaz, de cabelos castanhos longos e arrepiados virou para olhar, mas pareceu não se importar muito.

Muito bem! Pensou Sofia consigo mesma, lamentando-se pelos rompantes de terceiros, quando foi surpreendida por uma voz perto de si.

- Oi. – Disse o rapaz de blusa azul, agora do lado dela.

- Oi. – Respondeu ela, sem compreender o que acontecia.

- Você é Sofia Schultz, não?

- Sim, sou eu.

- Eu fui a alguns dos seus shows.

- Mesmo?

-É uma pena que a sua banda tenha acabado. Faz dois anos que estamos órfãos de boa musica folk... O que aconteceu?

- O que aconteceu com vocês hoje? – Respondeu Sofia, ironicamente.

- Você viu, não? O Pedro... Ele simplesmente não sabe o que quer. Aliás, ele sabe, quer ser famoso, nem que para isso tenha que pintar o cabelo de azul, e tocar algo que não é a dele, nem a nossa. Isso já aconteceu antes, na verdade, é a quarta vez que trocamos de estilo. Mas já estou meio farto dessa coisa meio esquizofrênica.

- De fato, deve ser cansativo. – Comentou Sofia.

- Ehr, posso me sentar? Oferecer algo para beber?

- Na verdade, já estamos de saída, o carro do jornal já está lá fora...

- Jornal? ... Ah, sim. Então agora você é uma repórter.

- Sim, estava aqui apenas cobrindo o evento, então...

- E o que achou das músicas?

- O que eu achei?

- Sim. Gostou? Seja sincera.

- Bem, musicalmente, são muito bons, como devo dizer... Num todo. As letras são interessantes, talvez devessem se aprofundar mais em alguns temas antes de abordar filosofia de uma maneira tão superficial, é claro, mas cumpre bem o papel de fazer as pessoas pensarem.

- Isto significa que foi bom ou ruim? – Perguntou o rapaz, levantando a mão para o garçom – Duas cervejas, por favor.

- No geral, foi bom. É claro que não se trata de um Pink Floyd...

- Nunca foi minha pretensão. – Disse o rapaz, abrindo um sorriso irônico. – Apesar de admirá-los muito. – Parou para esperar o garçom servir as bebidas. – Quanto ao aspecto filosófico, devo admitir que as minhas principais influências estão em Kirkegaard e Sartre, que não são lá muito fáceis de serem explicados... Saúde. – Disse, levantando um brinde. – Uhm... Desculpe... Eu estou aqui levantando um brinde e nem disse meu nome... Gabriel.

- Muito bem, Gabriel. Então, lê, Sartre, Kierkegaard, gosta de Pink Floyd e já foi em um show meu.

- Em alguns, para ser mais exato.

- E você tinha idade para isso?

- Quantos anos pensa que eu tenho?

- O suficiente para ter que entrar de penetra em alguns deles.

- Tenho vinte e dois anos. Estou terminando a faculdade de história, defendendo meu projeto final de curso, sobre os povos saxões para ser mais exato.

- Parabéns, senhor acadêmico de vinte e dois anos de idade. Então... Eu tenho uma pergunta para o senhor.

- Se eu souber responder.

- Está tentando me impressionar?

- Bem, não estou contando nenhuma mentira... Mas acho que seria demais pedir o seu telefone, não?

- Está certo.

- Mas eu poderia lhe dar o meu. Você pode ter alguma dúvida sobre os saxões... Ou querer alguma gravação rara do Pink Floyd... Ou talvez ver algumas fotos antigas suas no palco enquanto bebemos algo...

- Não me parece muito tentador.

- Bem, de qualquer forma, são oito números inofensivos. – Disse, ele, colocando a mão na mesa para pegar um guardanapo.

- Em pensar que uma árvore morreu para que fizesse isso...

- É verdade... Mas eu não ia pegar o guardanapo. – Disse, pegando o celular, para digitar os números e depois entregar para Sofia, completamente surpresa. – Já está salvo.

- Você... Você se acha máximo, não?

- Não! Muito pelo contrario. Sou cheio de defeitos e ser extremamente cabeça dura é um deles. Mas se quiser me conhecer melhor, já tem o número. E sinceramente, eu acho que mereço um crédito pela ousadia. – Disse ele, se levantando. – Até a próxima.

- E se eu não te ligar?

- Até a próxima.

E dizendo isso, Gabriel se retirou, deixando Sofia perplexa com o celular na mão. Rapazinho impertinente! Jogou o celular no fundo da bolsa, junto com todo o restante que estava em cima da mesa, quando Carlos, o fotógrafo chegou.

- Foi impressão minha ou aquele garoto estava dando em cima de você?

- Carlos, querido, eu prefiro não comentar sobre isso. Agora, se não se importa, é hora de irmos, isso aqui já deu o que tinha que dar hoje.

***

Sofia chegou em casa cerca de uma hora depois, o sono lhe pesando nos olhos. Tomou banho, escovou os dentes, ligou o ar condicionado e se jogou na cama. E não demorou muito para pegar no sono, menos ainda para que os sonhos lhe viessem à cabeça, porém o daquela noite era de alguma maneira estranho.

Havia neve, muita neve, até a altura dos joelhos, e ela tentava correr, mas não conseguia. Tentava alcançar uma cabana onde alguém lhe esperava. Era um homem loiro, alto, olhos de um azul peculiar, tão claro que beirava um tom de cinza, uma barba rala e loura interrompida em uma pequena faixa no canto esquerdo do queixo, que parecia uma cicatriz que se estendia até quase o pescoço e uma ferida no ombro que parecia infeccionar. Ele tremia e já parecia delirar, deitado sobre pele de algum animal, a face molhada de suor. A esta altura outra figura apareceu, mais alta, os cabelos mais longos e ruivos.

- Não temos muito tempo. – Dizia ele. – Você trouxe?

Ela então tirava uma espécie de punhal de alguma parte da manta de peles branca que vestia e começava a gravar com ela alguns símbolos no chão enquanto balbuciava algumas palavras que não compreendia, apesar de fazerem sentido naquele contexto. E então, ergueu o punhal para desferir um golpe contra o homem que ardia em febre. Mas estranhamente aquilo não parecia lhe preocupar, pois logo depois era ela a cortar sua própria mão direita, e pronunciando algumas palavras em uma língua estranha, deixava que as gotas de seu sangue caíssem sobre o homem ajoelhado diante dela.

- Fique comigo... – Dizia ela enquanto gotas de seu sangue caíam sobre a boca do moribundo.

- Eles estão vindo! – Gritava um menino que entrava pela porta, os cabelos de um castanho acobreado, cacheado, as feições lembrando muito o ruivo alto.

- Não temos mais tempo! Tem que fazer! – Disse o ruivo se colocando ao seu lado de joelhos, antes que ela o encarasse nos olhos e cravasse o punhal em sua barriga e repetisse todo o procedimento.

- Eu estou morrendo... – Disse o loiro segurando sua mão enquanto o som de tambores começava a surgir ao fundo.

- Você mentiu para nós! Estamos morrendo! – Gritava o ruivo se contorcendo.

Um barulho seco se ouviu antes de um leve crepitar. O telhado começava a queimar. Ela olhou para o homem loiro.

- Beba. – Ordenou ela lhe entregando a mão, mas ele já parecia estar morto. Ela tentou reanimá-lo, com uma ternura que indicava que eram bem próximos, o suficiente para ver a tristeza nos olhos dele diante de uma suposta traição. Mas então ele fechava os olhos, no exato momento em que a porta da cabana era arrombada. Em um instante um grupo de homens raivosos com cães enormes estava diante dela, abrindo espaço para um homem alto, moreno que a olhava com um sorriso irônico, enquanto ela segurava o punhal ainda mais fortemente até que...

O interfone tocou. Insistentemente.

- Alô, Sofia! Aqui é a Mila, esqueci a chave no hospital, pode abrir pra mim? – Dizia a amiga do outro lado da linha.

Sofia apertou o botão do interfone ainda torpe de sono, deixou a porta aberta e sentou-se no sofá. Estava atônita. Que sonho estranho aquele... O que era aquilo?

- Oi querida, que sorte que estava em casa! Eu te acordei não? Desculpe... O que houve? Eu sei que eu te acordei, mas você parece péssima.

- Um sonho... Um sonho estranho...

- Uhm... Interessante. O que havia nesse sonho para te deixar tão impressionada assim?

- Esta é a mesma pergunta que eu faço... Parecia um filme, eu era uma espécie de feiticeira e tinha um ritual... E uns símbolos... Runas! São runas, é claro que eram... Apesar de nunca ter visto exatamente aquelas... E dois homens...

- Uhm... Bonitos? – Perguntou Milena, bastante interessada.

- É só um sonho...

- Bem, que seja, mas certamente é melhor sonhar com homens bonitos do que com feios.

- Bem, eram homens como os de antigamente. Um parecia mais velho do que o outro, a face mais fechada, barba, bigode cabelos longos meio loiros, meio ruivos... O outro parecia mais jovem, ou pelo menos... Eu não me lembro direito, só que os cabelos eram mais claros, os olhos me chamaram mais a atenção... Pareciam ter saído de um filme de vikings... Saxões! Mas é claro! Gabriel!

- Espere, espere, espere! Eu escutei Gabriel? É isso mesmo? É um nome de homem que saiu da sua boca?

- Por favor, Milena!

- Por favor, não!

- Como não?

- Sabe... Sabe há quanto tempo não fala de algum homem que eu já não saiba quem é? Então fale logo! Quem é esse Gabriel?

- Alguém extremamente chato que eu conheci essa noite. Ele... Veio com uma conversa sobre faculdade de história e pesquisas sobre saxões... Isso deve ter ficado na minha cabeça. Não pode?

- É possível... Mas você não falou o mais importante. Ele é interessante?

- Ele é dois anos mais novo do que eu.

- Não seja preconceituosa! Ele é bonito?

- Um pouco mais alto do que eu, cabelos castanhos, longos, um ar de desgrenhado, um nariz grande e olhos claros.

- Uhm... Parece bonito.

- Se quiser, dou o telefone dele para você.

- Ele te deu o telefone?

- Gravou na memória do meu celular.

- Nossa, então a coisa é mais séria do que eu imaginava! E convenhamos, o garoto tem talento!

- É um guitarrista medíocre, um letrista pífio.

- Ele não precisa tocar para você, precisa sair com você. Há quanto tempo você não tem um namorado? Um casinho sequer? Além do que... Foi ele quem inspirou o sonho, deve ser ele quem vai poder te ajudar a decifrar.

- Será? ...– Perguntou Sofia, desconfiada.

- Por que não?

- Milena, eu não sei por que, mas acho que você está falando isso para me empurrar para esse garoto.

- Se você não colocasse todos os pretendentes para correr debaixo de críticas e foras, talvez eu tivesse um candidato favorito, mas já que esse menino resolveu dar uma de corajoso... Só poderia mesmo estudar essas coisas, pra te bancar tem que ser um viking.

- São saxões.

- Que seja. Viking, saxão, celta, gaulês, grego, romano, algum homem das cavernas com uma clava pra te bater na cabeça, ou com uma espada bem grande pra matar todos os monstros que você criou pra você e te seqüestrar. Se bem que a idéia do seqüestro não é de todo ruim, afinal, ela até tem seu charme...

- Como se precisasse disso!...

- É a prova de que sou mais bem resolvida nesses assuntos do que você. E não estou falando só em relação a namorados não...

- Afinal, você também não tem nenhum.

- Isto não vem ao caso. Sofia, você vai do trabalho para casa, de casa para o trabalho, a exceção da ioga e do alemão. Nos finais de semana, quando pode se divertir, sair com seus amigos, se assim podemos chamar as outras pessoas que conhece além de mim, prefere ficar em casa, de frente para o computador, e quando sai... Sei lá para onde vai.

- Eu sou esquisita.

- Não, é anti-social.

- Sabe que está falando besteira, não?

- Eu? Estou falando o que eu penso sobre você.

- É uma pena que esteja enganada.

- Ok. Então me prove que eu estou enganada. Hoje, na casa da Carlinha vai ter uma festa. Casa de frente para a praia do Recreio, comida boa e bebidas geladinhas, e uma rodinha de violão... Mais bicho grilo seria impossível. Só vão estar os meus colegas da faculdade e do hospital.

- Legal, um luau cheio de médicos...

- Aproveite e chame esse Gabriel. Na pior das hipóteses será uma boa ocasião para descobrir se ele é mesmo um chato, e se ele for pior do que isso, colocamos ele para correr de lá. E, além disso, terão uma noite inteira para ele tirar todas as suas dúvidas sobre os saxões, quem sabe até algo mais...

- Milena, menos...

- Ok. Que conversem apenas. No seu caso, já será uma evolução. Então? Posso avisar a Carlinha que você vai e que vai levar alguém?

- Avise que eu vou.

- Pra ficar reclamando e sair de lá sozinha meia hora depois?

- Está bem... Eu ligo.

- Agora!

- Milena, eu vou ligar, está bem? Agora, eu vou voltar a dormir.

- Está bem. Mas se você não ligar eu juro que eu mesma faço isso!

- Isso realmente é necessário?

- Grandes problemas exigem medidas drásticas.

- Com licença, Milena.

Sofia voltou para o quarto e novamente se atirou na cama, fechando os olhos esperando que o sono viesse, e de preferência, voltasse para aquele sonho estranho, mas alguma coisa a impedia. Rolava de um lado para o outro da cama, enquanto a imagem daquele homem se contorcendo em dores com o olhar de desapontamento atormentava seus pensamentos. Aquilo era muito real! Talvez Milena estivesse certa. Talvez Gabriel pudesse ajudar, pelo menos falando sobre esses homens. Isso acontecia com ela... Quando algo ficava inacabado, precisava estudar aquilo, rever o assunto sempre ajudava tudo a ficar mais calmo. E no final, que mal havia? Gabriel havia sido o único homem em um ano que havia insistido, mesmo depois de todas as suas repostas malcriadas... Pegou o celular na bolsa, correu os nomes na agenda... De fato, estava lá. Respirou fundo e apertou o botão para chamar.

E como chamou. Estava quase desligando quando Gabriel atendeu do outro lado da linha, a voz de sono.

- Alô?...

Naquela hora Sofia pensou em desligar. Mas do que adiantaria? Ele já teria o seu número, e seria muito pior ter aquela criatura ligando quando bem entendesse. Pensava nisso quando ele continuou. – Alô?... Sofia?

- Escute, eu não costumo fazer isso, mas de fato eu tenho algumas dúvidas sobre os saxões.

- Eu disse que teria.

- Escute, você é alguma espécie de mago ou coisa assim?

- Por quê?

- Nada. Escute... Tem algo para fazer essa noite?

- Por acaso não. Vai me fazer algum convite?

- Tenho uma festa para ir, na casa da amiga de uma outra amiga... Todos médicos... E apesar de serem pessoas legais, eu...

- Você não quer passar a noite inteira ouvindo sobre operações e prefere os saxões.

- Exatamente.

- Bem... Eu acho então que você está formalmente me convidando para sair.

- Poderia simplesmente responder sim ou não?

- Onde e que horas eu te pego? – Respondeu Gabriel para o desespero de Sofia.

***

Quinze para as dez da noite, Milena já estava pronta. Uma bermuda branca com uma blusa de estampas geométricas e uma sandália prateada combinavam muito bem com a pele morena e o cabelo escuro que ela terminava de pentear. Estava tão bonita, pensava Sofia na porta do seu quarto, lutando insistentemente contra a franja que parecia não querer ficar no lugar. Mas por que fazia aquilo? Por acaso tinha alguma pretensão de ficar mais bonita do que a amiga, expert nesses assuntos, praticamente uma modelo saída de um editorial de moda? Na verdade, atribuía sua demora diante do espelho única e exclusivamente à sua vaidade incompreendida. Não para aparecer bonita para os outros, muito menos para Gabriel, a mala da vez, mas para ela mesma, e para isso, seu vestido preto, a sandália de couro de salto alto e os cabelos originalmente loiros, mas agora tingidos de ruivo, estavam muito bons. É claro que perguntariam se ela era alguma espécie de bruxa, se era Halloween, ou se ela era prima da Vandinha Addams,como de costume, mas aquela era ela. E era feliz de ser daquela forma.

Não precisava de baladas para se sentir bem. Na verdade, estaria muito bem em casa naquela noite, vendo um bom filme na TV, descansando de uma semana cheia de trabalho... Talvez procurasse mais um pouco e se dedicasse ao seu livro de contos que um dia publicaria. Talvez descesse, andaria um pouco até a praia, tomaria uma água de coco...

Pensava sobre o fim de semana perfeito quando o interfone tocou.

- Sua carruagem chegou, Cinderela. – Anunciou Milena, um sorriso enorme nos lábios, contrastando com a resposta da amiga, um olhar que seria capaz de enforcá-la. – Lamento informá-la, mas essa sua cara não vai ajudar em nada.

- Não esperava que ajudasse mesmo...

- Sofia, minha flor... Eu estou fazendo isso para o seu próprio bem.

- Por quê? Por acaso eu sou alguma inadequada socialmente que precisa da sua ajuda para se enturmar ou arrumar um namorado?

- Não, mas ao mesmo tempo, é uma linda jovem que não tem nenhuma das duas coisas.

- Mas eu vivo bem assim. Escute, para que eu vou querer um namorado? Eu mal paro em casa. Gosto de ir a lugares que a maioria das pessoas não gosta. Gosto de filmes que a maioria das pessoas não gosta. Eu até escrevo sobre coisas que a maioria dos adolescentes que lêem o suplemento em que trabalho não gostam. O que eu vou fazer com um homem do meu lado, querendo assistir futebol, correr na praia, rindo de programas de TV sem graça, repletos de mulheres seminuas, e criticando a minha dedicação à minha profissão?

- Pois aí está mais um motivo para dar atenção ao Gabriel. Pelo que me falou, ele não faz muito o gênero que você descreveu... E ainda tem um carro bonitinho... – Disse Milena, espiando pela janela.

- Não, certamente ele faz o gênero cara interessante até me dar um fora depois que eu dormir com ele.

- O que não nos mata nos fortalece... – Disse Milena, fechando a janela e pegando a chave de casa.

- Ótimo incentivo... Vou me lembrar disso quando vier chorar no meu ombro da próxima vez... – Disse ela sarcasticamente, pegando a bolsa e passando a alça pela cabeça.

- No seu caso, querida, é melhor do que nada. – Disse Milena, fechando a porta. – Seria demais te pedir para tentar se divertir hoje, ao invés de estragar tudo com a sua capacidade de criticar tudo e todos?

- Prometo que me esforçarei!

- Então, repita comigo. Eu, Sofia Schultz,..

- Eu, Sofia Schultz...

- Prometo solenemente me esforçar para aproveitar a noite...

- Prometo solenemente me esforçar para aproveitar a noite...

- Sem comentários sem noção...

- Eu não faço comentários sem noção. – Interrompeu Sofia.

- E prometo me esforçar para dar uma chance ao Gabriel.

- Está bem, eu prometo, agora, seria demais pedir para fingir que somos duas pessoas normais? Ele está bem ali na frente.

- Muito bem, vejo que já está cumprindo sua parte no trato...

- Olá! Boa noite! – Saudou Gabriel, dando dois beijos, um em cada bochecha de Sofia e repetindo o mesmo com Milena. – Você deve ser a Milena. Obrigado pelo convite.

- Não precisa agradecer... Na verdade... Eu é que tenho que fazer isso. Sabe, tem um certo residente de cardiologia que é uma graça que me chamou para fazer companhia a ele e... Eu não queria deixar a Sofia sozinha, então ela me falou de você, e que tinham gostos em comum.

- É mesmo? – Perguntou Gabriel.

- Milena é um pouco exagerada...

- Ela falou dos celtas.

- Saxões. – Responderam Gabriel e Sofia.

- Sempre fui péssima em história.

- Não tem problema. – Comentou Gabriel sorridente. – Então, vamos?

- Vamos! – Disse Milena, abrindo a porta de trás do carro, enquanto Gabriel abria a do carona para Sofia, que agradeceu com um sorriso, mas quando ia se sentar, reparou em um monte de folhas encadernadas sobre o banco.

- Tem umas folhas aqui.

- São para você. É a minha monografia. Como pode ver, eu realmente estudo isso. – Respondeu ele, fechando a porta e correndo para o lado do motorista.

- Ele é bem bonitinho. – Comentou Milena antes de Gabriel entrar no carro. – Ah, Gabriel, poderia parar no posto antes? Queria comprar algumas coisas pra levar pra festa.

- Sem problemas. Recreio, aí vamos nós! Incomoda se eu ligar o rádio?...

- Não, de forma alguma. – Respondeu Sofia, folheando o trabalho de Gabriel ali mesmo.

Ela seguiu parte do caminho lendo aquelas folhas. Era um bom trabalho, de fato. Datas de invasões, chefes tribais, dissertações sobre os motivos dessa ou daquela guerra... Folheava o volume encadernado com espiral quando Gabriel a assustou.

- Quer alguma coisa?

- O quê? – Só então Sofia reparou que já haviam parado no posto de gasolina e Milena já estava dentro da loja de conveniência.

- Eu te assustei?

- Não... Eu estava... – Disse ela, mostrando o caderno. – Você escreve bem.

- Obrigado. Eu pensei que você fosse ler depois, mas pelo visto está bem interessada.

- Desculpe, mas eu não consigo disfarçar meu interesse por algum assunto.

- Muito bem, mas será que apesar do grande interesse você estaria com fome? Quer alguma coisa?

- Ah, sim. Um chá gelado seria bom.

- Chá gelado... – Gabriel repetiu, mas Sofia já voltava para a leitura, como se fosse capaz de devorar o livro. Ele foi e voltou e ela ainda estava lendo, mas dessa vez, o recebeu com mais simpatia.

- Obrigada. – Dizia ela, levando a latinha até a boca. – Onde descobriu essas coisas?

- Em livros, sites na internet...

- Livros confiáveis?

- Bem, é minha monografia de final de curso, se não for um trabalho acadêmico, não me formo.

- Poderia me passar os nomes depois?

- Claro... – Respondeu ele, mas como ela não parava de ler, tentou puxar as folhas da mão dela. – Não acha que está escuro para ler?...

- Espere! – Disse Sofia, segurando a mão de Gabriel fortemente. Aquela sensação estranha do sonho novamente, quando leu um nome, no meio de tantos outros – Raewald...

- É apenas uma lenda...

- Lenda?

- Raewald era um chefe guerreiro, com um poderoso exército invencível...

- Continue. – Pediu Sofia, chegando mais perto de Gabriel, como se ele contasse um segredo.

- Alguns mitos falam que era enfeitiçado. Raewald era casado com uma poderosa e bela feiticeira, Gunnhild... – Dizia ele, aproveitando para se aproximar de Sofia também.

- E o que aconteceu com eles?... – Perguntou Sofia, sem perceber o quão perto estava de Gabriel.

-Eles... Eles... – Estava difícil para Gabriel continuar, com os olhos verdes de Sofia tão suplicantes, já estava praticamente sobre o banco do carona quando, mais do que de repente, sentiu a moça estremecer, como que por um arrepio, e a lata de chá que Sofia havia pedido virou, derramando todo o chá sobre ela, Gabriel e a pesquisa.

- Ai meu Deus! Desculpe... Eu não queria... – Sofia estava tão nervosa.

- Calma, está tudo bem... – Disse Gabriel, abaixando para pegar a lata ao mesmo tempo que Sofia. Terminaram batendo as cabeças, o que os fez rir. – Desculpa.

- Tudo bem, eu que sujei o seu carro...

- Não, eu que devo ter esbarrado... Está tudo bem? Não quebrei a sua cabeça? Eu disse que sou cabeça dura.

- Está tudo em ordem, aparentemente.

- Seu vestido está molhado.

- Sua camisa também. E a sua pesquisa... Já era. – Disse Sofia, levantando o monte de papel molhado e borrado.

- Tudo bem, era uma cópia... – Respondeu Gabriel, agora também tímido. – Bem, eu acho que não estamos mais em condições de ir a uma festa.

- Você está certo.

- O que fazemos então?

- Bem, tem a Milena... – Disse Sofia, apontando para a amiga que vinha com duas sacolas cheias de garrafas e latas de batatas fritas.

- Você realmente quer ir nessa festa?

- Não. – Dizia Sofia quando Milena abriu a porta

- Deixa comigo. – Disse Gabriel antes de Milena entrar.

- Nossa, o que aconteceu aqui que está esse cheiro? – Perguntou Milena, sentando no banco de trás.

- Tivemos um pequeno acidente. Se você não se importa, eu e Sofia vamos deixar você na festa e voltar pra trocar de roupa...

- Não! – Exclamou Milena, feliz. – Não me importo não...

- Então, vamos. – Disse Gabriel, piscando o olho direito para Sofia e dando a partida no carro, enquanto Milena aproveitava para falar no ouvido da amiga.

- Está me saindo melhor do que a encomenda, hã?

- Milena, menos, por favor.

Gabriel parecia estar interessado em ficar sozinho com Sofia o mais rápido possível, pisava fundo no acelerador. Tanto que chegou logo na porta da casa da amiga de Milena, que rapidamente saltou do carro, e antes de entrar na casa, passou a cabeça pela janela do carona e não perdeu a oportunidade de fazer uma piada.

- Cuide bem da minha amiga, Gabriel. Juízo, crianças.

- Boa festa, Milena! – Disse Sofia, cortando logo a amiga, que finalmente entrou na casa.

Um instante de silêncio se fez, quando finalmente Sofia percebeu o que havia acontecido.

Ela e Gabriel estavam sozinhos, aqueles olhos verdes, o sorriso sem vergonha...

- Então eu cumpri a minha parte, dona Milena está em sua festa para se encontrar com o seu residente, e nós estamos aqui, com as roupas sujas de chá... Então...

- Então?... – Sofia achou melhor fingir que não compreendia.

- O que faremos agora?

- Ehr... Eu... Eu não sei...

- Podemos ficar no carro, de repente em um lugar mais reservado... Ou... Se quiser, podemos ir a algum lugar, mas então terei que voltar para casa e trocar a blusa. Na verdade, poderíamos aproveitar para eu te mostrar os livros que você queria saber...

- Na verdade a sua camisa não está me incomodando nem um pouco. – O que ele queria com aquilo? Levá-la para sua casa para ver livros, cantada da mesma família do ouvir música, ver filmes... Mas então percebeu que Gabriel puxava a camisa para frente, como se para soltá-la. - Quero dizer, é claro que deve estar chateado com o fato de estar todo molhado e... Isso é doce, e deve estar bem melado...

- Bem, se preferir, posso levá-la em casa...

- Não é necessário. – Negou, imaginando o que ele queria com aquilo. - Não agora.

- Posso pensar então que quer ficar comigo assim mesmo, neste estado?

- Ehr, sim... O fato de você estar com a camisa suja não me incomoda... É claro que estou sendo egoísta, afinal, fui eu que pedi esse chá, que sujei o carro...

- Bem, fui eu que estava quase em cima de você... – Disse ele, se aproximando novamente. – Aliás, essa latinha poderia ter escolhido outra hora para nos surpreender, não? O que acha de continuarmos a história de onde paramos? – A proximidade era no mínimo surpreendente para Sofia, que sentia o coração quase pular pela boca.

- Ehr... O que acha de darmos uma volta? Está uma noite tão linda lá fora... Olha só essa lua! E as estrelas? Pode continuar a contar a história na beira do mar, hã?

- Humpf... Então quer olhar as estrelas... Pois nós olharemos as estrelas.

- Obrigada. – Disse Sofia soltando a fivela do cinto de segurança, agora muito mais tranqüila.

- Posso fazer uma pergunta? Já foi tão bem tratada assim antes? – Perguntou Gabriel, quando abriu a porta para Sofia.

- O que é isso? Controle de qualidade?

- Digamos que... É, é sim. – Respondeu ele, causando risos em Sofia. – Bem, pelo menos estou te fazendo rir, e eu li em algum lugar que mulheres gostam de homens que as fazem rir.

- E os homens? Gostam de que tipo de mulheres?

- De todas... – Disse Gabriel, rindo, mas logo tratando se consertar. – Bem, mas eu não sou exatamente esse tipo de cara. Eu sou um pouco mais exigente.

- Devo me sentir lisonjeada então?

- É claro. Na verdade, uma mulher como você deveria se sentir lisonjeada de ser quem é. Talvez ainda não tenham lhe dito isso, ou talvez tenham e você não acredite, ou talvez seja apenas uma mulher mais bem resolvida, que convive bem com isso mas... Você é incrível. – Disse ele, fazendo com que ela risse de novo. – Não! Não ria, não! Eu... Eu fiquei encantado por você desde a primeira vez que te vi.

- Em um palco, quando deveria ter dezoito anos de idade.

- Ehr, sim...

- Gabriel... O que você viu, o que você sonhou não sou eu.

- O que eu vi foi uma garota muito bonita, super talentosa que gostava das mesmas coisas que eu. E então, quando eu te vi ontem foi... Foi muito legal porque eu sabia que era a chance que tinha para falar com você, te conhecer, sabe... Quando eu ia imaginar que você gosta de chá gelado com pêssego, ou que se interessaria tanto pela minha pesquisa, que gosta de olhar as estrelas e andar na beira da praia?...

- Eu sou um ser estranho...

- Não é não. Bem, pode ser para os colegas da sua amiga...

- Eu... Gosto de ficar sozinha.

- Bem, todos nós temos os nossos momentos de ficar sozinhos...

- Eu gosto de fazer isso para pensar. Para aprender, não porque eu não gosto de pessoas, mas porque tem coisas que funcionam melhor quando estamos sozinhos... A verdade é que eu acho que eu sempre fiz tudo sozinha. Sou filha única, cresci brincando sozinha, porque minhas brincadeiras e meus gostos eram muito absurdos para as minhas coleguinhas. Eu... Gostava de pegar os livros da minha mãe e imaginar as aventuras que podiam acontecer e o momento em que saber o numero atômico do urânio seria útil, ou falar alemão, ou jogar tarô, ou simplesmente saber que o cheiro de chuva é por causa do ozônio.

- É?

- É.

- Bem, prefiro continuar com o cheiro de chuva... Ozônio? Para que saber que é ozônio?

- Pois é... Eu imaginava que era tóxico, e prendia a respiração quando chovia. Depois eu pensei que poderíamos salvar a camada de ozônio aproveitando esse da chuva... – Disse Sofia, fazendo Gabriel rir. – Não ria!

- Seria uma tarefa heróica.

- Eu queria uma. Também lia muitos contos de fada, mitologia... Adorava aquelas estórias e ficava imaginando as minhas... – Dizia, suspirosa. – Acho que a mais interessante foi a banda... Mas agora, a mocinha cresceu, o tempo se foi, o sonho acabou, e continuo com os devaneios, agora no papel, é claro.

- Não deveria pensar assim. Todos os dias a vida coloca na nossa frente possibilidades de várias histórias grandiosas.

- Acho que a minha não.

- Como não? Quem sabe, agora, nesse exato momento, algo de muito importante está para acontecer?

- Está falando de nós dois?

- Não exatamente, mas é claro que não me oponho nem um pouco. Agora é a hora do beijo? – Perguntou ele, fazendo biquinho.

- Você é um ridículo. – Disse Sofia, meneando a cabeça.

- Hora errada?

- Totalmente. Mas... E você?

- Que tem eu?

- Conte um pouco da sua história.

- Ah, não tem nada muito diferente disso que você está vendo não... Bem, se te serve de consolo, eu também gostava de ler mitologia e alguns contos de fada, de preferência os que não tinham princesas. Eu me lembro de me imaginar enfrentando os monstros que o Ulisses enfrentou, me sentia quase uma espécie de super herói, até o dia em que levei minha primeira surra. Não demorou muito pra perceber que eu era um pouco diferente dos outros meninos, que eu adorava jogar bola, mas gostava mais de jogar vídeo game, tocar violão, escrever... É claro que isso me fazia ter sucesso com as meninas.

- Muito bem, Don Juan.

- E assim foi acontecendo até eu chegar aqui. Como vê, eu não sou rico, não sou bonitão, nem faço o estilo bem sucedido. Minhas músicas não são nenhuma obra prima, minha pesquisa foi rejeitada para o mestrado, porque aparentemente não há relevância no tema... Mas talvez ainda não tenha chegado a hora do meu ato heróico. Enquanto isso, seguimos em frente, não?

- Ou paramos para ver o mar. – Disse Sofia, agora, deixando a calçada para ir para a areia. – É maravilhoso morar em uma cidade em que se pode parar para esfriar a cabeça e olhar para o mar... – Gabriel meneou a cabeça. – Ah! Por favor...

- Acho que já estou acostumado a olhar para o mar e não esfriar a cabeça.

- Para mim é tão... Intenso... – Disse ela, fechando os olhos para ouvir o barulho das ondas, deixando que o vento batesse em seus cabelos, até sentir um arrepio. – Ai!

- O que houve?

- Acho que foi tão intenso que cheguei a me arrepiar.

- Parece mesmo que você curte esse lance de “intenso”.

- Sim. Para mim, tudo tem que ser intenso, profundo. Sou escorpiana, não poderia ser diferente...

- Profundo como o seu interesse pelo Raewald.

- Do gênero...

- Conhecia a lenda?

- Não sei bem ao certo...Talvez eu já tenha lido em algum lugar, por isso o nome não me pareceu estranho.

- Mas se leu, deve ter ficado impressionada então.

- Talvez... Existe algo que impressione?

- Eu não sei... Talvez, se conquistas heróicas, exércitos imortais criados por uma feiticeira forem impressionantes para você.

- Os saxões acreditavam nisso? Digo, em imortais?

- Bem, é o que conta a lenda... É provável que esse Raewald tenha sido um homem poderoso com um exército bem treinado, o que naquela época, junto com uma rainha sacerdotisa de algum culto pagão, gerava esse tipo de crença...

- Então ela não era feiticeira?

- É claro que era! Segundo a lenda, era feiticeira, e das boas. Diziam que vinha das terras do Norte, e que era protegida pelo próprio Wotan. Alguns diziam que era uma espécie de valquíria... Eu prefiro a idéia da feiticeira que devia também ter seus dotes em combate, afinal, as mulheres de onde ela vinha também eram metidas a guerreiras... E o nome...

- Sim, mas conte a história.

- Bem, conta-se que Raewald pediu que buscassem para ele uma rainha nas terras do Norte, uma mulher poderosa, protegida de Wotan e com a beleza de Freya, pois só ela seria capaz de assegurar seu trono.

- Como assim?

- Raewald tinha um problema, um irmão gêmeo, não sei se idêntico ou não... Mas o fato é que, para um rei, ter um irmão gêmeo sempre era sinal de mau agouro, pois representava que ele sempre poderia ter seu poder contestado. Algumas versões dizem que ele de fato havia usurpado o trono, que o outro era o verdadeiro primogênito. Outros, dizem o contrário... Fato é que parece que ele foi mesmo contestado pelo irmão, mas antes, é claro, pediu que a esposa criasse para ele um exército de imortais, e sendo uma boa necromante... – Contava Gabriel quando Sofia sentiu um arrepio passar por todo o seu corpo, fazendo com que soltasse uma espécie de grunhido. – O que houve?

- Isso me dá arrepios...

- Assustada com lendas saxônicas?

- É claro que não! – Resmungou Sofia, mas sabia muito bem que aquela história havia lhe provocado uma sensação estranha, algo que lhe dava nos nervos, uma energia que corria por todo o seu corpo e que parecia que seria capaz de explodir.

- Então por que está pálida?

- Eu não estou pálida.

- Parece que você viu o próprio exército da necromante na sua frente.

- Como se esse tipo de coisa existisse...

- Era bem real para os homens que os enfrentavam em batalha.

- Mas... Os saxões acreditavam nesse tipo de coisa? Digo... Em espíritos...

- Não exatamente no que chamamos de espírito... O exército de Raewald era, segundo a lenda, formado por homens que haviam sido resgatados das portas do Valhalla, conclamados pelo próprio Wotan a voltar para lutar por uma causa justa, e se considerarmos que Raewald foi um dos chefes que mais colaborou para a expansão dos saxões, é claro que era uma luta muito justa...

- E como esses homens eram trazidos do Valhalla?

- Havia todo um ritual, que só os necromantes dominavam, e provavelmente deveria envolver a quase morte desses homens. – Respondeu Gabriel, fazendo com que de repente Sofia se lembrasse do sonho, e de quase tudo o que sentiu, até mesmo o frio... Um frio congelante, mas que dessa vez era real, a ponto de fazê-la se contorcer e gemer. – Algum problema? – Perguntou Gabriel, preocupado.

- Arrepio novamente.

- Bem, acho que vou parar de contar...

- Não é isso... É o frio.

- Frio?

- Sim... Está muito frio, não está sentindo?

- Na verdade, está bem quente... – Disse ele, então reparando nos lábios roxos de Sofia, e então levou a mão até sua testa. – Nossa, mas você está realmente fria.

- Deve ser o açúcar... Às vezes tenho baixa de glicose...

- E o que eu faço?

- Alguma coisa doce... Não, melhor, água de coco, é como um soro natural...

- Então, venha, vamos comprar a água de coco. – Disse ele, puxando Sofia para perto de si, como que para aquecê-la, mas realmente era um frio absurdo o que ela deveria estar sentindo pela temperatura que ela tinha. Caminharam até um quiosque.

- Fique aqui, sente-se um pouco, eu já trago a água de coco. – Disse Gabriel, deixando Sofia, cada vez mais fria em uma cadeira.

O mundo parecia girar, e o céu, assumia cores diferentes... Algo como tons de vermelho, azul e de rosa, que pareciam bailar no céu sobre o mar, lhe chamavam atenção. A princípio imaginou o que havia naquele chá, mas depois já não sabia ao certo... Era tudo tão mágico, aquelas luzes, o frio... Ela se levantou para ver o que era, quando ouviu uma voz estranha, grave, ao ouvido, e de repente, um belo par de olhos azuis a fitava, cristalinos como a água de uma nascente rochosa, intensos como o oceano que uivava ali atrás.

E então veio o torpor.

Era como mergulhar em um abismo. Havia apenas o frio, e a água, aqueles olhos azuis e o vazio, e o formigamento, cada vez mais leve até o ponto de não sentir mais, como se diluísse na água. E então havia apenas o inefável, porém tão intenso, sabia Deus o quê, como se ela pudesse estar em tudo ao mesmo tempo, mesmo sendo o nada... Como se tudo se completasse e finalmente... A paz.

Mas então havia novamente aqueles olhos azuis como a única parte clara de uma figura borrada que se movia e alguém lhe puxando... E então o escuro, a areia da praia sob ela, e dois homens loiros que a olhavam atentamente, solenes, rostos e roupas engraçados... Pareciam tão preocupados... E que barulho era aquele? Um dos homens tentou falar algo, ou falou e ela não sabia o que era... Havia muitas pessoas a seu redor. O rosto de Gabriel se distanciava do seu, enquanto ele apertava o seu peito, até a água salgada subir por sua garganta, queimando, fazendo-a tossir.

- Graças a Deus! Você está viva! – Falou Gabriel, os cabelos molhados no rosto, mas ainda podia ver o sorriso de alívio, quando as pessoas ao seu redor foram empurradas para dar lugar aos bombeiros.

- O que aconteceu aqui? – Perguntou um dos bombeiros.

- Ela disse que teve uma baixa de glicose, eu me virei para comprar água de coco e de repente, ela estava na água. – Explicou Gabriel.

- Quanto tempo ela ficou inconsciente?

- Eu não sei... Acho que uns cinco minutos ou um pouco mais... – Dizia Gabriel, enquanto um grupo de homens vestidos de cinza a examinavam, e a imobilizavam. Tudo parecia girar, principalmente quando a levantaram para colocá-la na ambulância. Algumas pessoas anda se amontoavam para ver o que acontecia.

- Eu posso ir junto? Estou com ela. – Perguntava Gabriel quando a porta se fechou diante dele. Dentro, uma máscara de oxigênio era colocada em Sofia enquanto os paramédicos tomavam outros procedimentos. Seus sentidos pareciam fraquejar novamente, mas ainda tinha forças para perceber que um dos homens loiros estava na ambulância. E então desmaiou.

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