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Entre o Céu é a Terra
Entre o Céu é a Terra
Por: G.K
Capítulo Um - O céu escureceu – parte 1

Hello, Hello

Anybody out there?

Cause I don’t hear a siund

Alone, alone

I don’t really know where the

Word is but I miss it now

Jason Walker - Echo

Ellen

Oito meses atrás...

A estrada estava escura, a névoa encobria boa parte da visibilidade. Papai ao volante cantarolava uma música alegre, e seus dedos grandes e finos batucavam no volante, ao ritmo da música. Mamãe dormia tranquilamente ao seu lado.

Soltei o cinto.

Eu gostava de observá-la a dormir, sempre serena, tranquila, respiração calma e suave. Sua boca quando fechada tinha um formato de coração. Eu sorri. Lembrei de que quando eu era menor, sempre fugia para o quarto dos meus pais, sentava-me aos pés da cama e os observava. Mesmo dormindo, eles pareciam apaixonados. Papai sempre segurava a mão de mamãe, e ela sempre parecia sorrir.

— Vamos lá, Ellen, cante comigo.

— Papai, para! Estou cansada!

— Eu sei, querida, mas logo vamos chegar.

— Tá falando isso já tem umas vinte horas. — Cruzei os braços sobre o peito, com raiva.

Papai soltou uma sonora risada. Mamãe se remexeu no banco e ele olhou para mim.

— Eu prometo que logo vamos chegar, querida. Sente-se direito no banco e coloque o cinto, mocinha, por favor! — Ele me repreendia como se eu fosse uma garotinha, e não uma moça com dezesseis para dezessete anos.

O que eu mais gostava no papai? Era essa forma de me dar bronca mascarada com o “por favor”. Além disso, seu sorriso era encantador. Ele nunca parecia estar bravo, nem triste, exceto agora, que pisava no freio bruscamente, o que me jogou para a frente com força.

O carro bateu em algo e eu bati com a minha cabeça no painel do carro. Logo senti algo escorrer pela minha testa, algo quente, e se eu tocasse, garanto que seria viscoso.

Senti mãos a me puxarem. Elas me seguravam com carinho. Senti algo duro e frio em seguida, acho que era o chão. Sentei. Eu estava tonta, mas mesmo assim observei a cena. Papai tentava retirar mamãe do carro, que estava com a frente completamente destruída.

Eu não deveria ter conversado com ele. Papai se distraiu e não viu o que estava bem à nossa frente: uma enorme e frondosa árvore se erguia em uma curva da estrada.

Ele chorava, e suas mãos estava na cabeça. Senti um aperto no peito, uma falta de ar. Senti-me em pânico. Eu tentava puxar o ar, mas não vinha.

Eu não consegui ver muito mais, tudo foi ficando escuro e eu desmaiei.

***

— NÃO! — gritei, levantando-me da cama.

Sentia falta de ar e um aperto forte no peito. As lágrimas escorriam pelo meu rosto com abundância.

Vovô entrou no quarto quase que de imediato. Olhou-me e sentou ao meu lado.

— Foi somente um pesadelo, Ellen. Se acalme, minha querida. — Ele me puxou para o seu peito e começou a acariciar minha cabeça.

— Isso está longe de ser um pesadelo, vovô. Isso é a realidade, realidade dura e irritante, me entende? — Limpei as lágrimas que escorriam e tentei me recompor, me afastando dele.

— Eu sei que dói. — Deu uma pausa e um suspiro. — Eu sei que as feridas são profundas, e eu não estou falando dessas cicatrizes que tens, mas sim dessas da alma. Mas acredite em Deus, Ele vai curar todas elas.

— Não me fale em Deus! Já disse, deixei de acreditar Nele, em anjos e em tudo o que tenha relação com esse céu de mentira, esse céu que vocês tentam impor pra nós; ele não existe!

— Não fale assim, querida.

Puxou-me pra si novamente e pôs-se a me embalar em seus braços, braços que um dia tinham sido tão fortes e firmes, que em outra época me carregavam para cima e para baixo; mas hoje não aguentava mais nada.

Afastei-me dele assim que o senti soluçar.

— Me deixe só.

Dei um pulo da cama e encarei a janela que dava para o grande jardim florido de casa.

— Ellen, querida, eu...

— Vamos, sai, ande, não quero conversar.

— Eu te amo, minha querida, nunca se esqueça disso.  Escutei um suspiro profundo.

A cama rangeu e a porta se abriu. Vovô passou por ali, dando o espaço que eu pedia.

Senti a garganta queimar, meus olhos se enxerem d’agua e aos poucos as lágrimas invadindo minhas faces em abundância. Sentei na beirada da cama, deixando toda aquela dor me invadir.

Deus... Quanta babaquice! Ele não existia. Se existisse, não teria levado meus pais naquele terrível acidente, ou então teria me levado junto.

Cruzei os braços sobre o peito. Viver uma vida toda sem eles me mataria lentamente. Funguei e me levantei. Olhei para a porta. Eu não deveria ter gritado com vovô, ele só queria me ajudar. Dei dois passos em direção à porta, mas olhei para a cama, então decidi que hoje eu não sairia mais do meu quarto por nada. Pulei para cima da cama e me afundei entre os travesseiros. Os soluços sacudiam meu corpo e as lembranças daqueles dias felizes invadiam a minha mente. Esses eram os momentos que mais doíam. Os momentos de lembranças que às vezes acalentavam a alma eram os mesmos que às vezes a acoitava sem dó nem piedade.

Virei-me na cama, deitei de barriga para cima e me coloquei a pensar. Todas as nossas ações interferem no nosso futuro, seja elas qual forem, e a minha ação acarretou em um fardo tão grande, que eu não sabia se conseguiria suportar ter matado meus pais. A dor era lacerante e talvez, só talvez, se eu deixasse de existir, toda essa dor e essa culpa acabariam. Não acabariam? Claro que acabariam.

Era isso o que eu faria: por um fim nisso. Eu não deveria viver, não depois do que aconteceu, não depois de ter matado as duas pessoas que eu mais amava nessa vida.

***

Na manhã seguinte, quando tateava o criado-mudo para desligar o despertador, um cheiro maravilhoso de ovos com bacon invadiu minhas narinas. Meu estômago roncou e eu percebi quão faminta estava. Mais que depressa, dei um pulo da cama, calcei meu chinelos e fui até a cozinha, onde vovô cantarolava uma música que eu não sabia qual era enquanto mexia os ovos.

Sorri ao lembrar que papai cozinhava assim. As mãos do vovô era como às dele, só que mais enrugadas. Tinham a mesma graciosidade, dedos finos que constantemente batucavam ao som da música... Era esse tipo de lembrança que me deixava feliz e triste ao mesmo tempo.

Sequei uma lágrima teimosa que escorria pela minha face. Por que lembrar deles tinha que ser sempre doloroso?

Talvez por ser culpa sua a morte deles? Talvez por você ter sobrevivido?

— Bom dia, querida. Como se sente hoje? — perguntou, virando-se com a frigideira em mãos, o que me tirou dos pensamentos.

— Como sempre. — Tentei sorrir ao responder, eu juro, mas a cara do vovô mais parecia uma careta. — Mas eu estou faminta.

— Que bom! Sente-se, querida, vou te servir.

Sentei-me junto à bancada da cozinha e prendi meus cabelos em um rabo de cavalo bagunçado. Ele me serviu de ovos com bacon com suco fresco de laranja. Esse era um dos meus pratos prediletos. Sorte a minha ser tão ruim para engordar, pois não sei se conseguiria me privar dessa maravilha.

— Vovô... — Remexi meus ovos no prato — me desculpe por ontem, é só que...

— Tudo bem, querida! Eu sei, dói ainda.

— Sim.

— Em mim dói também. — Levou uma garfada de ovos à boca.

Ele sorria enquanto mastigava, mas vi em seu olhar a tristeza de ter pedido um filho que ele tanto amava.

— Eu não sei o que faria da minha vida sem o Senhor.

Levantei-me, corri até ele e o abracei.

Querem a verdade? A verdade era essa. Eu às vezes esquecia de como era difícil para o vovô também, de como ele amava a mamãe e o papai, de como perder um filho para ele havia sido difícil e dolorido. Vovô havia dito a mim uma vez que era errado um pai viver mais que um filho. Eu não entendia, nunca havia entendido, até hoje de manhã, quando eu tinha o visto na cozinha, como quando ele tinha olhado para mim e tentado disfarçar a angústia no olhar, mas em vão, porque a mesma angústia e a mesma dor que ele carregava eu também carregava, então eu conseguia vê-la mesmo assim.

Às vezes eu me achava uma idiota por achar que somente eu sofria. Ele me embalava nos braços e eu o cheirava.

Vovô tinha cheiro de maresia, e esse era um dos cheiros que eu mais gostava.

Sorri quando senti ele afagar minha cabeça.

— Está na hora de ir para a escola.

— Não quero ir.

— Precisa ir, nada de faltar à aula sem motivo.

— Sabe o que é, vovô? Me sinto meio quente. — Coloquei a mão na testa. — Acho que estou com febre. — Fiz cara de doente, e ele sorriu em resposta.

— Aposto que essa febre passa se sair um pouco dessa casa.

Ele se abaixou perto de mim e beijou a ponta do meu nariz fazendo cócegas em mim. Corri gritando para o meu quarto. Remexi meu guarda-roupas, em seguida me pus sob chuveiro.

Assim que saí daquela deliciosa chuveirada, me vesti, penteei os cabelos, peguei minha bolsa, as chaves de casa e saí.

A escola não ficava tão longe assim, mas tinha que pegar um ônibus. Levava menos de dez minutos de ônibus e uns trinta a pé. Eu sempre optava por ir de ônibus e voltar a pé, pois dava mais tempo para pensar na vida, em como era pateticamente ferrada.

Assim que entrei no ônibus, coloquei meus fones de ouvido. Os versos, como sempre, eram tristes, mas nesta manhã ensolarada faziam ainda mais sentindo.

But it's never enough

Cause my echo, echo

Is the only voice coming back

Shadow, shadow

Is the only friend that I have

O que mais eu sentia falta neles? Era de como eu nunca, nunca me sentia sozinha. Mesmo estando sozinha, sempre encontrava bilhetes da mamãe em minhas roupas, dentro dos meus sapatos... uma vez encontrei um dentro do lanche da escola. Eu ria sempre que lembrava disso. Mamãe tinha um grande senso de humor.

Suspirei.

I don't wanna be without it

I just wanna feel alive and

Get to see your face again

Queria tanto ver eles mais uma vez, ouvir suas vozes e dizer o quanto eu os amava. Queria que não doesse o tanto que dói. Queria não me sentir tão sozinha e desamparada, afinal de contas, eu tinha o vovô, e isso era injusto com ele.

Quando dei sinal, o ônibus parou no ponto na esquina da escola. Olhei para o céu.

— Se estiverem aí, olhem por mim. — Não quis que soasse como uma prece, mas foi o que pareceu.

Queria poder dizer que a partir desse dia em diante, as coisas foram mais fáceis, que meu coração encontrou a paz e que, apesar da saudade que eu sentia deles, eu vivi feliz. Mas isso seria fácil demais, não acham? A vida é tudo, menos fácil.

Andei pelos corredores, com todos me olhando, provavelmente sentindo pena. Minha vontade era de gritar com todos, mas em vez disso, passei por eles, tentando não notar ninguém, tentando não pensar que eu andava por eles, tentava não pensar que eu estava sozinha.

Assim que entrei em minha sala, fui até meu lugar e olhei bem para a terceira carteira da segunda fileira. Passei reto me sentei no fundo. Encostei na parede, tirei meu celular do bolso, aumentei ainda mais o som, coloquei o capuz na cabeça, cruzei os braços e apoiei a cabeça neles. Uma lágrima escorreu. Olhei pela janela. Uma fina chuva batia nela, e os sorrisos de mamãe e de papai foram a última coisa que vi quando eu comecei a dormir.

Hello, hello

Anybody out there?

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