Os dedos das minhas mãos estão começando a endurecer, por causa deste frio congelante. Está ficando cada vez mais difícil segurar a minha espada e isso não é o mais grave. Essa maldita neve, que não para de cair, está transformando o campo de batalha num lamaçal. Esse barro misturado ao lago de sangue que estou pisando está fazendo a minha armadura pesar uma tonelada.
Não posso pensar nisso agora, tenho que me concentrar na batalha. Lá vem uma nova legião de soldados querendo matar a mim e os meus bravos compatriotas. Apesar do cansaço, sinto que tenho forças para matar mais mil homens, quanto aos outros, não sei quanto tempo mais resistirão.
O primeiro inimigo que vem correndo na minha direção está com a sua espada pronta para me cortar ao meio, porém detenho o seu golpe com o meu escudo no mesmo instante que corto uma das suas pernas, decepando-a. Ele cai em agonia, mas sua dor logo termina ao sentir a minha lâmina entrando na sua armadura como se fosse manteiga, acertando-lhe a carne e perfurando o seu coração.
Que delícia é a morte! É um prazer imenso ver esses bastardos turcos morrerem sob a minha espada. Acredito que o meu elmo deve estar cheio de sangue, pois posso sentir o sabor do líquido rubro de todos que já matei nos meus lábios. É tão saboroso que aumenta a minha sede por mais mortes consideravelmente.
Outros três guerreiros me cercam e já não tenho muito tempo de pensar, depois de tantas batalhas, faço tudo por instinto. Decepo os dois braços de um, em seguida, faço um giro de cento e oitenta graus decapitando o outro, ao mesmo tempo, protejo o meu corpo contra um golpe do terceiro com o meu escudo, depois enfio a minha espada na base da barriga deste rasgando o seu tronco de uma ponta a outra.
Nem me lembro do motivo dessa guerra. Não! Na verdade, lembro-me sim. É em nome do Criador. Foi em nome Dele que reivindicamos à terra do nascimento do seu filho, no entanto, perdemos feio. Agora, é em nome Dele que estou protegendo o meu reino, além de todo o ocidente, contra a invasão do Império Otomano.
Mas… espera… eu não sou esse guerreiro destemido. Sou uma garota! Subitamente, sinto o meu corpo flutuar e já não estou na batalha. Vejo a guerra de cima, o guerreiro que antes pensei ser eu, tira o seu elmo, posso ver os seus olhos e… Nossa! Estão vermelhos como sangue, além disso, está sorrindo como se realmente estivesse sentindo um prazer imenso.
Ele luta ferozmente contra vários inimigos, enfiando a sua lâmina nas entranhas deles. Vez ou outra, deixando ela dentro de um guerreiro ou outro, trocando-a por lanças no seu caminho, empalando as suas vítimas. Nossa! Estou perplexa com essa batalha devido à trilha de morte e sangue que é deixada pelo guerreiro de olhos vermelhos ao longo do caminho por onde passa.
Eis que tudo desaparece numa névoa escura. Quando ela dissipa, noto que estou flutuando sobre um edifício numa cidade grande. É noite, chuva cai torrencialmente me encharcando completamente. Apesar da escuridão, consigo distinguir uma figura que parece ser a minha mãe no topo da construção.
Começo a aproximar-me dela, graças a vários relâmpagos que rasgão o céu de ponta a ponta por várias vezes seguidas, tenho a certeza de que é minha velha. Ela está chorando sobre o corpo de um homem e… Nossa! O rosto dele se assemelha bastante com o guerreiro que lutava agora a pouco, ele parece que está morrendo ou será que já está morto?
— Sara?! — ouço a minha mãe me chamar e bater na porta, no mesmo instante que o sonho se desfaz numa névoa escura — Acorda! Senão, você vai chegar atrasada!
Abro os olhos, me deparo com a claridade do novo dia que está começando a entrar pela janela do quarto. Esfrego as mãos no rosto, dou aquela espreguiçada. Que droga! Ainda estou com sono! Esses malditos sonhos de guerras sempre me deixam cansada e sonolenta. Fora isso, ainda tem essa imagem da minha velha, com esse guerreiro estranho, gravada na minha mente.
Sento na cama, dou uma olhada geral no meu quarto. Diversos livros numa prateleira ao lado da cama e, abaixo, a minha escrivaninha para estudar cheia de papéis, alguns cadernos e a minha mochila preta. Odeio ir para escola! Sou sempre excluída de tudo, sempre tenho que fazer sozinha os trabalhos escolares porque não me incluem em nenhum grupo. Vez ou outra, ouço piadinhas ao meu respeito, tudo por me acharem estranha. Pesando bem, sou bem estranha mesmo.
— Sara?! — a minha velha bate na porta outra vez.
— Tá! Já acordei! — falo alto.
— Anda logo! Vai chegar atrasada no seu primeiro dia na escola nova?!
— Já sei! — reviro os olhos.
Levanto da cama e apesar de não gostar, encaro o meu reflexo no espelho da porta do pequeno guarda-roupa branco. Tem razão das meninas não quererem fazer amizade comigo, senão fosse pelas minhas bochechas levemente rosadas, eu pareceria um fantasma com esse cabelo branco como leite e essas duas bolinhas de gude que são os meus olhos verde-claro que, às vezes, parecem azuis.
Visto-me, rapidamente, colocando uma camiseta de uma das minhas bandas favoritas, o Korn, calças jeans preta e o meu All Star da mesma cor da roupa. Arrumo a minha mochila colocando dois cadernos universitários, um estojo simples, além da camiseta branca da escola.
Penteio o meu cabelo deixando-o solto, como gosto. Olho novamente no espelho. Se o meu cabelo fosse preto, iriam dizer que sou EMO com essa franja grande cobrindo uma parte do meu rosto.
Queria poder mudar a cor do meu cabelo, mas a minha velha não deixa. Diz que pintar o cabelo é coisa de mulher mais velha e não para criança. Mais que droga! Não sou mais criança! Em vinte dias completarei dezesseis anos!
— O café está pronto, filha! — a ouço gritar da cozinha.
Dou um longo suspiro ainda olhando para o meu reflexo, depois vou para cozinha carregando a minha mochila, o meu celular preto e o meu headfone da mesma cor que o aparelho. Dou uma olhada na minha mãe que está de costas para mim, lavando algo na pia.
Ela é tão bonita com esse cabelo preto, cacheado e longo, parece o céu noturno de tão escuro que é. E o corpo… Ainda não sei o porquê de ela continuar sozinha depois de eu ter nascido. Poderia ter o homem que quisesse, contudo, acredito que aconteceu algo entre ela e o meu pai.
A minha velha não gosta de falar no assunto, apenas disse que ele morreu um pouco antes do meu nascimento e toda vez que quero saber mais, fica nervosa, desconversa, fala sobre qualquer outra coisa.
— Ei! Por que está parada aí me olhando?! Já disse que vai se atrasar! — Ela me olha com os seus grandes olhos negros e um sorriso lindo nos lábios rubros como sangue. A sua pele é tão alva como o leite, eu poderia dizer que ela é a branca de neve dos contos de fada e apesar de ter quarenta anos nem parece.
— Não quero ir na escola. — sento na cadeira mais próxima, colocando a mochila no chão, o celular e o headfone coloco sobre a mesa, depois pego um dos copos que já estava ali — Sabe que as garotas não gostam de fazer amizade comigo.
— Quem sabe nessa nova escola você consegue fazer amigos. — Ela coloca a garrafa de café sobre a mesa que está completa com pães, geleia e leite.
A nossa vida não é de luxo, a minha mãe trabalha à noite como bartender. Nós nunca tivemos uma casa para chamar, realmente, de nossa porque estamos sempre nos mudando, já moramos em tantas cidades que até perdi a conta. Nesse momento, estamos morando em São Paulo.
A minha velha disse que já moramos aqui quando eu era bebê. O nosso apartamento alugado é simples, com dois quartos, um banheiro minúsculo, uma pequena sala e uma cozinha americana. Não temos muitos móveis, somente o necessário.
— Tive aquele pesadelo de novo. — coloco o café no copo.
— Qual deles? Você sempre tem pesadelos. — Ela senta de frente para mim.
— Aquele que você aparece chorando abraçada a um homem que nunca vi. Ele parece que está morto ou morrendo.
— Hum!? é só um sonho, filha. — desvia o seu olhar para a janela.
— Mas, ultimamente, está ficando cada vez mais nítido, tanto que ele se parece com um dos guerreiros que sempre aparece nos meus sonhos. — bebo metade do café antes de continuar — Também estou tendo esse sonho com mais frequência.
— Não se preocupe, é apenas um sonho. Agora, come logo para não se atrasar. — Ela pega um pão e começa a passar geleia nele.
Tomo o restante do café puro, logo depois sigo para o banheiro para terminar de me arrumar. Volto para a sala, coloco a mochila nas costas e pego o meu “skate” com desenho de caveira mexicana que sempre deixo atrás da porta de entrada.
— Ei! Você não vai comer nada? — pergunta com uma cara de poucos amigos.
— Não estou com fome. — respondo colocando o headfone.
— Sabe que não gosto que você saia de casa sem comer alguma coisa!
— Tá! Realmente estou sem fome. De qualquer maneira, estou levando dinheiro para o caso de ter vontade de comer algo.
— Ok! Não fique até tarde na rua! Sabe que estamos numa cidade muito perigosa.
— Sei disso, Maria. — reviro os olhos, dou um longo suspiro pegando o meu celular — Você sabe que quando saio da escola sempre venho direto pra casa.
— Maria? Já te disse para não me chamar assim! Agora, quem sabe se você fizer algum amigo, queira ficar até mais tarde na rua, por isso não chegue aqui depois que eu sair para o trabalho.
— Tá, mãe! — reviro os olhos novamente.
Essa é a Dona Maria Ribeiro, minha mãe. Está sempre otimista, sempre preocupada, sempre linda. Nunca tivemos grandes discussões porque ela é muito amorosa e preocupada com o meu bem-estar. Na verdade, constantemente fica preocupada por eu não ter amigos, mas ela entende, já que nos mudamos com grande frequência. Nunca entendi o motivo disso e todas às vezes, antes de nos mudarmos, fala que o lugar onde estamos não serve mais para ter uma vida tranquila.
Coloco para tocar no celular a música “Slept so Long” do grupo Korn logo após fechar a porta e sigo para o elevador.
Ao chegar à rua, percebo que o dia está bem nublado. Aposto que a minha velha vai aproveitar para fazer compras no mercado, pois ela nunca sai de casa quando está sol, até parece que tem medo dele. Coloco o meu “skate” no chão e começo a andar pelo bairro na direção da escola.
Moramos num bairro chamado Lapa que é bastante movimentado com várias avenidas com o trânsito carregado, mas também tem algumas ruas mais tranquilas. A nossa é uma dessas mais calmas e a escola não fica muito distante.
O problema de se começar numa nova escola é entrar com o ano letivo já em movimento. Como estamos no primeiro dia útil do mês de maio de dois mil e dezesseis, já se passaram três meses desde que as aulas começaram. Isso quer dizer que vai ser mais difícil tentar fazer amigos, se bem que essa tarefa nunca se realizou em qualquer momento do ano.
Ao chegar perto, percebo que já está repleta de adolescentes risonhos na frente do muro e da entrada. Como sempre acontece no primeiro dia de escola nova, sinto alguns olhares curiosos e outros de extrema arrogância pra cima de mim. Droga! Por que isso acontece? Não sou alienígena! Antes de parar em frente ao portão, noto uma árvore do outro lado da rua não muito distante da entrada, é exatamente para onde sigo, assim posso aguardar com mais tranquilidade a “prisão” abrir as suas portas.
Um garoto afrodescendente, cabelo bem curto, que está junto de uma turma perto do portão, está me encarando e isso me deixa nervosa. Os garotos normalmente passam longe de mim, por isso ainda sou “boca virgem”. Como pode uma coisa dessas? Dezesseis anos na cara e ainda sou B.V., mas também, quem é que vai gostar de uma garota como eu, magricela, sem qualquer atrativo e, ainda por cima, albina.
O garoto se aproxima, isso faz com que eu perceba que ele é tão alto quanto um jogador de basquete, por isso tenho que levantar um pouco a cabeça para olhar nos seus olhos e… Nossa! Que olhos lindos! Parecem duas jabuticabas! Tiro o meu headfone quando ele abre um leve sorriso e fala algo:
— Como? — pergunto.
— Eu disse “oi”! Aluna nova, não é?!
— Sim. — “É claro que sou aluna nova, seu doido! Por acaso já tinha me visto aqui antes?”, poderia dizer essas palavras, mas contenho-me.
— O meu nome é Júlio. Qual é o seu? — questiona ainda sorrindo.
— Sara.
— Já sabe qual é a sua sala?
— A Minha mãe disse que é o 2.º ano B.
— Ah! Que legal! É a minha sala! — Ele abre mais o sorriso e… Nossa! Que sorriso lindo! — Vou te mostrar tudo, te apresentar para alguns alunos, mas não se preocupe se não fizer amigos logo de cara porque até comigo, foi um pouco difícil me enturmar.
— Beleza! — mostro um leve sorriso.
O portão é aberto e a molecada começa a adentrar as entranhas do prédio.
— Vamos evitar o tumulto por enquanto. — diz se virando para olhar o pessoal entrando, em seguida, volta a sua atenção para mim e abre novamente um grande sorriso — Vejo que é roqueira e esqueitista.
— Sim. — murmuro coçando a cabeça. “Você é mesmo um gênio!”, reflito.
— Mas, você trouxe a camiseta da escola? Eles são muito chatos quanto a isso! — levanta uma sobrancelha e o seu sorriso se desfaz.
— Trouxe. — tiro a mochila das costas, pego a minha camiseta, após vesti-la por cima da outra, agarro o meu “skate” e coloco a mochila em um dos ombros — Vamos entrar?
— Sim! Venha!
Ele pega a minha mão livre e me puxa na direção do portão. O que quer? Nenhum garoto pegou a minha mão antes! Acho esse Júlio muito estranho e… bonito. Balanço a minha cabeça para esquecer o meu pensamento e, assim, preparar-me para o que está por vir.
Ao entrar, percebo que a escola é bem grande. O Júlio me leva por um corredor largo e comprido onde ficam as salas de aula, depois passamos por um pátio em forma de um quadrado com vários bancos de concreto. Em seguida, passamos por um segundo prédio onde ficam os banheiros, um pequeno palco para apresentações, a cozinha e o refeitório.
O Júlio me leva até a quadra de esportes que é coberta, depois voltamos por outro prédio que ele diz ser onde fica a biblioteca, a sala dos professores, da direção e a secretaria. Todos os locais possuem aparência de velhos, gastos e com várias pichações da molecada, inclusive com palavrões, mas o que poderia se esperar de uma escola pública no Brasil?
Por todos os locais que passamos, ele cumprimenta um ou outro garoto, além de algumas garotas. Pelo jeito é popular. Ainda continua segurando a minha mão e isso já está me incomodando. Não quero ser grosseira, mas… “Será que dá pra largar a minha mão, cara!”, reflito, porém, não faço nada.
Só me larga quando, finalmente, entramos na sala de aula. Ele cumprimenta dois garotos e duas meninas, em seguida me apresenta:
— Galera, essa é a Sara!
Uma menina loira platinada de olhos castanhos, traços finos, está lixando uma das suas garras. Olha para mim com desdém, depois volta a fazer o mesmo de antes apenas dizendo “oi”.
— Não liga pra ela, Sara! A Bianca é sempre assim! Só se interessa por suas unhas e a sua beleza. — diz a outra garota com cabelo e olhos castanhos, pele clara, lábios finos e o corpo um pouco acima do peso — O meu nome é Alessandra. — sorri para mim.
— E você, Alessandra, que só se interessa em saber qual vai ser o lanche do dia! — A Bianca fala sem nem ao menos olhar para a outra garota.
— Essas meninas são loucas! Nem se importe muito com o que elas falam. — declara um dos garotos com cabelo cacheado, longo até o ombro e loiro, olhos azuis muito claros, da minha altura e de porte atlético — O meu nome é Gustavo.
— O meu é Fernando. — fala o outro menino que tem a aparência de ser descendente de índio, tão alto quanto o Júlio, magro e cabelo do mesmo tamanho que o do Gustavo.
Cumprimento a todos com um simples aceno de cabeça e um leve sorriso. Esse pessoal desta escola é mais acessível que os das outras. Por que será? Isso é muito estranho pra mim.
— Bom dia! — diz uma mulher que acaba de entrar na sala, aparentando quarenta anos, baixinha, gordinha, pele clara, cabelo castanho escuro preso num rabo de cavalo e usando óculos na cor vermelha.
— Venha! Sente-se do meu lado. — O Júlio me puxa pela mão novamente, me levando para o fundo da sala — Essa é a Dona Shirley, a nossa professora de matemática.
— Sério! — murmuro baixo — Em plena segunda-feira e a primeira aula é de matemática!
— A primeira e a segunda. Hoje só temos aula dupla. Depois te passo os horários. — Ele senta na última carteira, enquanto me ajeito na mesa ao lado — Mas você tem alguma coisa contra matemática?
— Eu odeio matemática. — tento falar o mais baixo possível.
— Não esquenta. Se tiver problemas com a matéria te ajudo. De qual você gosta? — fala bem perto de mim e o mais baixo possível.
— Tirando a parte da gramática, gosto muito de português, mais precisamente de literatura.
— Que bom! Então, você pode me ajudar nessa matéria. — ele mostra o seu sorriso lindo e sinto o meu rosto pegando fogo — Por que ficou vermelha? — O Júlio franze a testa.
— Vamos parar com o cochicho aí atrás! — A professora fala olhando para mim e o meu rosto queima ainda mais.
Coloco rapidamente o meu headfone na mochila, pego um dos cadernos, o estojo e deixo o meu celular sobre a carteira.
— Bom, hoje, vamos finalizar o conteúdo sobre ciclo trigonométrico. Não se esqueçam da prova de sexta, por isso não faltem! — A megera fala depois que todos os alunos estão acomodados nos seus lugares.
— Que merda! — resmungo.
— Já disse para não se preocupar que te ajudo. — O Júlio murmura perto de mim e pega o meu celular — Vou colocar o meu número na memória do seu celular, aí podemos conversar pelo WhatsApp para combinar um horário para estudar.
Arregalo os olhos e sinto as minhas bochechas queimarem novamente. Um garoto colocando o seu número no meu celular? Gente! O que está acontecendo? Estou num mundo paralelo ou o quê? O que ele quer comigo?
— Pronto! — me entrega o aparelho e continua falando bem perto de mim — Depois da aula de matemática podemos conversar melhor, essa Dona é meio chata e não gosta que a gente fique conversando e é bom para podermos entender a matéria.
As duas aulas passam devagar com essa bruxa falando e escrevendo no quadro negro. Meu pai do céu! Ninguém merece matemática na segunda de manhã. Faço todas as anotações tentando entender o que ela diz, contudo, para mim, parece que está falando grego. Lembro-me de uma ou outra coisa sobre trigonometria da outra escola, porém creio que ainda não tínhamos chegado neste ponto.
Quando a megera sai, sinto a minha cabeça pesar, fecho os meus olhos e deito sobre o caderno amaldiçoando a minha vida.
— Ei! Não fica assim! — ouço a voz do Júlio, em seguida, sinto uma mão nas minhas costas, o que me faz levantar rápido, olho para ele com a cara mais emburrada que poderia fazer. Ele percebe o meu mau-humor e tira a mão das minhas costas.
— Por que está sendo tão gentil? — pergunto encarando os seus olhos.
— Porque quero ser seu amigo! — abre novamente o sorriso lindo — Olha, a próxima aula é de artes, ou seja, bem mais leve e podemos conversar.
— Você disse artes? — O meu humor começa a dar sinais de melhora.
— Sim. Você gosta? — O Júlio puxa a sua carteira e cadeira para ficar mais perto de mim.
— Como eu disse, português é a minha favorita, mas também gosto de artes. Gosto muito de desenhar.
— Legal! Porque eu também!
— Bom dia! — diz uma mulher alta e magra, vestindo roupas de estilo mais despojados e da moda, cabelo louro escuro e solto, olhos castanhos, aparentando vinte e poucos anos.
Durante essa aula, o intervalo e a próxima, que continua sendo de artes, eu e o Júlio conversamos bastante. Descubro que temos os gostos semelhantes. Na música, por exemplo, além dele gostar de “rock” como eu, também gosta de eletrônica, porém é claro que tinha uma coisa para estragar! Ele gosta de “funk”, o que é bem comum para os garotos. Também adora filmes de terror como eu, mas não tem paciência para ler livros desse gênero, ao contrário de mim.
Acho graça das atrapalhadas dos dois melhores amigos dele, o Gustavo e o Fernando, para começarem a namorar. O Júlio diz que o Gustavo namora a Bianca, já o Fernando é namorado da Alessandra. Todos se conhecem desde a quinta série e a partir dessa época sempre estudaram juntos.
O Gustavo e a Bianca viviam brigando e implicando um com outro até descobrirem serem apaixonados no ano passado, então começaram a namorar. Já o outro casal sempre foi muito bons amigos, a amizade virou amor, mas eles tinham medo de se declararem até que o Júlio deu uma forcinha durante a festa de aniversário do Fernando no ano passado.
As duas últimas aulas são de biologia e o professor é um chato! Não deixa ninguém falar na aula dele, por isso o Júlio e eu continuamos conversando através de bilhetes sobre assuntos variados.
Descobri que ele e os seus amigos jogam no time de basquete da escola e as meninas no de vôlei. Pergunta se quero participar de algum desses esportes, digo que o único esporte que gosto é o “skate” porque não dependo de ninguém, além de mim, é claro, para praticar.
Depois da aula, seguimos para a cantina da escola, devoramos lanche com refrigerante, em seguida vamos para a biblioteca. Ficamos por lá a tarde toda estudando para a prova de matemática. Eles comentam que temos trabalhos para entregar na próxima semana das disciplinas de geografia, história e sociologia. Por isso, agregam-me no grupo deles para fazer esses trabalhos.
Como combinado, chego em casa às seis da tarde para não deixar a minha velha brava. Ela costuma sair para o trabalho às seis e meia.
— E então? Como foi o primeiro dia na nova escola? — pergunta assim que coloco o “skate” atrás da porta de entrada.
— Foi legal. — tento disfarçar a minha alegria ao olhar para ela, que está sentada numa da cadeira com o celular na mão.
— Foi legal? — franze a testa, eis que ela abre um grande sorriso — Fez amigos?!
— Acho que sim. — Não consigo conter o sorriso.
— Não falei! — levanta-se e me abraça — Eu disse que ia conseguir fazer amigos! Agora, preciso ir. O jantar está na geladeira.
Ela me dá um beijo na testa, pega a sua bolsa que estava sobre a mesa e sai.
Finalmente, sozinha! Coloco a mochila sobre a minha escrivaninha. O celular e o headfone deixo na minha cama após conectar o aparelho na tomada. Em seguida, vou para a cozinha, abro a geladeira e percebo que está abarrotada de frutas e outras coisas saborosas. Sabia que a minha velha ia aproveitar para ir ao mercado. Ela sempre faz isso, e se por acaso não está nublado, sai à noite para completar a geladeira.
Pego uma das panelas e olho a comida dentro. É picadinho de carne com legumes. De repente, sinto o meu estômago revirar com o cheiro da comida. Não sei o que está acontecendo comigo, mas, às vezes, sinto-me enjoada ao sentir cheiro de comida, não é sempre, mas está ficando mais frequente nesse último mês.
Devido ao mal-estar, a minha cabeça começa a latejar, por isso bebo logo um analgésico. Vou para o banheiro, tomo um banho demorado para tentar relaxar e, quem sabe, fazer a dor de cabeça passar. Logo após sair do banheiro, me visto, deito na cama e começo a jogar no celular até o sono chegar.
Duas horas após ter chegado em casa, o Júlio puxa conversa comigo pelo WhatsApp.
Oi. Td bem? 20:11
Oi. Está sim. 20:12
E vc? 20:12
Td bem tb. 20:14
Gostou do 1 dia
de aula? 20:14
Gostei. 20:15
Vc e seus amigos
são legais! 20:16
Q bom q gostou. 20:17
Me diz 20:18
Como é sua família? 20:18
Ñ tenho família grande. 20:20
Somos só eu e minha mãe 20:21
E VCs se dão bem? 20:22
Ñ tenho o q
reclamar. 20:23
A ñ ser a parte d ficar
mudando de cidade
o tempo todo. 20:24
E pq VCs ficam
mudando sempre 20:25
Coisas da cabeça da minha velha. 20:26
Olha, ñ tô me sentindo bem. Podemos conversar
amanhã? 20:28
O q vc tem? 20:28
Dor d cabeça. 20:29
Precisa d alguma coisa? 20:29
Só d uma boa noite d
sono... 20:31
Blz 20:31
Amanhã a gente se fala 20:32
Tá. 20:33
Até amanhã 20:33
Até 20:34
Coloco o celular em baixo do travesseiro e, poucos minutos depois, mergulho em sono profundo.
Estou no alto de um prédio e está tudo muito escuro, as luzes da cidade abaixo mostram que já é noite. O vento sopra forte balançando tanto o meu cabelo que, em alguns momentos, preciso tirá-lo do rosto. Subitamente, alguns relâmpagos e trovões informam a chegada de uma tempestade, rapidamente as primeiras gotas de chuva caem sobre a minha cabeça, me encharcando.Escuto barulhos estranhos vindos do outro lado do topo do prédio, olho na direção do ruído. Vejo dois vultos lutando com espadas estranhas. Uma delas é prateada tão brilhante quanto o sol do meio-dia. A outra é tão negra como a mais escura das noites.Não consigo ver quem está lutando devido à chuva, porém consigo distinguir um terceiro vulto um pouco mais distante dos outros e… parece que conheço aquela figura. É… a minha mãe! Pare
A escuridão parece que está se dissipando lentamente quando começo a ouvir vozes:— Eu falei que você vai precisar de ajuda. — murmura uma voz desconhecida e melodiosa.— Não preciso de ajuda de ninguém, principalmente dele. — É a voz da minha velha.— Sempre quando eles completam dezesseis anos os seus poderes vêm à tona e você vai precisar de ajuda. — A voz desconhecida parece irritada — E você sabe que com ela será diferente.— Talvez não. — A minha mãe murmura, a sua voz está estranha, parece que está triste.— Cante novamente porque ela está acordando! — A voz estranha exclama, mais irritada.Ouço novamente a melodia e sinto a escuridão me puxando novamente.— Sara. — ouço a voz da minha mãe muito longe — S
Nos dias seguintes, dos cinco amigos, somente o Júlio não conversa comigo, até a Bianca troca algumas palavras na quinta-feira. Tudo bem que foi sobre os trabalhos, mas já é alguma coisa, afinal ela era a única que não conversou comigo. De qualquer maneira, acho esse Júlio um pouco estranho.Durante esses dias, não passei mal, por isso a cor retornou para as minhas bochechas. Creio que deveria ir ao médico para saber o que está acontecendo, mas a minha velha diz que não é nada de importante, que qualquer pessoa pode passar mal algum dia devido à comida.Há momentos que penso que a minha mãe não se preocupa o suficiente comigo, mas é só com relação a minha saúde. Não me lembro dela ter me levado ao médico algum dia, assim como não recordo de ter ficado doente, nem mesmo gripada, não fa&ccedi
O suor escorre quente e fedorento na minha testa, no mesmo instante, que quatro guerreiros humanos me cercam. Abaixo rapidamente me livrando do golpe de dois deles, em seguida passo uma rasteira em outro, derrubando-o, finco a minha espada no seu peito, direto no coração.Depois dou um salto mortal parando atrás de dois, decapitando-os logo que pouso no chão, cortando as suas carnes como se fosse manteiga. O quarto guerreiro tenta, com vários movimentos, desarmar-me, contudo, apesar de ser bem mais forte que os outros, ele não tem a menor chance contra mim. A última coisa que vê é a minha espada rasgando o seu corpo frágil ao meio. Que Delícia!Olho para o horizonte tentando coletar a maior quantidade de ar possível para os meus pulmões. Com esse calor insuportável, preciso tirar o meu elmo o mais rápido possível antes que o próximo levante contra as mi
Chego em casa bem antes de anoitecer, Rylo me recepciona enroscando a sua calda na minha perna, ao mesmo tempo, fica miando. Parece que a minha velha ainda está dormindo.Coloco o “skate” no lugar de sempre, vou para o quarto, guardo o meu equipamento e jogo o meu celular sobre a cama. Em seguida, corro para o banheiro, assim, a minha mãe não vai ver-me, afinal não sei direito qual foi o tamanho do estrago que a queda fez.Encaro o meu reflexo no espelho olhando o ponto dolorido, é um corte tão pequeno que creio ser um exagero o que o Júlio disse, além disso, também parece que já está cicatrizando. Acredito que isso não é normal!Dou de ombro, tiro a minha roupa e tomo um banho demorado, lavando o meu cabelo novamente, pois ainda está um pouquinho manchado de sangue.Ao sair do banheiro, me tranco no quarto, visto um dos muitos pijamas de florezin
— Sara. — A minha mãe me chama, mas a escuridão parece não querer soltar-me — Sara, está na hora.Sinto a mão dela em minha cabeça, suspiro profundamente, enquanto me espreguiço. Olho para ela, parece triste, apesar do sorriso.— Não quero ir na escola hoje.— Pode parar de pensar em faltar. Vamos, levante-se ou vai chegar atrasada. — Ela levanta da cama e sai do quarto.Droga! Eu não quero ir à escola, vou ter que falar com o Júlio, ainda não sei se quero saber o porquê dos olhos dele mudarem de cor ou a sua voz parecer um trovão quando soquei aquele garoto.Levanto-me, encaro o meu reflexo no espelho, o meu rosto parece igual ao outro dia. Aquela vitamina é realmente muito boa. Espera… E o corte na testa? Olho o local e… Nossa! Não tem nada. Nem parece que me machuquei.Já v
Nos dias seguintes, preocupo-me apenas em estudar, fazer os trabalhos escolares que os professores pediram, além de ajudar nos preparativos da festa. A quadra está cada vez mais bonita com os enfeites nas várias tonalidades de marrom e amarelo, transformando o lugar numa floresta no ápice do outono. Em nenhuma outra escola vi tamanha criatividade ou se quer a iniciativa de fazer algo assim.Ainda bem que durante esses dias a Bianca e a Alessandra não tocaram mais no assunto “Júlio”. O problema é que ele se afastou um pouco de mim, conversamos cada vez menos, além de ter ficado mais sério, são poucos os momentos que o vejo sorrir.Acredito que as meninas estavam erradas em dizer que ele está gostando de mim. O problema, agora, é que todas às vezes que o vejo, sinto aquela sensação esquisita na barriga, é como se milhares de borboletas estivessem vo
Ao chegar à praça, vejo que realmente já está aberta ao público novamente. Tem alguns garotos e garotas dando seus roles, mas são poucos, creio que tem uns dez nas três pistas.Após fazer algumas manobras ouvindo a minha seleção musical, sinto-me muito mais tranquila. Aquela hiena nunca mais vai se meter a besta comigo, a não ser que queira que eu quebre o nariz dela de novo, mas ela merecia uma surra bem dada.Um vento, que não sei de onde veio, começa a soprar, algumas nuvens negras começam a se juntar no céu escondendo a lua crescente, além das suas amigas e vizinhas, as belas estrelas.A pista começa a esvaziar quando me sento no terceiro degrau da escadaria, o mais próxima possível de onde a molecada dá os seus roles, tiro os fones do ouvido. Subitamente, uma moça aparentando uns vinte anos para no degrau em que e