Saímos antes do dia clarear por completo. O ar ainda estava úmido da noite, e uma névoa baixa pairava sobre a trilha. Gabi seguia ao meu lado em forma humana, o capuz cobrindo parte do rosto e o passo constante. Ela não pode se transformar, então seguimos no ritmo dela. Mas mesmo assim, estávamos indo bem.Alex e Lord nos cercavam, em suas formas lupinas. Alex liderava o grupo, imponente e atento, enquanto Lord vigiava atrás, garantindo que nenhuma ameaça se aproximasse. A presença dos dois era um alívio. Um lembrete de que, mesmo com o estômago apertado e a mente cheia de dúvidas, eu não estava sozinha.Ontem conseguimos adiantar muita coisa do Fisp, e isso me deixou um pouco mais tranquila. Mas mesmo assim, a sensação de estar voltando à minha antiga casa é como um peso constante nos ombros. Minha mãe me entregou a chave da casa antiga antes de partirmos, e desde então, sinto como se ela queimasse no fundo da mochila.Eu não sinto saudades dessa terra.Na verdade, cada passo é como
— Ele me parece bemambicioso — Lord responde, olhando fixamente para a vegetação à frente. — E orgulhoso. Não acredito que tenha enterrado uma arma como essa só por medo. Ele queria alguma coisa.— Talvez controle — murmuro. — Ou talvez… ele queria libertar o que está preso nela.Um silêncio desconfortável se instala por alguns segundos.— De qualquer forma — Gabi diz, mudando levemente de assunto —, vocês perceberam como as árvores parecem diferentes por aqui?— Mais densas — Alex concorda. — Como se a floresta estivesse tentando esconder alguma coisa.— Ou protegendo — acrescento, observando os galhos tortos e a luz filtrando em feixes tênues entre as folhas.— Eu odiava brincar aqui quando era criança — confesso. — Sempre achei que algo me observava. Mas ninguém acreditava em mim.— Talvez você estivesse certa — Gabi diz, séria.Depois de um tempo, levantamos e seguimos novamente.Meus passos são mais lentos agora. A cada metro que percorremos, a aldeia de Talos se aproxima — e com
Tudo exatamente como me lembro.Em algum lugar da minha mente, reviro os olhos por já ter pensado que um dia eu me encaixaria aqui. Jamais. Não depois de saber o que me esperava. O que me espera.Minha alcateia é meu lar. Do lado do meu alfa. Do lado dos meus. A Deusa realmente sabe o que faz.O cheiro da aldeia é o mesmo — madeira antiga, fumaça, terra molhada. As construções, quase todas de pedra envelhecida e telhado baixo, se apertam umas contra as outras como se o tempo tivesse congelado aquele lugar. A única coisa que parece se mover são os olhares que nos seguem com desconfiança. Os sussurros abafados nas esquinas. O cheiro de estranhamento no ar.— Nem um pouco chamativos — Lord murmura ao meu lado.— Eu diria que somos neutros — respondo, tentando não rir. — Nos misturamos à paisagem.Gabi revira os olhos, mesmo sob o capuz. Sei que está tensa. Todos nós estamos. Nossas roupas são simples, longas o suficiente pra cobrir o rosto e esconder detalhes. As ervas que ela mesma prep
O homem nos encara com olhos semicerrados, como se tentasse reconhecer o passado estampado nos nossos rostos. Ou talvez como se já soubesse exatamente quem éramos, e só não soubesse o que fazer com essa informação.— Eu me lembro de você — ele diz, lentamente. — Você… era só uma filhote quando foi embora com sua mãe.— E agora voltei — respondo, erguendo o queixo. — Não por saudade. Mas por necessidade.Ele balança a cabeça, como se tentasse processar tudo de uma vez só.— Por que agora? — pergunta. — Depois de tanto tempo? Sua mãe quase foi morta e imagino que ainda seja banida!— Porque agora eu posso — digo. — Porque não dá mais pra fugir do que ficou pra trás.O homem desvia o olhar por um instante. A tensão entre nós é densa, como se o ar carregasse tudo o que foi enterrado aqui. Memórias. Mágoas. Verdades demais.— Não esperava vê-la de novo — ele confessa. — Muito menos assim.— Eu também não esperava voltar — admito.— E o que está procurando aqui?— Meu pai.O silêncio que se
O caminho para casa é tortuoso, para dizer o mínimo. E não apenas pelas trilhas sinuosas ou pelo cansaço acumulado, mas principalmente porque tivemos que ir arrastando um estorvo. Realmente um estorvo. Quando ameacei esse maldito alfa, não sabia que ele era o pai da Zoe. Caso contrário, teria matado. Que desgraça. Ele anda com um ar presunçoso irritante, como se tudo fosse uma grande piada particular. E talvez, na cabeça dele, seja mesmo. — Se eu pudesse, arrancava o pescoço dele — mando mentalmente para o Lord. — Arrancar o pescoço? Isso é pouco para o que quero fazer com ele — ele responde, com aquele tom calmo que sempre precede ideias absurdamente violentas. — Talvez desmembrar e moer os restos, porém o manter vivo o suficiente para ele comer. É nessas horas que lembro o quanto meu amigo pode ser criativo quando está com raiva. Mas não o julgo. Pelo contrário. — Ainda vai ser pouco pelo que ele fez com a minha parceira — completa. E é esse o ponto. Tudo o que esse m
— Onde vamos enfiar esse traste? — Zoe pergunta, ajeitando o casaco enquanto encara o pai caído.— Cela do fundo da caverna — respondo. — Aquela com cheiro de mofo e uma goteira que parece tortura sonora.— Perfeito — ela murmura. — Mais poético que ele merece.Lord solta um resmungo de aprovação e pega o alfa pelo colarinho como se fosse um saco de lixo. Literalmente.— Eu até pediria ajuda, mas esse aqui é leve pra tanto ego inflado — ele comenta, com um leve sorriso cínico.Gabi caminha um pouco à frente, abrindo caminho com a elegância de quem sabe que está carregando a arma mais importante de todo o continente na bolsa, entre um tônico anti-inflamatório e um frasco de óleo de lavanda.Chegamos à cela. A porta de ferro enferrujado range alto quando Alex a abre. Lord arremessa o alfa lá dentro com um barulho seco que ecoa nas paredes de pedra.— Bem-vindo à sua suíte presidencial — digo. — Vista com paredes de rocha natural e sons ambiente de gotas caindo eternamente.Zoe bate duas
Lívia fez questão de repassar tudo que ocorreu enquanto estávamos fora. A organização do Fisp está perfeita, melhor impossível.Minha amiga sabe cuidar muito bem de um evento, e está preparada para ser coroada como melhor organizadora da alcateia.Lord está apoiado na parede com a minha mãe em seus braços. O chá que ele fez estava ótimo e o bolinho que minha mãe fez, ainda melhor.— E o prisioneiro?— Está sendo monitorado. Quero passar lá ainda hoje com a adaga para mostrar alguns pontos importantes pra ele. — Alex fala.Se eu não o conhecesse até acreditaria, porém o conheço. Tão bem quanto me conheço.Então entendo suas palavras como “vou dar uma surra nele antes de decidir alguma coisa”.Bem, só precisamos dele vivo, não é mesmo?— Tem um tônico que quero fazer, conhecido como tônico da verdade. Vai fazer ele abrir a boca, mas preciso de um prazo de dois dias. — Gabi aparece do nada, equilibrando uma bandeja com mais bolinhos e um vidrinho cor de âmbar já rotulado com um adesivo e
Do lado de fora, Liz e Lord ainda estão juntos, e a cena é até bonita. Minha mãe parece mais leve, mais presente, e Lord… bem, ele está tentando parecer desinteressado enquanto segura delicadamente uma xícara de chá com os dedos, como se não fosse um lobo enorme capaz de esmagar crânios.— Então você faz chá, mata traidores e cuida de senhoras? — Lívia comenta passando pela varanda.— Multitarefas. — Ele responde sem levantar os olhos.— Um homem completo.— Um lobo completo. — Ele corrige, e minha mãe sorri deixando um beijo suave em seus lábios.A tarde vai se arrastando. Em algum momento, Alex, Gabi e eu voltamos pra parte interna da casa. Nos sentamos no sofá enquanto Gabi revira a bolsa em busca de alguma coisa.— E a adaga, Gabi?— No fundo da bolsa — ela responde. — Entre os tônicos de dormir e o de encolher verrugas.— Perfeito — murmuro. — Nada como um artefato milenar guardado entre um antisséptico e um hidratante mágico.— Organização é tudo — ela retruca. — E antes que per