A N G E L I Q U E
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O vilarejo de South Lake Tahoe por si só já é uma graça e oferece muitas opções aos visitantes, além das estações de esqui. Em Camp Richardson, é legal fazer cross country e trilhas de snow shoes. Há passeios de barco, pedalinhos, caiaque, passeios à cavalo, bicicletas, pescaria. Dá caminhar na orla do lago, subir a montanha no teleférico, acampar, conhecer a gastronomia de alto padrão.
São algumas informações disponíveis no folheto que ganhei na rodoviária em Nevada, à caminho de South Lake. Esse é meu novo lar, onde decidi ficar. Estou na estrada há dias, sem um rumo no início, apenas desejando ir para o mais longe possível de Siesta Key, de tudo que deixei lá.
Eu estava sem rumo, perdida. Boa parte de minhas economias usei para comprar as passagens, sem pensar para onde iria. Percorri vários quilômetros, passei por várias cidades e não iria ficar aqui, meus planos originais eram sair do país, para nunca mais voltar. Porém devo admitir que esse vilarejo me encantou, é um lugar pequeno, tranquilo, onde sei que ninguém irá me encontrar. Poderei ter um lar, paz, tranquilidade — o que não tenho há anos —, poderei enfim ser feliz.
Estou tão feliz em finalmente ir embora, em deixar para trás todo sofrimento, todas as dores. Porém nem tudo é um mar de rosas, como era de se esperar. Estou ansiosa, nervosa e estou dolorida. Além dos meus machucados — algumas cidades antes passei em um hospital, para tratar de tudo, para verificar se havia ficado alguma fratura grave, mas por sorte, eu estou bem —, que doem um pouco mais graças às poltronas desconfortáveis dos ônibus, ainda há o medo, a incerteza quanto ao meu futuro.
Como não pude estudar bastante e cursar uma faculdade, não será fácil encontrar um emprego. Não sei para onde ir, não tenho algum lugar para ficar, e pagar um hotel caro demais não está em meu orçamento. Porém é melhor estar aqui, incerta de minha futura residência do que estar em minha antiga casa, sofrendo tudo aquilo.
Foram anos de sofrimento, agora estou livre. Finalmente acabou, e em pensar nisso, fico emocionada. Sei tudo que vivi, sei como minha vida foi ruim, vivi em um inferno por tanto tempo. Ou melhor dizendo, sobrevivi. Ainda não consigo acreditar que tudo ficou para trás.
É claro, os traumas irão me perseguir por um longo tempo. As cicatrizes, no corpo e na alma, nunca irão me abandonar. As lembranças, recordações, que retornam em forma de pesadelos. Mas sei que tudo isso irá passar algum dia, bom, ao menos acredito nisso. O que importa nesse momento é que o pior ficou para trás, e que agora estou livre. Me sinto como um pássaro, deixando sua gaiola. A sensação de felicidade, liberdade, tranquilidade, são inexplicáveis.
E para me deixar ainda mais aliviada, o ônibus chega ao seu destino final. Finalmente irei descansar em uma cama confortável, irei dormir tranquilamente, longe dessas poltronas desconfortáveis. Pego minha bolsa, desço do ônibus e o motorista entrega minha mala, a única que trouxe comigo.
A rodoviária está bem movimentada, pessoas andando para lá e para cá, animadas. Sigo entre elas, um pouco perdida, tentando encontrar a saída. As placas me orientam, e logo, estou no estacionamento. Ali, têm algumas casas, uma biblioteca, um restaurante. Respiro fundo, pego minhas malas e sigo caminhando.
A cidade parece ser bem tranquila. É um lugar bonito, com várias árvores, parques, e um lago enorme, pelo que vi no folheto, o famoso Lake Tahoe. Ali próximo encontro um estabelecimento, uma loja de conveniência. É um lugar pequeno, porém arrumado, com uma pintura fresca, posso sentir o forte cheiro de tinta, e bem, o garoto ruivo, jovem, completamente coberto pela tinta azul que cobre as paredes, evidencia isso. Ele me cumprimenta com um aceno e um sorriso simpático, retribuo seu sorriso e entro na loja.
Pego o básico. Alguns salgadinhos, água, barrinhas de cereais. Levo ao caixa, onde está uma garota jovem, com fios azuis acima dos ombros, íris cor âmbar e um sorriso simpático, distraída em seu celular.
— Oi. — digo, atraindo sua atenção. — Sabe me informar se há alguma pousada disponível? Cheguei agora e estou perdida.
— Claro! — responde. — Minha tia é dona de uma pousada, fica aqui próximo. Posso te levar lá, caso queira. E suas compras custaram oito dólares e setenta centavos.
— Eu iria ficar muito agradecida. — sorrio.
Pago as compras e pego as sacolas. Faço menção em pegar minha mala, mas a garota impede. Se oferece para levar e agradeço. Meus braços, ainda um pouco machucados, doem. Ela pede para o garoto que está do lado de fora cuidar do local, lhe dá um selinho e vamos até a tal pousada, seguindo por uma estrada, em meio à um parque muito bonito, onde algumas pessoas correm, brincam com seus cachorros ou conversam, fazendo um picnic.
— Bom, esqueci de me apresentar. — estende sua mão para mim, em cumprimento. — Sou Lilith, mas pode me chamar de Lily.
— É um prazer, Lily. — aperto sua mão. — Sou Angel.
— Combina com você. — ri. — O que te trouxe para essa cidade?
— Queria um novo começo. — digo, apenas. Falar tudo que vivi é delicado, doloroso.
— Pretende morar aqui então? — assinto. — De onde veio?
— Flórida. E você, sempre morou aqui? — maneia a cabeça.
— Não. Eu morava em San Francisco, porém após o divórcio, minha mãe veio para cá e me trouxe junto.
— Tem muito tempo?
— Uns três anos. No início, morar aqui era um tédio. Eu não tinha amigos, não conhecia ninguém. Até que conheci o Joe, meu namorado.
— O ruivo? — assente.
— Ele me fez gostar desse lugar. Tanto é que mamãe foi embora e fiquei aqui, com minha tia. O nome dela é Marilyn. É simpática, mas não lhe dê corda. Ela fala demais. — ri. — Enfim, chegamos.
Estamos em frente à uma bela construção, uma residência grande, no estilo vitoriano, com dois andares. Cercada por algumas árvores, com um belo jardim na entrada, repleto de rosas, margaridas e lírios. Ali posso ver um gazebo, branco, cercado de girassóis. O lugar é realmente muito bonito.
Lilith me acompanha até a entrada. Ali na sala, espaçosa e aconchegante, há um balcão, onde uma senhora, com aproximadamente quarenta anos, cabelos pretos e íris esverdeadas, lê uma revista. Ao perceber nossa presença, sorri, animada. Caminha até nós e abraça a garota ao meu lado.
— O que faz aqui, meu bem? — questiona.
— Essa garota se chama Angel, está a procura um lugar para ficar.
— Olá. — digo, tímida. A mulher me abraça, simpática.
— Seja bem-vinda, querida. Me chamo Marilyn. — sorri. — Tenho um quarto disponível, ele é seu.
— Já que está entregue, voltarei para meu trabalho. — diz Lily. — Sabe, deixar o Joe sozinho não é algo bom. Ele é um tanto desastrado. — resmunga, me fazendo rir.
— Até logo, Lily. Obrigada por tudo.
— Não foi nada. Até mais. — sorri e vai embora.
Faço meu check-in, pego minhas chaves e Marilyn me guia até o andar superior, onde ficam os quartos. O meu fica no fim do corredor, é um lugar amplo, com uma cama enorme no centro, uma poltrona clara próximo à janela enorme, uma cômoda escura e uma mesa de cabeceira, no mesmo tom, com um abajur delicado em cima. Em cima da cômoda, um espelho grande, com as bordas douradas.
Deixo minha mala ao lado da cômoda, e minha bolsa e sacolas em cima da cama confortável e macia.
— Espero que goste. — comenta Marilyn. — O banheiro é nessa porta em frente ao seu quarto, e há outro no andar inferior. Qualquer coisa pode me chamar, sempre estou na recepção ou então no jardim.
— Está ótimo, obrigada. — sorrio.
— Descanse, meu bem. Mais tarde virei te chamar para jantar. — sorri, e se vai, fechando a porta ao passar.
Deito-me na cama macia, mil vezes melhor que os ônibus onde viajei até aqui. É como um sonho, não consigo acreditar que estou livre, que estou longe daquele pesadelo. Tudo acabou. E de agora em diante, começa uma nova vida.
A N G E L I Q U E • Entre soluços, tento convencê-lo de não cometer tal atrocidade. Porém nada é capaz de mudar sua decisão, até porque ele sabe, é minha vida ou a sua. E ele parece ter tomado sua decisão. — Eu não vou, não vou! — exclamo. — Você não pode fazer isso! — Posso sim, meu bem. Eu posso tudo, pequeno anjo. — sorri. — Eu não vou! As lágrimas deixam minha visão turva, porém posso ver o momento em que se afasta da porta, caminha até mim e
A N G E L I Q U E •Hoje mais cedo, ao acordar, pude perceber que Marilyn definitivamente é insistente. Consegue tudo que quer, apenas com um pouco de insistência. Ontem mesmo já me senti melhor, mas nada impediu Marilyn de me obrigar à vir para essa consulta. Eu não quis vir, não apenas por achar que não preciso, que já estou melhor, mas também por as cicatrizes. A marca do disparo, que me atingiu naquela maldita noite. Sei que muito provavelmente o médico verá, e não faço ideia de qual desculpa dar.Em hipótese alguma posso falar sobre meu passado, sobre tudo que houve e sobre o que aconteceu naquela noite, a história por trás do disparo. Sei que tudo ficou para trás quando fui embora, mas ainda sinto medo. Não dá para evitar, anos de sofrimen
A N G E L I Q U E • Às dez e meia da manhã, estou em casa. De certa forma, a pousada para mim já é um lar, aqui tenho pessoas preocupadas comigo, pessoas que gostam de mim. Em mãos, trago os remédios que comprei na volta para cá. Analgésicos e pomadas, materiais para troca dos curativos. Tudo que senti ontem — febre, náuseas e fortes dores no abdômen — são por conta do meu ferimento, que inflamou.Marilyn está no balcão, como de costume, distraída com um livro. Entro ali e vou até ela, que ao me ver fecha o livro e tira os óculos.— Como foi a consulta? O que teve? — questiona, preocupada.— Uma
A N G E L I Q U E •Eu sempre soube dos riscos de me mudar para um lugar novo, tentando esconder meu passado. Sempre soube que por mais que tentasse esconder, fugir, em algum momento alguém iria descobrir a verdade, iria ver o que tanto luto para esconder. Primeiro foi Samuel, no consultório, quando viu minha cicatriz. Tive muita sorte de que não questionou nada, apenas fez seu trabalho, cuidou de mim e tentou manter uma conversa agradável, sem citar em momento algum minhas cicatrizes.Mas agora, Camila sabe. E não parece que irá deixar por isso mesmo, ignorar tudo e fingir que não viu nada, pelo seu semblante assustado e de curiosidade, sei que irá me questionar. Tento me esconder com o suéter, mas de nada adianta. Ela já viu, não dá para simplesmente fingir que não, não dá
S A M U E L •Às sete e meia da manhã, já estou pronto para trabalhar. Pego meu jaleco, maleta, café e chaves, meu celular está no bolso. Antes de sair de casa, confiro se tudo está no lugar, se estou com tudo que preciso. Apressado, vou até meu veículo, estacionado em frente à minha casa. Estou trinta minutos atrasado, acordei com dor de cabeça e havia perdido as chaves, justamente hoje, em que deveria chegar mais cedo no consultório.Hoje é o primeiro dia da minha nova assistente, pois Jessie está de licença. Sua gravidez é de risco, e para sua segurança e dos bebês — são trigêmeos —, ficará sem trabalhar. Ficou encarregada de arrumar uma substituta, e o primeiro dia de tal é hoje. Mesmo com as instruções de Jessie, minha nova secretária irá sentir-se um pouco perdida no pr
Siesta Key, Flórida. • Seu corpo está completamente machucado, e dói, tanto que quase não consegue andar, quem dirá correr. O sangue viscoso está por toda sua roupa, pelas paredes, chão, móveis. Sua cabeça dói, sabe que está cortada, as pancadas foram fortes. Passa a mão esquerda pela nuca, e ao olhar, vê sangue. O lugar está um caos. Os estilhaços espalhados pela casa, sangue, e próximo à porta, a arma. A maldita arma. Apressada, tentando ser rápida - mesmo com seus cortes, dores e o tiro que levou em sua perna direita -, coleta tudo que precisa. Dinheiro, documentos falsos, alguns curativos, remédios. A sua mala já está pronta, já estava pronta há dias, desde que começou a planejar sua fuga. Veste um casaco, ca