04

-Tudo bem, é algo sério, mas não se preocupe, mãe. Eu pensei que não conseguiria o emprego, mas foi tudo rápido. - comento limitadamente.

-Ainda há pessoas neste mundo com um grande coração... - ela fala esperançosa.

É algo que eu não tenho, disfarço a realidade, e a verdade é que me aterroriza não ser suficiente naquela mansão, temo falhar ou fazer algo errado aos olhos daquele homem que nem parece ter um coração.

-Sim, mãe - continuo comendo -. Quero te falar sobre o horário, chegarei tarde em casa, não quero que se preocupe. Posso confiar em você? Você ficará bem?

-Sim, prometo - ela sussurra genuinamente, colocando uma mão sobre a minha, acaricia o dorso, olha para mim com amor.

-Acredito em você, obrigada.

Me levanto, vou lavar a louça, mamãe me para e se oferece para fazer. Dou um beijo em sua bochecha e me encarrego das tarefas que faltam. O dia não para de mudar de rumo, não está indo para a escuridão remota, a direção esclarece e resgata das sombras a austera necessidade de mamãe se esconder entre quatro paredes.

Limpo a pequena sala, desde espanar até tirar o pó dos objetos. Depois ela chega e insiste em que deixe com ela, porque depois estarei exausta para ir trabalhar.

-Não se preocupe, mamãe.

-Você sempre diz isso, Aryanna. Eu vou terminar de fazer - ela insiste pegando o aspirador de pó, estava prestes a começar a limpar os tapetes -. É hora de eu fazer o meu papel, você vá descansar, amanhã será um dia cansativo.

-Vou ficar bem.

-Por favor... - ela me adverte com o olhar.

Em que momento parte da mulher que eu pensei ter perdido voltou?

Sorrio, vou deixar que faça o que quiser, contanto que possa vê-la ansiosa assim novamente.

...

A noite chegou, vou para o meu quarto. Tomo um banho e vou para a cama. Estendo a mão e pego na mesa de cabeceira. Foi o presente do meu pai, não achei que usaria, agora é a minha companheira.

O caderninho, um objeto de infinito valor para mim, ali deixei tudo o que sinto e que fica entalado na minha alma, o peguei nas minhas mãos. Leve, mas carrega um peso enorme entre suas páginas. Despejei meu coração em cada linha escrita, parágrafos inteiros que se tivessem voz, expressariam a angústia que tenho no peito. Essa tristeza está presa nas camadas da minha pele, e em muitas noites quero gritá-la para o mundo, no final me contento em sussurrá-la para o travesseiro.

Comecei a escrever desde a morte do papai e da minha irmãzinha, desde então se tornou um método que tira de mim tudo o que não consigo expressar em palavras.

Escrevo para não me sentir sozinha.

»Sou derrubada em consequência de um desejo passageiro de voltar no tempo, saber que voltar atrás é coisa de tolos sonhadores, anula a estupidez que sinto em querer voltar as agulhas do relógio, a inabalável urgência em guiá-las para a esquerda, o ritmo que dança o passado, uma música que não toca agora«.

Esta é a introdução que está na primeira página, depois de olhar para a seguinte, e finalmente examinar outras sombrias, cheias de rugas que confessam o tanto que chorei ao escrevê-las.

É hora de virar a página, mas não consigo evitar ler o passado, relembrando imediatamente o peso de dar um passo atrás. A queda repentina e o impacto final chegam, uma imediaticidade profunda que envolve vidros sobre mim, o escarlate já pinta tudo e pisquei rápido fazendo o lembrete da minha decisão desesperada desaparecer.

Meu antebraço carrega um pouco disso, cicatrizes que atravessam minha pele, dando um aspecto pouco atraente, antiestético. Quando não cubro essa parte do meu corpo e a deixo à vista de muitos curiosos, não me importo, eles podem acreditar no que quiserem, mas se eu tivesse que explicar, inventaria uma história. Diria que foi o arranhão de um felino e não aquela pessoa atormentada que se jogou na estupidez.

Eu não sou mais aquela, nem voltarei para aquela fase de tormento, e não vou mentir, muitas vezes tenho vontade de desistir, mas não vale a pena executar a desgraça, já basta com os dias ruins, basta continuar respirando, tenho um motivo, com um nome próprio, eu levo o sobrenome dela, é a mamãe.

Segunda-feira, 02 de janeiro de 2020.

Vazio, um buraco inexplicável que devora a ilusão, os sonhos, uma ruptura que não encontra a agulha nem o fio para consertá-la. Passaram-se dois meses desde que a nostalgia reside em mim, eu me abraço, mas não me aqueço, ainda estou em um inverno bruto e não há uma fogueira que possa derreter a tristeza que sinto.

Eles se foram. Eu não consigo aceitar a ideia!

É desolador, um tiro no coração.

Não desejo isso para ninguém, é uma sensação desagradável, você está respirando, mas é como se não houvesse realmente oxigênio.

Afogada, desesperada e buscando como seguir em frente, tentei contra a minha vida. Agora percebo que foi só uma besteira.

Prefiro me atrever a deixar no papel o que não posso guardar, em vez de me render e ir para a inconsciência eterna.

Não é fácil...

É algo mais que um desafio...

Uma hora é adicionada ao dia e a dor se multiplica. A aceleração chega com ferocidade, ela traz a noite; quando o sol se levanta, eu bato de frente com a realidade, eles não voltarão, o sorriso que acalma, os beijos que curam, o som etéreo da voz deles dizendo "eu te amo". Tudo se foi, experiência e inocência, doçura e ternura, papai e Mariola não têm um passe de volta, por isso tenho que me resignar ao fato de que sua jornada não tem retorno.

Sinto tanto a sua falta, não acredito que vou encontrar as palavras certas para expressar a dor que a ausência causa, mesmo que eu encontre, as linhas não seriam capazes de expressar o que sinto, é demais.

Vou decidir se mudo os pontos suspensivos ou não.

Mas...

Tudo ficou em pausa, e se continuar não será a mesma continuação.

Suspiro.

Pego a borda da folha e a deslizo, meus olhos percorrem a página em branco. Sinto que é hora de escrever um novo começo. Pego o lápis, mas ao pressioná-lo no papel, a ponta quebra. É um mau sinal?

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