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Capítulo quatro - Um voo rasante

When you said your last goodbye

I died a little bit inside

I lay in tears in bed all night

Alone, without you by my side

Kodaline — All I Want

Rafael

Eu esperava no grande salão. Não conseguia entender essa inquietude que havia dentro de mim. Eu não conseguia parar em um lugar, andava de um lado para o outro. O que eu mais queria era que Miguel já estivesse aqui com a resposta do nosso pai.

— Que demora! O que será que está acontecendo lá dentro? Será meu julgamento?

Passei as mãos pelo cabelo e me sentei no banco. Eu precisava parar de sentir isso, então pensei na Ellen e em como eu poderia ajudá-la quando eu finalmente estivesse com ela.

Sorri. Esperaria que Ellen conseguisse voltar a acreditar, e assim tudo estaria resolvido.

A grande porta dos salões rangeu e a pesada porta branca com detalhes em ouro se abriu. Tentei espiar a cara do nosso Pai, mas Miguel a fechou com pressa, antes mesmo que eu pudesse vê-lo.

— E aí, Miguel?

— Rafael, precisamos conversar antes.

— Ele não me deixou ir?

— Se acalme, irmão. Já disse que sentimentos mortais não são pra ser nossos, entendeu?

— Mas é que...

— Nosso Pai está preocupado contigo.

— Mas eu estou bem e...

— Rafael, cale-se e me deixe terminar.

— Desculpe-me. — Abaixei a cabeça e torci as mãos.

— Ele acha que não seria bom a sua ida até a terra. — Levantei a cabeça, mas Miguel me interrompeu: — Ele sente algo errado com você, ele não sabe explicar o que é, por ele você não vai.

— Droga!

— Rafael, não pragueje.

— Desculpe, é que eu queria muito ir, queria poder ajudá-la.

— Eu sei disso, e foi por isso que conversei muito com nosso Pai. Eu intercedi por você, irmão, falei sobre o que ele ensinou para a gente, sobre o livre arbítrio sobre nossas escolhas.

— Deu certo?

Ele me olhou no fundo dos olhos e sorriu, então eu entendi.

— Quando eu vou?

— Amanhã de manhã. Precisamos antes disso meditar, e você precisa entender muito bem a sua missão na terra. Você é precioso, irmão, seu destino é ser algo maior do que és.

— Eu não poderia pular isso tudo e ir agora?

— Não, você não pode. Não precisa ter tanta pressa assim, Rafael. O que está acontecendo com você?

— Não sei, só me sinto estranho, sinto uma coisa por dentro que eu não consigo decifrar. Eu li sobre isso uma vez, mas eu não sabia que era assim tão perturbador.

— Será que vou me arrepender de ter intercedido por você?

— Não, claro que não. Vamos lá, vamos começar a trabalhar agora mesmo.

Ele me olhou, balançou a cabeça e saiu. Eu ia atrás dele, fazendo todo tipo de pergunta que eu imaginava, e ele apenas balançava a cabeça.

— Rafael, primeiro vamos meditar, você precisa se acalmar.

— Não, vamos lá, o que eu preciso saber?

— Precisa saber que está na hora de meditar. Sente-se.

Fechei a cara e me sentei ao seu lado, em uma nuvem. O dia hoje estava tranquilo, o sol brilhava forte e quase não havia ventos. sorri quando senti que minhas asas abriram, e uma brisa leve passou por elas, então tentei dar o melhor de mim na meditação. Eu precisava entender o que Miguel queria de mim, não poderia e nem queria decepcionar meu amigo, então tratei de esvaziar a mente e me concentrar em mim.

O primeiro passo foi acalmar minha respiração. Controlá-la estava fácil: respira, inspira devagar, com calma... Nada mais tinha importância nesse momento. Agora eu deveria acalmar meu coração, prestar atenção em cada batida dele. No começo foi difícil, pois estava acelerado demais; mas alguns minutos depois consegui. O terceiro passo era traçar um plano. Como eu faria com que Ellen voltasse a acreditar em mim? Cogitei várias hipóteses, entre elas, a de chegar falando que eu era o anjo a guarda dela; mas logo desisti dessa ideia. Ela pensaria que eu era louco e minha aproximação com ela ficaria difícil... então o melhor jeito seria ganhar a sua confiança e a amizade, e só depois eu lhe contaria a verdade.

Sorri. Era isso mesmo o que eu faria.

Fiquei ainda ali por mais algum tempo, até que senti Miguel tocando meu ombro com delicadeza.

— Rafael?

— Oi, Miguel.

— Vamos entrar. Precisamos conversar, você precisa saber de algumas coisas antes de partir.

— O que eu preciso saber?

— Como as coisas na terra funcionam.

— Como assim?

Enquanto caminhávamos de volta para os nossos dormitórios, Miguel foi explicando como as coisas na terra funcionavam.

— Rafael, meu amigo, nós, anjos, temos muito mais do que o dever de proteger os seres humanos. Nós os ajudamos, acalmando sua cólera, temos que tirar delas toda a maldade e a tristeza que existem dentro deles, porém, em alguns casos não conseguimos, porque existe o livre arbítrio, e ele você nunca; eu disse NUNCA pode se intrometer, não podemos fazer com que as pessoas amem umas às outras, que se respeitem, se elas não quiserem, assim como não podemos fazer elas acreditarem em nada, nem em nós. Os anjos apenas podem dar boas razões para que os seres humanos evoluam. Na terra existe muita maldade, existe guerra, fome, pessoas matando pessoas, pessoas sendo egoístas e mesquinhas... Tudo isso você nunca sentiu, então, meu amigo, essa sua missão é difícil, terá que lidar com tudo isso e ainda fazer Ellen acreditar de novo sem interferir no livro arbítrio dela.

Eu escutava com atenção.

Ele já havia ido à terra algumas vezes, ele sabia do que os seres humanos eram capazes, sabia que cada anjo tinha uma especialidade diferente: alguns protegiam a ciência; outros, as revelações; e outros, como eu, eram anjos protetores.

Eu gostaria e muito que essa minha viagem saísse exatamente como eu estava planejando.

Sorri e agradeci ao papai por ter me deixado ter essa experiência, por me deixar ajudar Ellen.

— Vamos agora estudar, Rafael, você precisa conhecer mais sobre a história da terra.

— Essa eu já conheço. A terra nasceu...

— Não, meu amigo, não é como a terra surgiu no universo e de como os seres humanos vivem na terra.

Então passamos pelos grandes arcos do conhecimento e adentramos a biblioteca celestial.

A biblioteca era maior do que a que eu fazia minhas pesquisas, parecia não ter fim. As estantes de livros iam do teto ao chão, e os corredores eram imensos. Havia detalhes entalhados nas estantes. Miguel me disse que era por esses entalhes que encontrávamos o que procurávamos, porque eles eram os assuntos dos livros daquela estante.

Meus olhos não acreditavam no que viam. Eram corredores e mais corredores de conhecimento.

Paramos de frente para uma estante que tinha a terra entalhada nela. Esse era o único entalhe pintado em cores. O planeta azul parecia ainda mais belo diante desse entalhe.

— Segure esse livro...

Ele entregou a mim um livro enorme e pesado, em seguida foi colocando mais e mais em meus braços.

Quando sentamos junto a uma mesa, ele sorriu, abriu a primeira página e começou a contar sobre a história dos seres humanos.

Guerras, sangue, gente inocente morrendo, e o pior: que muitas delas eram em nome do nosso Pai, outras delas era por discriminação. Houvera um tempo na terra em que pessoas sofriam pela cor da pele. Nesse tempo chamado de escravidão vi várias pessoas morrendo, sofrendo, vi meus irmãos lutando contra injustiça, vi-os protegendo, sangrando, vi-os sem esperança...

— Por quê? Por que essa guerra? Por que tanta injustiça? Por que nosso Pai não se intrometeu nisso e proibiu os seres humanos de escravizarem outros, ou de matarem por causa de suas crenças?

— Porque os seres humanos estão na terra para poderem evoluir seu espírito, Rafael. Eles precisam ter a consciência de seus atos, que tudo na vida terrestre tem um preço a ser pago, se não na terra, o preço irá ser pago quando eles voltarem para o plano espiritual.

— Por que eles acreditam tanto no inferno, sendo que o inferno é a própria terra?

— Uma pergunta bem complexa, não acha?

— Sim, eu sei...

Miguel ficou ainda mostrando mais da história da humanidade, de como as águas encobriram a terra, matando milhares de pessoas; de como o fogo se havia se alastrado por ela, matando outras milhares; de como tinham matado os milagres que nosso Pai havia mandado para salvar a todos... A sensação de ver tudo isso era esquisita. Eu tinha vontade de chorar, assim como a Ellen quando se lembrava dos seus pais.

Uma das coisas que eu não havia entendido era o porquê de tantas pessoas inocentes morrerem, às vezes, só de estarem no lugar errado, na hora errada.

Meus olhos se encheram d’água enquanto eu lia sobre Hitler. Ele tivera um dom, isso era inquestionável. Ele havia influenciado milhares e milhares de pessoas, mas sua influência tinha sido negativa, com uma ideologia estúpida. O regime nazista havia sido um dos maiores genocídios da história da humanidade, matando pelo menos seis milhões de judeus e milhões de outras pessoas que Hitler e seus seguidores consideravam na época como Untermenschen “sub-humanos”...

Por fim cheguei a uma triste conclusão.

— A terra é um lugar ruim pra se viver — disse, entre meus soluços.

Um lugar que tinha tudo para prosperar vida havia se tornado palco de guerras tão terríveis e sanguinárias. Agora me perguntava: será que Lúcifer era tão errado assim em não querer que a terra fosse povoada com os humanos?

— Não, Rafael, ela não é ruim pra se viver. Há sim muita desgraça e muitas pessoas más que já andaram sobre a terra, mas também há pessoas que trazem esperança, fé e alegria. Olhe aqui.

Ele abriu outro livro, um de capa azul, e mostrou pessoas ajudando as outras, pessoas acabando com a escravidão, decretando leis em prol dos menos favorecidos... Vi pessoas que eram contra o ódio determinado por outras pessoas, lutando para um mundo mais justo; vi muita gente amando a si mesmo e aos outros; vi pessoas protegendo os animais e a natureza, e isso me deu fé, esperança de que a terra ainda tinha salvação.

As horas passaram depressa. Quando percebi, já era tarde.

Miguel me ajudou a guardar os livros de volta na estante. Com a mão em meu ombro, ele sorriu para mim.

— Pronto, meu amigo, já está pronto para ir à terra.

— Sério?!

— Sim. Descanse o restante desta noite, amanhã você partirá bem cedo.

Eu sei que meus pensamentos eram confusos. Como eu poderia achar que a humanidade era uma coisa ruim e querer proteger a Ellen? Como poderia achar melhor a terra nunca ter sido povoada por humanos e querer desesperadamente salvar uma pessoa?

Esses pensamentos ecoavam na minha mente enquanto eu voltava sozinho para o meu quarto. Tudo era estranho. Guerras, mortes, pessoas inocentes morrendo em prol de algo sem sentindo algum...

Assim que entrei no meu quarto, fui para a minha janela. Olhei o mundo humano com outros olhos, e esse olhar me fez compreender o que era o livre arbítrio.

Todos nós tínhamos uma escolha, todos nós tínhamos algo para passar na vida, algumas pessoas escolhiam ser más enquanto outras escolhiam serem boas, outras apenas viviam; mas todos, sem exceção, tinham uma missão em comum: elevar o espírito para mais perto do nosso Pai.

Meus pensamentos então foram de encontro com a Ellen. Logo ela estaria bem e voltaria a acreditar em mim, e eu cuidaria e a protegeria com muito carinho.

Naquela noite, descansar foi quase impossível. Fiquei boa parte da noite em minha janela, olhando Ellen dormir.

Arrumei minhas coisas, e quando os primeiros raios de sol saíram, eu já estava pronto para descer à terra. Agora, com um coração mais livre e menos penoso com os humanos.

— Rafael, meu amigo, cuidado lá na terra. Existe muitas pessoas boas, mas existe pessoas más também. Não queira ajudar todos, muita gente não quer ajuda.

— Sim. Mais alguma coisa?

— Não, só cumpra sua tarefa. Estaremos esperando seu retorno.

Ele me olhou no fundo dos olhos e sorriu. Sorri de volta para ele, que logo em seguida me abraçou.

Respirei fundo e parti.

A descida até a terra foi relativamente rápida. Apesar de ter uma magia protegendo minhas assas, não seria bom que algum humano me visse descendo do céu. Eu imaginava o caos que seria se assim fosse.

Comecei a rir de uma forma que eu nunca havia rido, tanto que me distraí e acabei batendo em algo duro, caindo a alguns metros.

— Ai... — gemi.

Eu havia caído em uma lata de lixo atrás de um beco. Eu sabia porque já havia lido muito sobre o lixo que os seres humanos produzem, em como são fedidos e grudentos.

Quando abri a tampa da lixeira, um garotinho me olhava com os olhos arregalados e a boca aberta.

— Você estava voando?

— Não... claro que não, eu só... eu só... caí de lá de cima — respondi, saindo da lixeira e apontado para o céu.

O pequeno garotinho de olhos castanhos deu de ombros.

— Estava fazendo que lá no telhado?

— Telhado?

— Sim. Não disse que estava lá em cima?

O garotinho apontou para o topo de uma casa com um olhar de haha, eu peguei você, seu mentiroso!, e sorriu para mim.

— Escute aqui, amigo, as coisas por aqui não funcionam assim!

— E como funciona?

— Você tem que pagar uma taxa.

— Pagar? Taxa? O que é isso?

— Ah! Qual é? Por favor! — Girou nos calcanhares, colocou a mão atrás das costas, tomou fôlego e... — Verdinhas, dindin, grana, dinheiro... Vai me dizer que não sabe o que é isso? — Parou na minha frente e começou a me olhar com curiosidade.

Eu estava sentado no chão, com as pernas cruzadas. Cocei a cabeça e pensei, colocando a mão no queixo.

— Ah! Grana! — Prendi a respiração.

— Sim, grana!

— Não, eu não sei o que é isso. — Soltei de uma vez o ar que estava segurando.

— Por favor, amigo, me ajude a te ajudar. Qual é, vai? De onde você veio?

Levantei-me, coloquei a mão no joelho e me abaixei até a altura daquele pequeno garoto, que me fitava com curiosidade.

— Qual é o seu nome, garoto?

— Zayn. E o seu?

— Rafael. Seu nome é bonito. Sabe o que ele significa? — Ele disse que não com a cabeça. — Seu nome significa Belo e Gracioso, cheio de beleza e Graça, é e de origem árabe.

— Como você sabe isso e não sabe o que é dinheiro?

— Zayn, posso te contar um segredo? — Ele disse que sim com a cabeça de novo, e eu me aproximei mais de sua orelha. — Eu sou um anjo e vim aqui ajudar uma amiga minha.

— Anjo?

— Sim, anjo — disse, girando e olhando para o beco atrás de mim. — Sabe os seres de luz, seres positivos e alegres, cheios de humor e amor divertido, pacientes e bondosos, misericordiosos e intercedorês de vocês, seres humanos? — Voltei a olhar para o pequeno garoto. — Nossa missão como filhos do Senhor é levar esperança, paz e serenidade, deixando em nossa passagem na terra um rastro de amor e paz.

Ele olhou bem para mim e explodiu numa gargalhada engraçada tão alta, que fez com que algumas pessoas olhassem feio para a gente.

— Zayn, para com isso, as pessoas estão olhando.

— Acha que eu sou bobo? Posso ser criança, mas eu não sou idiota, Rafael; se esse é seu nome de verdade.

— Claro que é. Quer uma prova de quem eu sou de verdade?

— Isso seria interessante.

— Se afaste. Minhas assas são grandes.

Ele deu um passo para trás, e eu dei dois, desfiz a magia que tinha nas minhas assas, e elas ficaram visíveis ao olhar do garoto, que agora tinha uma cara engraçada. Sua boca estava aberta e ele emitia um som de OOO engraçado.

— Zayne... Zayne... — Eu o chamava insistentemente, mas ele parecia estar em um estado catatônico. — Zayne! — gritei, sacudindo seu ombro.

— Meu Deus, você realmente é um anjo! — exclamou.

— Sim, eu disse pra você — respondi, sorrindo. — Zayne, eu preciso da sua ajuda.

— Claro, Rafael, pode falar.

— Você conhece a Ellen?

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