Siesta Key, Flórida.
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Seu corpo está completamente machucado, e dói, tanto que quase não consegue andar, quem dirá correr. O sangue viscoso está por toda sua roupa, pelas paredes, chão, móveis. Sua cabeça dói, sabe que está cortada, as pancadas foram fortes. Passa a mão esquerda pela nuca, e ao olhar, vê sangue. O lugar está um caos. Os estilhaços espalhados pela casa, sangue, e próximo à porta, a arma. A maldita arma.
Apressada, tentando ser rápida - mesmo com seus cortes, dores e o tiro que levou em sua perna direita -, coleta tudo que precisa. Dinheiro, documentos falsos, alguns curativos, remédios. A sua mala já está pronta, já estava pronta há dias, desde que começou a planejar sua fuga. Veste um casaco, calça suas botas, pega sua passagem e vai embora, levando consigo a arma que estava no chão da sala.
No lado de fora, a chuva é forte. Mas nada irá a impedir de embarcar naquele ônibus, ela precisa ir, pela sua vida. Com dificuldade, desce as escadas, arruma a bolsa nos ombros e vai embora. Olha uma última vez para trás e ali, sente algo ruim. Está desesperada. Precisa fugir, precisa ir, e logo.
Então simplesmente corre. Sem se importar com a forte chuva, com os relâmpagos e raios que cortam o céu. Se abriga em um gazebo, ali na praça central, onde limpa seus ferimentos e faz curativos. Veste outro casaco, esse, impermeável. Tinha desde que costumava pescar, aos dezesseis. Por dentro do casaco, para não molhar, leva sua bolsa, onde estão os documentos.
Mancando, com dor e em pânico, amedrontada e desesperada, corre até a rodoviária. O seu ônibus sairá agora mesmo, chegou em cima da hora. Recebe um olhar preocupado do motorista e até mesmo de alguns passageiros, mas não diz nada. Quer apenas ir embora de uma vez, ter a certeza de que seu passado ficou para trás, que todo tormento ficou para trás.
E quando o ônibus vai embora, ela começa a chorar. Por tudo que passou, pela esperança de um futuro melhor, longe de todo esse terror. Olha uma última vez pela janela, e respira fundo, tentando conter as lágrimas. Mas não dá, está tão confusa, emocionada, que não dá para segurar ou controlar suas emoções.
Mas o que importa nesse momento é que tudo acabou.
Ela está livre.
A N G E L I Q U E • O vilarejo de South Lake Tahoe por si só já é uma graça e oferece muitas opções aos visitantes, além das estações de esqui. Em Camp Richardson, é legal fazer cross country e trilhas de snow shoes. Há passeios de barco, pedalinhos, caiaque, passeios à cavalo, bicicletas, pescaria. Dá caminhar na orla do lago, subir a montanha no teleférico, acampar, conhecer a gastronomia de alto padrão. São algumas informações disponíveis no folheto que ganhei na rodoviária em Nevada, à caminho de South Lake. Esse é meu novo lar, onde decidi ficar. Estou na estrada há dias, sem um rumo no início, apenas desejando ir para o mais longe possível de Siesta Key, de tudo que deixei lá.
A N G E L I Q U E • Entre soluços, tento convencê-lo de não cometer tal atrocidade. Porém nada é capaz de mudar sua decisão, até porque ele sabe, é minha vida ou a sua. E ele parece ter tomado sua decisão. — Eu não vou, não vou! — exclamo. — Você não pode fazer isso! — Posso sim, meu bem. Eu posso tudo, pequeno anjo. — sorri. — Eu não vou! As lágrimas deixam minha visão turva, porém posso ver o momento em que se afasta da porta, caminha até mim e
A N G E L I Q U E •Hoje mais cedo, ao acordar, pude perceber que Marilyn definitivamente é insistente. Consegue tudo que quer, apenas com um pouco de insistência. Ontem mesmo já me senti melhor, mas nada impediu Marilyn de me obrigar à vir para essa consulta. Eu não quis vir, não apenas por achar que não preciso, que já estou melhor, mas também por as cicatrizes. A marca do disparo, que me atingiu naquela maldita noite. Sei que muito provavelmente o médico verá, e não faço ideia de qual desculpa dar.Em hipótese alguma posso falar sobre meu passado, sobre tudo que houve e sobre o que aconteceu naquela noite, a história por trás do disparo. Sei que tudo ficou para trás quando fui embora, mas ainda sinto medo. Não dá para evitar, anos de sofrimen
A N G E L I Q U E • Às dez e meia da manhã, estou em casa. De certa forma, a pousada para mim já é um lar, aqui tenho pessoas preocupadas comigo, pessoas que gostam de mim. Em mãos, trago os remédios que comprei na volta para cá. Analgésicos e pomadas, materiais para troca dos curativos. Tudo que senti ontem — febre, náuseas e fortes dores no abdômen — são por conta do meu ferimento, que inflamou.Marilyn está no balcão, como de costume, distraída com um livro. Entro ali e vou até ela, que ao me ver fecha o livro e tira os óculos.— Como foi a consulta? O que teve? — questiona, preocupada.— Uma
A N G E L I Q U E •Eu sempre soube dos riscos de me mudar para um lugar novo, tentando esconder meu passado. Sempre soube que por mais que tentasse esconder, fugir, em algum momento alguém iria descobrir a verdade, iria ver o que tanto luto para esconder. Primeiro foi Samuel, no consultório, quando viu minha cicatriz. Tive muita sorte de que não questionou nada, apenas fez seu trabalho, cuidou de mim e tentou manter uma conversa agradável, sem citar em momento algum minhas cicatrizes.Mas agora, Camila sabe. E não parece que irá deixar por isso mesmo, ignorar tudo e fingir que não viu nada, pelo seu semblante assustado e de curiosidade, sei que irá me questionar. Tento me esconder com o suéter, mas de nada adianta. Ela já viu, não dá para simplesmente fingir que não, não dá
S A M U E L •Às sete e meia da manhã, já estou pronto para trabalhar. Pego meu jaleco, maleta, café e chaves, meu celular está no bolso. Antes de sair de casa, confiro se tudo está no lugar, se estou com tudo que preciso. Apressado, vou até meu veículo, estacionado em frente à minha casa. Estou trinta minutos atrasado, acordei com dor de cabeça e havia perdido as chaves, justamente hoje, em que deveria chegar mais cedo no consultório.Hoje é o primeiro dia da minha nova assistente, pois Jessie está de licença. Sua gravidez é de risco, e para sua segurança e dos bebês — são trigêmeos —, ficará sem trabalhar. Ficou encarregada de arrumar uma substituta, e o primeiro dia de tal é hoje. Mesmo com as instruções de Jessie, minha nova secretária irá sentir-se um pouco perdida no pr