Capítulo 8

                                                     Capítulo 8

               Um grande passo é tornar-se um caçador da Liga Superior



            Quando só amigos voltaram ao dormitório, tarde da noite, Pedro e Igor relataram os planos do professor de educação física. Heitor deu-se um tapa na testa, pois tinha esquecido de avisá-los sobre isso. E, como o próprio professor nada dissera, fazendo segredo e mistério até a carta chegar, eles nada sabiam da coisa toda. Assim, foram dormir depois de um banho realmente quente e longo, ansiosos para ver os estádios das ligas.

            Nas civilizações dos monstros, existem vários e vários esportes que, uma vez que os humanos tinham versões inferiores e até mesmo infantis (como futebol e corrida, por exemplo), os monstros praticamente dominavam o entretenimento esportivo, incluindo os grandes eventos e total cobertura da mídia. Não era estranho, no entanto, que os humanos fossem assistir aos campeonatos de luta com armas ou as competições de corrida extrema. Para cada uma das raças haviam modalidades que dominavam. Os orcs, ogros e lobisomens eram quase todos lutadores nas ligas de Luta livre. Os elfos eram conhecidos por sua velocidade no atletismo, corrida com obstáculos, arquearia e esgrima. Os anões tinham uma competição incomum, conhecida como “guerra da forja”: esse esporte tivera início nos confins do tempo, quando Loki, deus nórdico da trapaça e das travessuras, roubara o cabelo de Sif, esposa de Thor, e o deus do trovão ordenou que o trapaceiro conseguisse cabelos novos para ela. Loki contratou anões para forjar uma cabeleira dourada para ela, mas, de tão entusiasmados que estavam, forjaram mais itens mágicos. Nisso, Loki instigou outros anões a forjarem itens tão maravilhosos que poriam os adversários na derrota. E todos os itens foram julgados pelos Aesir, os deuses de Asgard, e ao vencedor caberia arrancar a cabeça de Loki. É claro que o deus das trapaças de safou, mas deu início a essa estranha competição (atualmente, ninguém cortava a cabeça de ninguém, é claro).

            Dentre vários esportes considerados “infantis” pelos humanos, bola queimada era uma especialidade dos monstros, que deram à modalidade um novo patamar de emoção, com acrobacias, obstáculos, regras mais elaboradas, e a permissão de jogadas mais estratégicas do que “jogue, agarre, se esquive”. O esporte favorito dos lobisomens, é claro, era a Caçada: seguindo as tradições dos antigos lobisomens, os licantropos ainda caçavam para comer, era uma regra comum de seus costumes e tradições, e havia até mesmo castigos para os que evitassem o ato por tempo demais.

            Mas, em meados dos anos 70, os lobisomens, já consolidados na sociedade, decidiram fazer um esporte de caça. O esporte consistia numa combinação de esconde-esconde, luta corpo a corpo, luta com facas, corrida com obstáculos, captura de bandeira, e contava com vários times. O maior dos times, atualmente, eram os infames Garras de Rubi, os mais agressivos de toda a temporada desde o surgimento do esporte. Os jovens lobisomens assistiam aos eventos com mais entusiasmo do que os humanos viam a copa do mundo.

            E, para Pedro Fenrirsson, essa era uma oportunidade única. Ele tivera tios que fizeram parte dos Garras, e mesmo seu pai teria sido capitão da equipe, não fosse o fato de que a esposa dele tivera de dar a luz. Resumindo: o pai largou a carreira para cuidar do filho, fato que os lobisomens consideravam respeitável. E, em anos posteriores, serviu o exército nos frontes dos Ninhos dos Mortos. E Pedro sentia que deveria dar uma chance ao que seu pai desistira de fazer por ele, quem sabe lhe dar orgulho no além vida. “Você merece”, ele pensou, ao acordar cedo na segunda-feira de manhã.

            Seus amigos ainda estavam sonolentos, mas ele não. Ele nunca sentia sono de manhã, era uma briga constante para que ele voltasse a dormir (ele mesmo se sentia incomodado com o fato às vezes, mas não via muita escolha). Foi o primeiro a tomar banho, a se arrumar, e já estava dando pulinhos de ansiedade, esperando os amigos. Parecia uma criança empolgada com um dia de passeio, e reclamava da demora. Mas, quando todos estavam prontos, o próprio professor apareceu na porta do dormitório, estourando como um trovão, rindo de entusiasmo.

– ACORDEM SEUS MOLENGAS! – Berrou Gunnar, com um sorriso no rosto – Se querem ver o que quero mostrar, tem de estar prontos! O meu furgão está ligado no estacionamento externo. Os três primeiros que chegarem lá vão ganhar uma pizza de doze fatias pra comerem sozinhos! – E saiu, berrando uma canção na língua gutural dos orcs.

            Os rapazes, é claro, se apressaram: pizza de graça era algo que nenhum queria perder. Mas Pedro já estava lá, seguindo o professor, em ritmo de corrida. “Eu tô morrendo só de correr por aqui”, ele pensou, reclamando como sempre fazia ao precisar se exercitar de manhã. E em minutos fora alcançado por Lincoln. Os dois foram os primeiros a chegar, seguidos por Samuel. Pelo visto, houve um acordo entre eles pare poderem dividir as pizzas, que foi bem recebido pelos outros rapazes menos dispostos a sair correndo. “Se é de graça, então que os vencedores a tenham, a gente divide depois”, eles diziam.

            Gunnar pôs todos dentro do furgão: um carro enorme, com seis rodas, todo customizado com ossos banhados em cromo e um enorme crânio de rinoceronte na frente, também cromado. Havia desenhos de montanhas, fogo e falcões por todo o lado. Quando se pôs a dirigir, ligou o som o mais alto que pôde, para acordar de vez os alunos, numa música que, segundo ele, era uma banda de Melodic Death Metal.

– Caraca, você escuta Amon Amarth! – Gritou Pedro, por cima do som. Logo ele estava cantando, junto com o professor, todo o repertório da banda. Os amigos, é claro, se viram obrigados a cantar junto, e depois de um tempo, também estavam jogando a cabeça para cima e para baixo, ao ritmo da bateria e das guitarras.

            A viagem levou algum tempo, pois o trânsito estava péssimo, e Gunnar ia explicando aos alunos o que ele tinha em mente: conversando com os contatos que tinha, que eram os treinadores de equipes esportivas da Liga, ele conseguiu a oportunidade de uma vaga para cada um dos sete, que haviam demonstrado uma habilidade extraordinária para o esporte. As habilidades físicas, as acrobacias, a sincronia deles, tudo seria muito bem lapidado, caso eles quisessem seguir carreira no esporte.

– É claro – Dizia o professor orc – que vocês não devem se sentir obrigados a aceitar alguma vaga nos times. As vagas ficarão abertas para vocês enquanto tiverem a idade mínima de cada modalidade. Se ficarem velhos demais, outras modalidades podem surgir. Mas, se não quiserem aceitar, paciência. Ficarei orgulhoso de ter sido o professor de vocês, isso é fato. Mas seria bom ver pelo menos um de vocês esmagando os inimigos: eu choraria feito uma mulherzinha, emocionado, de saber que um dos meus alunos estaria lá, humilhando qualquer mauricinho metido a esportista profissional.

            Os sete rapazes, é claro, riram e concordaram em dar uma olhada. Alguns até tinham a idéia de pedir autógrafos para seus ídolos no esporte, caso eles estivessem por lá. Assim, foram dirigindo e ouvindo música alta, assustando motoristas desavisados, até que chegaram ao enorme estádio dos Garras de Rubi. A estrutura era realmente enorme, devido à necessidade de espaço para montar os cenários de caça, natação, corrida, entre vários outros. Do lado de fora, ele tinha o formato de um gigantesco crânio de lobo, todo elaborado com estruturas pintadas em vermelho vivo, escuro, fosco e até cromado, com runas e caracteres da língua antiga que diziam palavras de encorajamento, desafio, e mais abaixo, os fãs tinham o direito de escrever pequenas preces e dedicatórias aos jogadores.

            O professor estacionou na sua vaga de professor (ele já fora técnico dos alunos mais novos da Liga dos Lutadores), e esperou os sete saírem, se situarem e olharem um pouco o estádio.

– Lindo, não é? – Resmungou o grande orc, de braços cruzados e sorrindo.

            Os rapazes concordaram, acenando a cabeça, e já tiravam algumas fotos com seus celulares.

– Venham, venham, seus molengas. Vamos entrar e ver como é lá dentro – Chamou o professor, e os rapazes o seguiram.

            Lá dentro, o ar-condicionado era frio o suficiente para arrepiar a pele. A mudança climática foi bem recebida por todos, e o professor ia narrando os grandes feitos relacionados da Arena Esportiva Crânio Vermelho, pertencente a equipe de Caçadores profissionais das Ligas Superiores Garras de Rubi. Os garotos, é claro, iam olhando e ouvindo, lendo as pequenas placas que estavam incrustadas em estruturas, com jaquetas, camisetas, facas, entre outros artefatos esportivos. Eles olhavam tudo com expressões de deslumbre infantil, e o professor parava de vez em quando e deixava-os olhando, até chamá-los novamente para retomar a caminhada.

            Em dado momento, ele anuncia, com um floreio exagerado:

– Bem-vindos, ao Hall dos Heróis – E, saindo do caminho, deixou os alunos entrarem numa enorme sala de fotografias, troféus abaixo das fotografias, entre várias outras bugigangas.

            Uma delas era um longo arco feito de carvalho escuro, com a corda ainda presa, a madeira lustrosa. Havia cinco flechas junto, e uma sexta, quebrada ao meio. Na flecha quebrada faltava a ponta.

– Este arco – Lincoln leu, com Samuel ao lado – Pertenceu à Ellavar, O Prateado, o maior arqueiro que já houve na história da Liga dos Arqueiros. A sexta flecha, das últimas que restavam na aljava, quebrou-se e perdeu a ponta num tiro que derrubou quarenta drones em linha reta, um ato histórico que marcou permanentemente a carreira do elfo. Atualmente, ele está aposentado e vive na Cidade das Nuvens Douradas.

– Que lugar é esse? – Perguntou Samuel.

– Nunca ouviu falar? – Lincoln se surpreendeu com isso – É um continente voador, foi construído pelos elfos em parceria com os gnomos. Usa um sistema de dirigível, além de combustíveis não poluentes e pode reaproveitar os gases expelidos que podem ser nocivos. Tem, mais ou menos, o tamanho da Rússia.

– Cacete, e como é que eu nunca vi?

– Fica acima do nível das nuvens. Nunca reparou que às vezes, as nuvens se movem rápido demais? Então: a massa de nuvens é a cobertura de fumaça de névoa da cidade. Você já a viu, mas nunca percebeu.

            Em outro canto, Capivara, Heitor e Igor olhavam para instrumentos de natação do mais notório pescador e competidor de natação: Almirante Peregrin “Gancho”, um homem tubarão da rara espécie dos Megalodons. Sua mão direita fora perdida numa briga que teve com um enorme crocodilo, e, substituída por uma prótese, ganhou o apelido de “Gancho”, como na história de Peter Pan. Seu maior feito, por sinal, fora a captura de uma lula gigante enquanto nadava de volta à superfície com pesos de quase cinco toneladas presos à cintura. Dentro da água, os pesos praticamente dobravam o peso, e puxavam-no para baixo, mas, por sorte, ele sabia quando deveria se transformar para não ser desclassificado.

            Em meio aos seus pertences, havia o olho da infame lula: era quase tão grande quanto uma bola de pilates.

            Noutro canto, Pedro e Andrey circulavam, olhando tudo com sorrisos e fazendo comentários, até que, num momento, o lobisomem parou e ficou olhando para um quadro. O homem na imagem era alto, tinha cabelos castanhos e olhos de um verde profundo. Seu nome era Uther Fenrirsson.

– E aí, pai… – Pedro sussurrou, sorrindo timidamente.

            Andrey parou de andar e olhou para trás, intrigado. Quando entendeu o que era, fez um silêncio respeitoso e olhou para a imagem. “É, o Predu tem os olhos do cara”, o anão pensou, analisando a foto e o amigo, que olhava quase num hipnotismo religioso para ela. Enquanto ele olhava, o anão pôs-se a analisar a lista de troféus dele, e de repente parou.

– Cara, teu velho ia ser um Garra de Rubi.

– Eu sei – Comentou Pedro, distraído.

– Mas, por que ele não conseguiu?

– Eu nasci.

– Oh… Uau – O anão assoviou. Ele sabia vagamente das leis dos lobisomens, portanto, não ia falar nada pra não dizer uma besteira.

            Atrás deles, o professor Gunnar vinha andando, calmamente, e quando se aproximou, colocou a grande mão direita sobre o ombro do aluno.

– Seu pai, garoto – O professor dizia –, ele foi um dos melhores. Era um invicto na modalidade solo das Ligas Inferiores. Fez seu início de carreira na modalidade juvenil e já demonstrava que tinha futuro. Nas Ligas Inferiores, ganhou sua alcunha: Uivo do Escuro, e depois disso, entrou para o time dos Andarilhos da Prata, era uma boa equipe. Ficou lá por um tempo, até que os Garras de Rubi, da Liga Superior, quiseram contratá-lo. Houve certo alvoroço, os Ossos de Gelo também o queriam, mas seu pai teria aceitado ser um Garra.

– Não fosse por mim… – Pedro disse baixinho.

– Ele se orgulhava de você, até onde eu sei – O professor apertou o ombro do aluno, num gesto de cumplicidade – Ele ainda foi professor de jovens caçadores da modalidade infantil.

            Pedro sorria, orgulhoso. Os lobisomens não tinham melancolia no que diz respeito a parentes mortos. Uther Uivo do Escuro Fenrirsson fora um herói. Era um bom aluno, tornou-se esportista, um caçador, e posteriormente, um pai. Sua esposa, Hilda Friggadóttir, era uma mulher excepcional. Quando ela morreu, vítima de um acidente de carro, Uther criou Pedro como pôde, até ser convocado para a constante guerra nos Ninhos. Lá, ele se sacrificara para salvar a vida de outro soldado, e usara um sinalizador para que os aviões pudessem soltar as bombas de fogo num ninho que já estavam liberando vários e vários mortos-vivos. Ele fora um herói, era o que importava. A mãe de Pedro fora uma mulher loba de honra, e isso era tudo o que importava.

            “Vão ter orgulho de mim”, pensou ele, suspirando satisfeito. Percebeu, então, que o professor chamava-o para as salas de equipamentos de treino, e o tour continuou.

            Na zona leste de Howlingtown, havia uma academia de artes marciais. Lá, Hugo Ossos de Pedra, um enorme ogro de quase seis metros de altura, estava treinando com adversários quase da mesma altura. Ele faria uma viagem dentro de semanas, para o circuito da Liga dos Lutadores, modalidade peso-pesado. Todos na academia praticavam, aqui e ali, e um a um foram em bora. Hugo permanecia ali, socando e esmurrando enormes sacos de areia, praticando seus socos e chutes.

            Para um desavisado, a barrigueira do enorme ogro parecia um problema para sua agilidade e velocidade, mas não importava muito: ogros têm tendência a terem pele muito grossa, quanto mais gordos forem. E Hugo era bem gordo. Usava sua enorme pança como uma vantagem, empurrando os oponentes para deixá-los tontos e, em seguida, agarrá-los pelos braços para bater com a cabeça. Era quase sua assinatura, e, mesmo previsível, funcionava.

            Enquanto Hugo mantinha sua rotina de socos e chutes no enorme saco de areia, não notou a presença de um espectador. Ele se escondia nas armações de ferro do teto, olhando para baixo num misto de ódio e nojo. Seus olhos, azuis como uma piscina limpa, mantinham-se concentrados em analisar a fisionomia do ogro. “Vai dar trabalho”, ele concluiu. Checou todas as suas armas: havia granadas de dispersão de gás, sim, isso era bom. Ele tinha pistolas, algumas estacas, duas facas trabalhadas em prata, afiadas com esmero. “Vai ter que servir”, ele pensou. Nunca ouvira falar das fraquezas dos ogros, se é que tinham. Eles tinham fama de serem burros, lentos, ou terem a mentalidade de crianças de seis anos. Mas o assassino sabia que seu inimigo não era burro. Além de bem esperto (para os padrões dos ogros), o que lhe garantiu um cargo de garoto propaganda em campanhas políticas e diplomáticas, ele era bem rápido.

            “Criatura imunda… É profana aos olhos do Senhor”, resmungou o assassino, em silêncio. Moveu-se sem fazer ruído algum pelas armações de ferro, enquanto ativava sua máscara. Ao fazer isso, seus fones de ouvido plugaram, e ele recebeu o sinal de uma chamada que, ao que parecia, estava insistindo em uma comunicação havia vários minutos.

– Crucificador, na escuta? – Chiou o sistema de rádio nos fones de ouvido.

– Na escuta, Oleiro – Respondeu ele, baixinho. “Crucificador, essa é boa…”

– Já está na área de ataque. Vê o alvo, não é?

– Afirmativo.

– Não se engane, não se deixe suar. Ogros têm um faro muito bom para suor de outras raças.

– Afirmativo, a roupa tem sistema de ventilação, além de absorção total de fluídos corporais.

– Sim, nós projetamos ela para ser a prova de falhas. Mas devemos ter cuidado com esse aí, nossos planos estão ainda no início, se apenas um deslize ocorrer…

– Tudo por água a baixo. Não vamos deixar isso acontecer.

– Nunca, nós vamos reconstruir a humanidade e pôr esses demônios em jaulas.

– E queimar todos eles, vivos.

– Ótimo. Prossiga com a missão, e não se esqueça da amostra, vamos precisar dela.

– Afirmativo, desligando.

            “Usar o poder deles contra eles, por que não?”, o assassino pensou, irônico. Desde que começaram a coisa toda, seu treinamento o levou ao limite. Componentes químicos alteraram sua taxa de musculatura, seu metabolismo, enxertos biomecânicos aumentaram suas capacidades físicas ao ponto de evoluírem para sua própria genética. Depois disso, amostras de sua medula foram retiradas, e agora, outros como ele esperavam, pacientemente, encubados, enquanto ele, agora apelidado de “Crucificador”, servia de cobaia viva. Nada mais justo, era uma missão divina do Senhor Jesus Cristo, e ele faria seu trabalho de limpeza na terra criada pelo único Deus.

            Ou assim pensava, é claro. A concepção do mundo real era toda deturpada para ele e para os seus, e, por isso, eles matavam inocentes. Mas de que importa se a mídia o chamava de assassino? De monstro? Nunca entenderiam sua missão, e no futuro, iriam agradecer de joelhos e implorar perdão ante o trono divino de Deus.

            “Primeiro essas aberrações do Inferno, depois os hereges que se aliaram a esses monstros”, ele pensou em seu mantra, o objetivo que estava marcado eternamente em sua mente.

            Quando percebeu que o ogro estava bebendo água, distraído, ele moveu-se como o vento, silencioso, encontrando um local para descer ao chão e se aproximar do inimigo. Pouco a pouco, como se fosse uma aranha de apenas quatro pernas, ele escalou pela parede, descendo. Certamente terem usado o DNA dos myrmekos em geral trouxe vantagens assustadoras para seu desempenho. E ele saberia usá-las muito bem.

            Ao tocar o chão, ficou parado uns instantes para ter certeza de que o inimigo não notara sua aproximação, e percebeu que o ogro farejava o ar.

– Quem está aí? – Trovejou Hugo. Ele sentira uma coisa estranha, uma queimação na nuca, como se algo ou alguém o estivesse olhando por trás há vários minutos. Depois, ele ouvira chiados, muito sutis, como se fossem o zumbido de mosquitos. Então, sentiu o cheiro de couro misturado a alguma coisa que ele não sabia o que era.

            O Crucificador parou, estático. Como aquele monstro havia sentido o cheiro de algo? Ele não estava suado, não havia sequer indícios de odores corporais. Mas, já que a furtividade tinha caído por terra, ele levantou-se e andou alguns passas para a luz.

            O ogro, é claro, ouviu os passos. Olhou para trás, um gigante olhando uma formiga insignificante.

– Ô garoto – Disse o ogro, jogando sua garrafa de água para o lado – O jardim de infância é pra lá, no centro – Ele apontou, vagamente, enquanto tirava a toalha de cima dos ombros largos.

            O Crucificador, é claro, nada respondeu. O reflexo vermelho-escuro das lentes ópticas em seu rosto tinham uma aparência ameaçadora, mas o ogro sequer deu atenção.

– Cê me ouviu? Ô, pulha, tô falando contigo. Cê tem problemas mentais, cara? – Zombou ele, se aproximando devagar.

– Vim aqui para te matar, demônio imundo – Respondeu o Crucificador, alto o suficiente para ser ouvido pelo enorme ogro.

– Ah, agora tô te reconhecendo… – Já bem perto, Hugo se abaixou até ficar cara a cara com o Crucificador, e, coçando o queixo, deu uma cusparada poderosa para o lado – Não sei se você tem alguma noção do que vai rolar aqui. Se é que você sabe, eu não vou morrer pra um baixinho Zé mané feito você. Pode ter conseguido matar três vampiros, um lobisomem, e alguns elfos, mas eu? Vai sonhando, bichinha.

– Você se curvará e irá implorar por misericórdia ao Senhor, fera imunda… – O Crucificador respondeu, sacando as facas.

– Oh, então quer mesmo continuar o showzinho? Ótimo, pivete de merda, vou arrancar o sorriso da tua cara, tenho certeza que tá sorrindo debaixo dessa máscara estúpida.

– Nisso você tem razão… – Ele respondeu, e partiu para o ataque sacando suas facas.

            Com movimentos rápidos, ele fazia cortes na pele de Hugo, que se movia, chutando, socando e até mesmo mordendo (como os ogros costumam fazer com inimigos, menores ou do mesmo tamanho). Mas era quase impossível acertar aquele ser insignificante: ele fugia, se esquivava, pulava de lado e dava saltos enormes. Foi num desses saltos que Hugo o acertou: como quem pega um mosquito com apenas uma mão, ele agarrou o Crucificador e o jogou de encontro a vários pesos de ferro, no canto direito extremo da sala. O impacto entortou vários dos ferros, pesos e barras de musculação que haviam ali, mas mal Hugo dera um passo naquela direção, e o assassino já vinha correndo pra cima dele.

– Quer mesmo fazer isso? Então bem-vindo ao inferno, seu merda! – O ogro gritou, correndo em direção ao inimigo.

            A luta agora se manteve com Hugo na vantagem. O arremesso de Hugo fora forte o suficiente para quebrar as facas do Crucificador, que tinha facas sobressalentes, mas de forjadura inferior. E agora ele mal abria cortes no couro grosso do ogro: as marcas que ele deixara nas longas pernas dele eram ridículas, rabiscos infantis de uma criança numa parede da casa dos pais. E Hugo não dava mais brechas, pois acertava chutes como quem chuta um cão e o manda para longe, deslizando no chão até parar. Além disso, o grande ogro tinha uma noção de quem era o inimigo: matar o desgraçado que estava assassinando os monstros lhe traria status de herói. Uma oportunidade única na vida dele, que ele não poderia perder.

            Conforme a luta prosseguia, vários cortes respingavam e derramavam sangue pela pele de Hugo, que ignorava tudo como se fossem apenas mordidas de moscas. O Crucificador, por outro lado, estava ficando impaciente, sua roupa estava levemente rasgada, e estava se cansando rapidamente a cada chute ou soco que o arremessava longe e o fazia voltar correndo. Ele julgou que seria uma luta fácil, mas não poderia vencer aquele monstro. Agora tinha noção disso, mas era tarde para voltar atrás no plano. Então, ele teria de improvisar.

– De todos os malditos que já mandei para o inferno na minha missão divina – Ele disse, em dado momento, enquanto ambos se estudavam e andavam em círculos –, você é o único que conseguiu resistir tanto tempo.

– Isso é um insulto aos comprades que morreram pelas suas patas sujas, seu moleque atrevido – Hugo resmungou – Mas obrigado por vir até aqui, e me dar a oportunidade de devorar sua cabeça vazia.

– Isso é o que veremos, monstro.

– Oh, acabaram as palavras religiosas ásperas, não é? Desiste e eu te mando pra cadeia, continua e eu vou cozinhar você em fogo brando pra minha janta de hoje.

            Irritado, o Crucificador usou uma granada de gás comum. Se não podia matá-lo, poderia, pelo menos, tirar uma amostra de seu DNA, e, ainda assim, encontrar uma solução para se vingar de tamanha humilhação. Quando a jogou, Hugo riu daquela atitude covarde, e deixou a fumaça subir. A névoa era uma aliada traiçoeira para ambos os lados: Hugo podia sentir o cheiro da carne dele, exposta em alguns pedaços daquela roupa esquisita. “Ele tem cheiro de humano, mas tem algo mais…”, ele resmungava, olhando ao redor e farejava, tossindo pela fumaça. Já o Crucificador tinha as lentes de leitura de calor, leitura sanguínea, entre outras no seu equipamento, e via a enorme forma do ogro se movendo devagar, se aproximando e farejando.

            “Vem, demônio…”, ele sussurrou. Não devia ter feito isso. Hugo ouviu, e correu naquela direção, urrando e rugindo só como um ogro do tamanho dele consegue. O ataque repentino pegou o Crucificador de surpresa, que só teve tempo suficiente para pegar um lenço especial num de seus bolsos e, esquivando-se de um soco com duas mãos que deveria tê-lo esmagado ao chão, “limpou” uma das feridas do ogro e conseguiu a amostra de sangue que precisava. Mas mal ele guardara o pano no bolso, e estava recebendo um soco de duas mãos que o arremessou para a esquerda, indo direto para os vestiários e chuveiros da acadêmia. Hugo já cantava vitória, esperando ter despedaçado o inimigo com o impacto do soco, somado ao impacto que ele deve ter sentido quando bateu nos obstáculos, quando uma luz forte brilhou no meio da poeira dos escombros: um feixe de laser, branco como ladrilhos de mármore, veio certeiro para o seu braço direito, num movimento rápido que cortou fora seu braço direito.

            Urrando de dor, Hugo correu na direção do banheiro: ele comeria o desgraçado ali mesmo, vivo ainda, mastigaria cada um de seus órgãos como se fossem balas de goma. Mas, quando chegou ao local, destruído e bagunçado, não havia ninguém ali. Uma janela aberta, com fiapos de roupa, eram as únicas pistas do assassino. O Crucificador deixou um único sobrevivente até agora.

            No grande estádio Crânio Vermelho, Gunnar Pés de Fogo estava guiando Pedro para a área de caça. Os outros alunos foram, um a um, deixados nas mãos de outros treinadores, cada um em uma modalidade: arquearia, esgrima, luta livre, forjadura, natação com combate e corrida furtiva. O lobisomem tinha um destino especial: os Garras de Rubi estavam treinando na arena de caça, e essa era uma surpresa que Gunnar havia preparado para o aluno. “Tenho certeza que ele vai gostar”, ele pensou, enquanto foi contando algumas histórias de circuitos de caça que ele assistiu quando criança.

            Quando lá chegaram, o time já estava treinando: as equipes de caçadores se dividiam em doze jogadores. Seis titulares, seis reservas. Para ser um caçador era preciso ser digno disso, e apenas os mais aptos entravam para o esporte. Por isso era um esporte considerado heróico, e até mesmo elitista: só os mais fortes dentre os fortes faziam parte do panteão dos esportistas, e havia poucos deles, pois viviam muito e raramente se aposentavam. O grande local de treinamento equivalia a uma pequena cidade: árvores mecânicas foram plantadas para formar o campo de caça, gramados longos com apenas algumas rochas, havia o perímetro urbano que acrescentava armadilhas ao desafio, dentre vários outros detalhes que deixaram Pedro extremamente interessado.

            Quando um dos caçadores do time percebeu a presença dos dois, chamou os outros com um uivo baixo. O homem, com mais ou menos 30 anos, era alto, quase 2,30 m de altura, cabelos louros e olhos castanhos como terra molhada. Era bem musculoso, e vestia uma bermuda de brim com uma camiseta de nylon vermelha, com motivos tribais em preto espalhados pelo peito e pelas costas. Estava descalço, a não ser por faixas pretas enroladas nos pés até a acima dos tornozelos. O mesmo se via nas mãos: até metade do antebraço, a mesma faixa preta enrolada.

– Professor Gunnar, eu suponho – Disse o lobisomem mais velho, apertando a mão do orc educadamente e sorrindo.

– Sim, eu mesmo, rapaz. E você, suponho, é o capitão do time, atualmente.

– Acertou na mosca, meu bom – Confirmou o lobisomem mais velho – Meu nome é Roberto, Roberto Fúria de Ouro. Me chamem de Rob, se quiserem.

– Prazer em conhecê-lo. Este aqui é o jovem Pedro Fenrirsson.

– Filho de Uther? O Uther?

– Ele mesmo – Confirmou Pedro, apertando a mão do atônito esportista.

            A essa altura, os outros integrantes do time já estavam circulando o professor e o aluno. Havia umas quatro garotas na equipe, e todos os outros eram homens, variando as alturas entre 1,80 m à 2,20 m, e as idades entre 28 e até mesmo 40 anos. Gunnar explicava que, durante uma partida de bola queimada, o rapaz (Pedro, é claro) demonstrara uma habilidade muito boa para o esporte. O time dos Garras de Rubi, é claro, ouvia tudo atentamente e com interesse. E confirmara que eles guardavam vagas para aqueles que se faziam dignos de estarem no time.

– Não é moleza – Disse Roberto – É um esporte pra lá de agressivo, eu mesmo tenho várias cicatrizes, e quase tive de ser castrado devido a um ferimento grave.

– Isso teria sido ótimo, para todas nós – Disse uma garota ruiva, pouco mais de vinte e dois anos: a mais jovem do time. As outras riram, e até mesmo dois dos outros lobisomens do time riram.

– Muito engraçada você, Aline – Roberto respondeu, rindo – Você é a nossa mais jovem, e graças a esse atrevimento, já sei o que vou fazer com você. Todos vocês, para o vestiário, já vou acompanhar vocês.

            Quando todos tinha saído, Roberto explicou como funcionava o sistema: o jovem que quisesse ter uma vaga, para o futuro ou mesmo para um filho, deveria vencer um dos membros do time numa partida solo de caça. O capitão deveria contar três horas para a partida, pois as caçadas podiam ser lentas e meticulosas, então, o tempo era padronizado, e havia casos de vitórias bem rápidas; ambos, capitão e professor, deveriam fazer uma avaliação da coisa toda. Já que Pedro estava descansado, eles teriam trinta minutos de descanso, o suficiente para o oponente dele. Ou a oponente: Roberto escolheu Aline Fogo Furioso, a garota mais jovem da equipe, titular, e até agora nunca perdera uma caçada (isso, é claro, numa carreira de dois anos, já era muita coisa num esporte tão competitivo).

            Quando os amigos de Pedro ficaram sabendo disso, vieram correndo para as arquibancadas da arena de caça, seguidos de treinadores atônitos com a notícia. Era um evento raro, e eles não perderiam isso por nada.

            Nos vestiários, Roberto ensinava que tipo de equipamento eles usavam: bermudas de brim, tecido resistente, com bolsos para apetrechos que poderiam ser usados para atrapalhar o inimigo. Uma bainha, presa a cintura, continha uma faca de ferro: era inofensiva para lobisomens, mas afiada, e servia para combate e recuperar o item da caçada (aqui fica claro a presença de elementos de “captura de bandeira”). Além disso, haviam as faixas de proteção para mãos e pés: era permitido usar a transformação, em todas as cinco formas, e as faixas era úteis para correr sem sentir desconfort e não soltavam, pois mudavam de tamanho e assentavam bem nos membros.

– Tá, beleza, mas… – Pedro interrompeu Roberto no meio da explicação sobre o equipamento – Se eu usar a forma lupina, vou ficar sem calça depois?

– Hahahahaha… – Roberto riu, já estava acostumado com a pergunta – Negativo, ela fica bem presa a sua cintura, sempre parece ridículo ver um lobo correndo e usando bermuda. Mas é realmente constrangedor voltar a forma humana sem roupas.

– Nem me fale…

– Ainda mais as fêmeas, são super protetoras com seus corpos.

– Nem me fale, de novo.

            Roberto riu do senso de humor do lobisomem mais jovem. Pedro, pelos padrões dos lobisomens, era ainda um adolescente, mas tinha maturidade o suficiente para saber como a vida de um licantropo era complicada. Já houve momentos em suas transformações em que ficara sem roupa alguma, e isso fora horrível. Hoje em dia ele sabia se controlar, mas era bom se precaver.

            Fora os equipamentos padrão, haviam os equipamentos legalizados pelo órgão de esportes internacionais dos monstros: arcos e flechas, kits médicos, espadas curtas, manoplas de combate corpo a corpo, e escudos pequenos. E, enquanto dizia isso, ele avisou a Pedro para esperar, e saiu correndo. Quando voltou, trazia consigo uma bainha com uma espada curta, de fio único, e ricamente trabalhada em ferro negro e veios vermelhos de rubi.

– Essa espada, se me lembro bem, seu pai deixou aqui. O técnico vai me matar se souber que mexi nela, mas me disse que, se algum dia, você passasse por aqui, eu deveria te entregar. Ou ele se conforma, ou me dá bronca, então, vai fazer os dois. Já tem uns 76 anos, aquele lobo velho e caduco – Roberto riu, e entregou a espada curta para Pedro.

            Ele puxou a arma da bainha: a espada era alguns centímetros menor que seu braço, a folha da lâmina larga e muito afiada. Lustrosa como se fosse obsidiana, possuía desenhos em vermelho ao longo da lâmina, como o movimento do vento.

– Meu pai deixou isso pra mim? – Ele sussurrou, admirando o trabalho.

– Sim, ele fez isso quando teve de recusar a oferta de entrar pro time. Na época, meu pai era o capitão antes de mim. Quando soube da história, fiquei surpreso de ele ter abandonado os esportes para ser pai, mas foi um ato corajoso.

– Fico te devendo essa, Roberto – Pedro olhou para cima, com um fogo nos olhos.

– Não esquenta. Mas, me faça um favor?

– Diga.

– Vença aquela metida da Aline.

            Passados os trinta minutos de descanso do time, Aline estava se arrumando, ao que Pedro podia supôr. Então, era hora. Escolheu uma bermuda que parecia ficar firme o suficiente em sua cintura, e presa aos joelhos com força. Moveu-se um pouco e não se incomodou com os elásticos apertados. Para os bolsos, escolheu bolinhas de explosão de fumaça, ampolas com sangue para distração, e facas pequenas de atirar, que guardou em bainhas pequenas. A espada ele pôs ao lado da cintura, e, sendo ele destro, teve de amarrá-la do lado esquerdo do corpo. Também escolheu um kit de primeiros socorros muito básico, e nele vinham incluídas pílulas de nutrientes: sua feitura era desconhecida para Pedro, mas ele sabia que elas eram usadas em esportes de longa duração, e elas podiam revitalizar um corpo que estivesse cansado por algum tempo.

            Enquanto ele estava amarrando as faixas, de cor cinzenta, ao redor dos tornozelos, Aline apareceu na porta do vestiário onde ele estava, já pronta para caçar: a mesma bermuda padronizada, com a diferença do emblema da equipe costurado num dos bolsos, uma peça de roupa superior pequena, de aparência elástica, para cobrir os seios. O cabelo ruivo estava preso num “rabo de lobo” atrás da cabeça (os lobisomens odiavam chamar o cabelo amarrado de “rabo de cavalo”, e por isso chamavam de “rabo de lobo”), e os olhos, cinzentos, faiscavam de ansiedade.

– Ei, novato.

– Não sou novato, sabe? – Pedro comentou, distraído, enquanto terminava de enrolar o tornozelo esquerdo.

– Pouco importa. Vim aqui te desejar boa sorte, vai precisar disso na enfermaria da Academia.

– Tá, que seja – Ele resmungou, desinteressado.

– Olha, essa sua atitude de “não ligo pros seus insultos” é bem infantil – Disse a loba ruiva, um pouco frustrada por seus insultos não terem surtido efeito.

– É? Que legal… – Respondeu o lobisomem, enquanto enfaixava a mão direita.

– Vem cá, você realmente acha que vai pegar uma vaga? – Agora Aline estava irritada, quase tão vermelha quanto seu cabelo cor de cobre – Seu professor pode ter te indicado para o treinador, por sorte ele tá de folga hoje e deixou a gente aqui. Ia ficar decepcionado ao ver o candidato.

– Eu não acho nada, fia – Pedro respondeu, dando de ombros enquanto começava a enfaixar a mão esquerda – Sinceramente, te desejo boa sorte, tanto faz. Lembro de você na escola, se é que você ficou lá por tempo suficiente pra eu reconhecer o seu cheiro.

– Atrevido você, viu? É, eu estudei na Academia Mãe Lua, e eu me lembro de você: badboy, briguento, metido a defensor dos mais fracos. Vamos ser honestos aqui: você quer cuidar do rabo de todo mundo, e evita cuidar do próprio. É por isso que nunca vai subir na vida, não dá atenção a si mesmo, vive pelos outros.

– Uau, tão analítica você. Se já terminou de tentar me intimidar, dirija-se para a arena. Lá podemos tirar isso a limpo, se você quiser. Ou podemos ficar discutindo aqui, feito duas mulherzinhas choronas, e você aí, fazendo birra, porque é incapaz de me insultar pra valer – Pedro disse, com um ar de desafio nos olhos e um sorriso atrevido.

– Você vai viver pra se arrepender disso – Retrucou Aline.

– Esse é o problema, fia: eu não me arrependo de nada – Desafiou o lobisomem, conseguindo que a oponente bufasse, exasperada, e saísse dali pisando duro no chão.

            Alguns minutos depois, Roberto veio ver se ele estava pronto.

– Vi Aline passar, quase com o cabelo pegando fogo. Ela veio te provocar, não é?

– Nah, nem esquenta. Tá tudo pronto na arena?

– Sim, só falta você, lobinho.

– Então, vamos caçar.

            Na Academia, as quatro garotas estavam no horário de almoço. As aulas da manhã haviam sido muito puxadas, sendo a primeira delas de informática. Línguas, essa aula dera dores de cabeça assustadoras em Ana, que tentava decorar os pronomes, os verbos, passado e futuro, da língua grega. Ela escolheu a grega por achar interessante o dialeto falado pelos antigos gregos e seus heróis, deuses e monstros. Mas descobriu que conjugar a palavra “vá para os corvos”, uma espécie de insulto ou maldição, era tão complicado quanto falar em russo. Havia a fonética, a pronuncia correta, para não mencionar a escrita em caracteres gregos.

            As últimas três aulas foram tranqüilas, ela teve aula de economia doméstica com uma orquisa enorme, Annete Risada Trovejante. O nome não era para menos: ela ria alto, se divertia com os erros, era otimista e nunca se deixava abalar por um fracasso. Com ela, Ana aprendeu a fazer receitas egípcias (a professora confidenciou à vulpe que eram as favoritas de “seu pretendente”, piscando com cumplicidade e deixando-a vermelha de vergonha), entre elas biscoitos e bolos. Suas amigas pareciam que estavam exaustas: saíram da aula de educação física, e o professor Maurice dera aulas de dança para elas, com a participação de uma companhia de gnomos sapateadores.

– Isso deve ter sido bem agitado – Ana comentou.

– Meus cascos vão cair se eu me mover muito – Judy gemeu, as pernas ainda meio bambas de tanto ficar dando pulinhos e bater os cascos no chão.

– Está exagerando, Judy – Elise retrucou, enquanto bebia seu suco de banana.

– Não tô, não. Se eles caírem, vou passar vergonha.

– Então quer dizer que esses cascos são sapatos e que você tem pés verdadeiros aí? – Vivi perguntou, por cima de seu sanduíche de sardinhas.

            As amigas riram, enquanto comiam e conversavam a respeito das aulas. Elas sentavam-se na mesa que, pela regra do meio estudantil, era território de Pedro e seus amigos. Mas, uma vez que elas agora eram parte daquela turma, tinham o direito de usar a mesa, mesmo que todos os rapazes estivessem ausentes. Isso deixou Ana curiosa.

– Vocês sabem onde estão os meninos?

– Ah – Vivi disse, interessada – Achei que nunca fosse perguntar. O professor Gunnar levou eles numa excursão. Lembra disso, não é?

– Lembro que o professor Gunnar, aquele orc gigante, pediu para anotar os nomes deles para um “projeto especial” ou qualquer coisa assim – Respondeu a vulpe, fazendo um gesto displicente com a mão.

– Bom, eu descobri o que era esse projeto: ele os levou ao ginásio esportivo do time de Caçadores da Liga de Caça Superior, os Garras de Rubi.

– Liga… Que? – Ana retrucou, confusa.

– Às vezes eu me esqueço que você vivia numa colônia reclusa – Comentou a felina – Bem, você deve saber que os monstros têm seus próprios esportes, não é?

– Claro, né? Não sou nenhuma burra.

– Eu sei, se fosse, não estaria indo tão bem nas matérias.

– Menos na informática, aquela coisinha miúda de cabelos rosados não dá trégua.

– Enfim, voltando ao assunto. A Liga Superior dos Caçadores é a classe alta do esporte de Caça, dos lobisomens.

– Isso é novidade. Eu sei que os lobisomens caçam pra se alimentar, isso é uma tradição.

– Sabemos que sabe disso – Judy disse, com um olhar malicioso – O Pedro te conta absolutamente tudo de lobisomens, não é?

– Lá vem você com essa conversa, sua ovelha maluca – Elise deu um tapa no braço da fauna.

– Foco – A felina exigiu silêncio das amigas – Em meados da década de 70, os lobisomens queriam criar um esporte que fosse adequado para eles. Futebol estava fora de questão, futebol americano, menos ainda. Qualquer esporte posterior não teve chance com eles. Então, criaram a Caçada: uma arena grande, do tamanho de uma cidade de quatro mil habitantes, misturada a uma pequena mata, funciona como arena. Duas equipes de seis caçadores podem se enfrentar, há regras que permitem equipes menores, ou até mesmo a modalidade solo. Um alvo vivo é liberado na arena, e os lobisomens têm de capturar o alvo, levá-lo de volta à sua base e esperar por vinte minutos.

– Ué, por que vinte minutos? Não seria melhor uma vitória imediata? – Ana perguntou.

– Bom, lobisomens são muito rápidos. As caçadas envolvem roubar o alvo do adversário, e, se o suposto perdedor “recuperar” o alvo antes de vinte minutos, ele pode levá-lo até o território dele. Mas o alvo só pode ser recuperado duas vezes por cada um dos caçadores, a terceira vez é derrota imediata.

– Ah, parece legal. Deve ter adrenalina demais.

– E tem, pois os mais famosos esportistas da Caçada tem várias cicatrizes de combate.

– Imagino, as dentadas que eles devem dar pra derrubar os inimigos.

– Não só isso – Judy entrou na conversa novamente – São permitidas armas brancas, como facas, espadas curtas, lanças, até mesmo armadilhas, para impedir o inimigo de chegar perto.

– Usam também kits médicos – Elise ajuntou –, caso um companheiro de equipe fique MUITO ferido. Mortes causam desclassificação permanente da equipe que causou o ocorrido, além de banimento da liga. É raríssimo, mas já aconteceu.

– Caraca, que bizarro – Disse a vulpe.

– Aqui, vou te mostrar uma partida – Disse Judy, fuçando em seu celular para achar um vídeo, quando ela engasgou de susto, quase deixando seu celular cair ao chão. Ela estava tremendo de ansiedade, os cacos batendo levemente no assoalho.

– O que aconteceu? – Perguntou Ana, muito preocupada com a reação repentina da fauna.

– O assassino, ele atacou de novo.

– Tá falando sério? – Perguntou Vivi, correndo para o lado da amiga.

– Sim, os repórteres estão lá agora, falando com o sobrevivente.

            Todas foram para o lado de Judy, e Ana estava tremendo de medo. “O sobrevivente… E se o tal assassino pegou os rapazes e só deixou um deles vivo…? Que seja o Pedro, por favor…”, ela pensou, agitada. Censurou-se em seguida por pensar uma coisa dessas. Seus medos, afinal, também foram infundados: Judy nem explicara onde era , o local do acontecimento, mas quando ela leu a matéria para as outras, viu que se tratava de uma acadêmia de artes marciais, e o tal sobrevivente era Hugo Ossos de Pedra, um ogro gigante. Nas fotos, havia cortes pequenos na sua pele morena como couro curtido, e lhe faltava o braço direito.

            As informações diziam que uma passagem no teto fora arrombada, tendo seu cadeado destruído por um laser. Depois, as investigações constataram que as passagens de ar estavam entortadas devido ao peso de alguém que andou por dentro delas. E o cenário da batalha não deixava dúvidas: Hugo teria sido a próxima vítima, não fosse pela fúria que os ogros detém num combate. Isso salvou sua vida, é claro.

– Aqui ele dá uma descrição dele, do assassino – Judy disse, para as amigas curiosas, que olhavam por cima de seus ombros e cachos brancos – Ele media pelo menos 1,85 m de altura, a roupa era preta e fosca, parecia pesar algo entre 80 kg e 90 kg, não mais do que isso. Era bem rápido…

– … E ele se movia pra lá e pra cá, feito a porra de um grilo – Hugo respondia às perguntas da jovem repórter – Admito, o cara era bom. Sabia lutar, mas achou que aquele ditado besta de “quanto maior é, maior a queda” valia pra mim também. Palhaço, e de quebra ele arrancou meu braço. Ainda bem que vou usar uma prótese óssea e uma cobertura de silicone e couro pra substituir!

– Muito obrigada pelas declarações, Senhor Hugo – Respondeu a repórter, sorridente.

– Às ordens, madame. Mas, eu tenho um recado para o assassino – Respondeu o ogro, que agarrou o microfone delicadamente e olhou para a câmera, com tamanho ódio que ela tremeu por causa do medo do cinegrafista – Se você, seu pulha de merda, assassino escroto, estiver vendo isso, fique sabendo: seus dias estão contados. Mais dia, menos dia. E vai ter sorte se não for eu a te pegar – E devolveu o microfone.

            Próximo de sua ambulância, onde seus cortes recebiam tratamento, e o cotoco de seu braço era medido para a tal prótese, a polícia investigava tudo. Roy e Dexter estavam circulando pelo local, conversando a respeito das novas evidências. John Loyd Watson, o investigador, estava no local da fuga do assassino. Ele farejava o ar ali, sentia o cheiro de muitos lutadores. “Esse maldito cheiro de suor de diferentes criaturas me entope as narinas…”, ele reclamou, fungando e espirrando, enquanto olhava aqui e ali. Verificou seu bolso, e tirou o saco plástico onde haviam as amostras de tecido: com certeza, era a mesma roupa de antes, a que se dissolvia com produtos químicos e luzes para identificação. “Não vai escapar dessa vez, meu rapaz”, pensou o investigador. Ele era ótimo com química, saberia identificar os compostos químicos que foram usados para destruir as primeiras amostras, e sabia quais usar para não causar a mesma ração.

            Enquanto meditava as novas informações, organizou o que já sabiam a respeito. A altura dele agora era uma certeza: 1,85 m. Os humanos tinham tendência de serem assustadoramente desorganizados em sua genética, nunca tendo uma altura média. Mas um metro e oitenta e cinco centímetros era fácil de identificar. O peso poderia não ser tão importante, mas dava dicas de como ele poderia ser tão forte. Seus equipamentos agora revelavam também armas a laser: tanto para arrombamento quanto para execução. Não era o estilo dele usar uma morte rápida, ele era um assassino serial e seu ego o impedia de causar danos mínimos ao inimigo. Ele era compelido a causar sofrimento, e portanto, aquela arma era um recurso de fuga, desesperado que estava para escapar com vida.

– Eu te devo uma, Hugo – John sussurrou, satisfeito de que o ogro sobrevivera. Seus pensamentos, no entanto, foram interrompidos por um dos policiais a serviço do caso: Alejandro. Ele vinha correndo, pulando aqui e ali para esquivar dos destroços de pedras, ferros, e cuecas destruídas do vestiário.

– Chefe! Ei chefe! – Ele chamava.

– Policial Alejandro – John respondeu, sem se virar – Já lhe pedi para não me chamar assim, por favor.

– Ok, desculpa, chefe – Alejandro desculpou-se. John suspirou, resignado.

– Enfim, alguma coisa a reportar?

– Sim. O Michael tava fuçando nossos bancos de dados, inserindo as novas informações, e descobriu uma coisa.

– O que? – John virou-se, prestando total atenção.

– Como ele é ótimo com computadores, sabe identificar um hacker quando vê. Um sistema de invasão de computadores andou roubando informações.

– Está falando sério? Temos uma brecha na segurança de arquivos? – Perguntou o investigador, assustado.

– Aparentemente, mas não tem cara de ser tão grave.

– O que quer dizer com “não tem cara de ser tão grave”?

– Veja você mesmo, chefe – Alejandro entregou algumas folhas impressas para John.

            O lobisomem investigador pegou os papéis, e foi olhando cada folha, detalhadamente, rindo de incredulidade. Aquilo parecia absurdo, mas aconteceu: hackers invadiram o sistema, recolheram todas as informações que a polícia possuía sobre os casos de assassinato, e, ao que tudo indicava, não havia colocado nenhum vírus que prejudicasse os computadores e softwares da polícia.

– Isso é espantoso… O tal hacker é apenas um aluno… – Sussurrou John.

– Ao que parece, chefe – Respondeu Alejandro – Acha que devemos tomar providências?

– Não, não. Vamos supor, apenas supor, que são só garotos querendo um pouco de emoção. Se esses estudantes podem fazer o que não podemos, deixemos que continuem.

– Vai pôr eles pra trabalhar de graça?

– Precisamente, mas não exatamente: o pagamento deles vai ser não irem pra cadeia.

– Ah… Isso parece justo. Afinal, invasão digital, roubo de informações, invasão dos arquivos da polícia, uso não autorizado de programas digitais clandestinos…

– Para não mencionar em envolvimento não autorizado de investigação policial de alto risco. Eu vou acompanhar pessoalmente o progresso desse tal “Clímax do Mar”, não diga nada ao Dexter e ao Roy, e peça que Michael fique de bico fechado.

– Pode deixar, chefe! – E Alejandro saiu correndo para contar as novidades ao amigo.

            John Loyd Watson, investigador criminal, detetive, lobisomem, um dos melhores membros da força policial de Howlingtown, fora passado para trás por um ou mais garotos de uma escola. Isso era novidade, mas, quem sabe, não traia alguma ajuda?

            Na arena esportiva, Pedro e Aline estavam posicionados em pontos opostos da “zona florestal”, prontos para iniciar a caçada. Os amigos dele estavam na arquibancada, pois quando souberam que o amigo faria um teste de admissão, ou teste de liberação de vaga, ou o que quer que fosse, saíram correndo de onde estavam com os outros treinadores e foram até o local assistir a coisa toda. Os treinadores, surpresos, correram atrás deles. Era um evento e tanto, não que fosse raro, mas não era tão freqüente a ponto de ser banal. Uma oportunidade de ver dois lobisomens se engalfinhando por esporte era algo sempre bem-vindo de se ver.

            Na extremidade oposta das arquibancadas, tão longe que mal se podiam ver não fosse pela cor vermelha, estava a equipe dos Garras de Rubi. Eles estavam olhando Aline de seu lado, e os amigos de Pedro o viam do lado deles. Gunnar e Roberto estavam mais para o alto, no palanque dos juízes, para avaliar cada movimento da caçada. Eles conversavam, anotavam algumas coisas, e iam acertando os detalhes.

            Pedro estava sentado num enorme toco de madeira sintética. Era quase uma réplica perfeita de madeira, mas, é claro, era tudo obra da tecnologia mais avançada: máquinas capazes de simular madeira, o crescimento dela, as estações, tudo para tornar a caçada ainda mais real. O teto da arena era aberto nessa parte, protegendo apenas as arquibancadas: chuva durante a caçada aumentava o desafio.

            Aline estava na outra ponta da zona florestal, revisando todo o seu equipamento, se alongando e olhando pela mata, tentando descobrir de que direção ele viria. Ela supunha que, como um macho, seu oponente tentaria neutralizá-la antes de ir atrás do alvo. O alvo, por sua vez, era uma máquina biomecânica, com a habilidade incomum de se reconfigurar e mudar de forma, para poder escapar: era sempre um animal de porte médio, e, em casos de as regras serem mais rigorosas, animais maiores e agressivos. O alvo móvel viria na forma de um coelho primeiro, depois mudaria para um faisão, então poderia se esconder nas árvores como um macaco ou fugir pelo riacho como um grande peixe. As possibilidades eram várias, e ela estava acostumada a todas elas. Seria sua vantagem: saber os padrões de treinamento. E, quando o novato viesse pra cima dela, faria ele em pedaços.

            O que ela não sabia, é claro, é que Pedro não estava louco de vontade de um combate físico direto. Ele conhecia as regras de combate, então, sua estratégia seria distrair a inimiga com as ampolas de sangue e as bolinhas de fumaça, tentaria amarrá-la depois de um combate, caso chegasse a tanto. Uma vez localizado o alvo, usaria as facas de arremesso. “É, isso vai ter de servir”, ele resmungou.

– Competidores! Cinco minutos para o tiro de largada! – Roberto anunciou do alto do palanque – Dirijam-se às suas posições de saída, o ponto onde escolherem será demarcado com um círculo de luz. Aline, dos Garras de Rubi será vermelho. Pedro, da Acadêmia Mãe Lua, será negro.

            Ao ouvir o aviso, Pedro escolheu uma área entre duas grandes árvores que simulavam carvalhos: ele gostava dos carvalhos, árvores sagradas em várias culturas. Aline foi até uma grande rocha, plana, que era quase como um trono.

– Ei, Roberto! – Pedro gritou, do meio do mato – Posso pedir uma coisa?

            Gunnar e Roberto se entreolharam. Então, o capitão do time respondeu:

– Claro, desde que não seja nenhuma vantagem…

– Negativo! Só queria pedir que tivesse trilha sonora!

            O pedido deixou todos os presentes desconcertados. Seria permitido algo assim? Gunnar deu de ombros e sacou seu pendrive. Roberto deu de ombros, não iria interferir em nada, mas deixaria as coisas mais emocionantes. Então, os bipes começaram a soar.

– 10… 9… 8… 7…

– VAI LÁ PEDRÃO! PEGA ELA PEDROOO! ACABA COM ESSA LOUCA PREDU! – gritavam seus amigos, torcendo.

– 4… 3… 2…

            Soou o bip de largada. A primeira música que tocava nos alto-falantes era The way of Vikings, da banda Amon Amarth. Pedro gostou do ritmo, e acompanhou a corrida que fazia seguindo as batidas da música. A essa altura, o alvo deveria estar em movimento. Pelo que sabia, deveria tomar a forma de um animal de porte médio, talvez um coelho. E enquanto corria, o jovem lobisomem se abaixava, olhava o chão, as folhas, tentava farejar o bicho falso. Com efeito, achou rastros e os seguiu, decidido. Ele pulava de árvore em árvore, fazendo acrobacias e usando todo o vigor de sua raça. Quando chegou ao lugar onde o falso bicho estava, viu que era um coelho: grande, gordo, de pêlo castanho claro e o rosto bobo e alheio ao mundo. Mastigava frutas falsas que estavam espalhadas pelo chão.

            “Será que a tecnologia foi longe demais?”, ele pensou, ironizando os avanços tecnológicos que podiam criar um coelho falso, “mas eram incapazes de fazer um celular que tivesse uma bateria que durasse o dia inteiro”. Lentamente, ele sacou uma das facas de arremesso que tinha nas bainhas pequenas de couro. Mirou, cuidadosamente, e jogou-a na direção que o coelho correria, obrigando-o a correr na direção inversa e dando a oportunidade para Pedro pegá-lo de frente. Quando fez o arremesso, o plano deu certo, mas só até a parte em que devia pular na frente do coelho. Pois quando saltou ao chão, para interceptar o alvo, alguma coisa pesada e rápida se arremessou contra ele, jogando-o no chão com um baque abafado.

            Era Aline. Ela seguira o cheiro característico do alvo, e quando viu que Pedro ia pegá-lo, logo de primeira, não perdeu tempo. Num salto poderoso, com os braços para frente, agarrou o tronco do oponente e arremessou os dois ao chão. E, no chão, ela desferia socos no inimigo, que se defendia e tentava chutá-la com os joelhos. “Mas que diabos! Ruiva louca!”, ele pensou, irritado. Vendo que suas tentativas de chutes eram frustradas, analisou rapidamente a situação, enquanto tentava segurar os punhos da rival: as pernas dela estavam posicionadas em cima de sua cintura, prendendo-o ao chão. “Se é isso que ela quer, que seja”, ele pensou, num dar de ombros mental. Contraiu o corpo para trás, o máximo que pôde, com o corpo pressionado ao chão, e então o impulsionou para cima, dando uma estocada no corpo de Aline. Ela foi arremessada para cima o suficiente para que Pedro rolasse de lado no chão, se levantasse e se pusesse em posição de combate.

            Quando Aline voltou a si novamente, sentia uma forte dor na virilha. “Caraca… Como ele conseguiu? Ou melhor, como pôde?”, ela pensou, irritada. Mas ainda podia lutar. E se pôs na posição de luta: box tailandês.

            Isso pareceu irritar Pedro.

– Você tá falando sério…? – Ele resmungou.

– Do que você tá falando?

– Esquece. Cai dentro.

            E ela foi. Começou a primeira luta com um chute de frente, tentando empurrar Pedro para trás. Ele segurou o pé dela e agarrou a perna da garota. Ela ainda tentou se livrar, mas foi em vão: ele já estava girando. Começou a girar nos próprios pés e ergueu a garota loba no ar, e quando conseguiu, agarrou o outro pé dela. Depois de girar o suficiente, jogou o corpo dela na direção da árvore mais sólida que conseguiu enxergar no borrão rodopiante de sua visão. Levou alguns segundos para que pudesse parar de girar a visão, mas o ataque deu certo: Aline estava estatelada no chão, gemendo de dor. Ela iria se recuperar rápido, então, o jeito era continuar seguindo o coelho.

            Seguindo os rastros e deixando Aline com suas dores, o lobisomem agora estourava, vez ou outra, uma das ampolas de sangue. Espalhou os chamarizes muito distantes uns dos outros, para dar tempo de fugir. Nos alto-falantes, a voz Rob Halford e o ritmo de Judas Priest tocavam Halls of Valhalla, e Pedro ia correndo, seguindo os rastros do que agora pareciam ser um porco pequeno. “Essa merda muda de forma?”, ele se perguntou, surpreso pela novidade.

            Próximo de onde o riacho ficava próximo da entrada da zona urbana de caça, ele achou novamente o alvo: agora era um porquinho, que ficava grunhindo e fuçando o chão. Não fosse o fato de que era uma biomáquina, Pedro teria achado a coisa meio fofa. Enquanto se movia para se esconder e observar o padrão do porco, o bicho se virava e fuçava, aqui e ali, tentando encontrar trufas. “Mesmo máquinas, esses babacas só pensam em trufas…”, ele riu, sabendo que porcos eram usados como rastreadores desse estranho fungo, que era uma iguaria culinária.

            Quando estava pronto para saltar em cima do porquinho, que chegou perto o bastante, Aline o atacou de novo: ela sabia identificar o cheiro de suor de um lobisomem, mesmo que o sangue a tenha atrasado um pouco. Mas, ainda assim, ela achou a trilha dele rapidamente. Estava farta dos joguinhos do rapaz, e usava 25% da forma de lobisomem.

            Pedro se deu conta dela rápido o suficiente para se esquivar se um soco. Ele se virou, e viu a adversária, estudando os movimentos dela.

– Garota, cê tá precisando depilar as sobrancelhas – Ele provocou.

– Eu vou te dar um serviço de castração em poucos segundos.

– Olha, se quer tanto mais daquela estocada, é só pedir – Ele provocou de novo.

            Aline urrou de ódio, e partiu para a nova luta. Agora Pedro se via obrigado a se transformar um pouco também: 25%. Sua massa muscular aumentou, o corpo coberto por pêlos negros no peito, nos braços, e pernas. A cauda balançava para lá e para cá, enquanto ambos se estudavam. Dessa vez, no entanto, foi Pedro quem deu o primeiro ataque: rápido, uma sequência de socos combinada com “tapas”, que eram basicamente o movimento de rasgar das garras, com as mãos abertas. Aline se defendia como podia, e os cortes que ganhava logo cicatrizavam. Ela desferia chutes, que Pedro defendia com ambos os braços, e devolvia num soco. Após minutos assim, os caçadores se separaram e ficaram olhando um para o outro, se estudando. Pedro olhou para o lado só um segundo, e reparou que o porco ainda estava ali, olhando os dois.

            “Tá falando sério que esse mané ficou aí?”, ele pensou, e foi arremessado para trás, sob o peso do corpo de Aline impulsionado para frente. De novo, ela tentava pressionar o lobisomem ao chão usando as pernas, e fez questão de segurar os braços dele no limite de sua cintura. Sem poder defender o rosto, ela socava o rapaz, mas não deu certo por muito tempo. Certa vez, Pedro lera uma edição de Conan, o bárbaro, e lá, ele vira que, se havia um meio eficaz de impedir um inimigo de ferir seu rosto, caso seus membros não possam, a resposta era: usar a boca. E foi o que ele fez, enquanto Aline dava mais um soco: ele mordeu a mão dela, cravando os dentes afiados e pontudos na carne da garota. Ela gritou surpresa e cheia de dor e ódio, enquanto ele rosnava e mastigava, desafiando-a com seus olhos amarelos e atrevidos. Aline foi forçada a soltar o corpo dele, que agora se debatia, mas ele não soltou a mão dela: continuou mordendo até fazê-la choramingar e se ajoelhar.

            Quando ela se pôs de joelho, Pedro chutou seu estômago como se chutasse uma enorme bola de futebol, e ela voou para longe. E ainda estavam sendo observados pelo porco. Pedro virou-se, pronto para pular no porco, mas ouviu um uivo agudo e profundo. Quando virou na direção do uivo, Aline já havia usado a forma completa de lobisomem: forçada a usar a transformação para curar os ossos quebrados e a mão ferida, ela agora contava com dois metros e meio de altura, uma pelagem ruiva e castanha no corpo musculoso, e ainda assim delicado e curvilíneo de uma fêmea. Os olhos, amarelos, piscavam uma luz de fúria. Os dentes afiados pingavam de saliva.

            Ela partiu para novo combate, deixando Pedro assustado de surpresa. Mas não deu muito tempo de se baterem: ele rebatia os ataques dela da melhor forma que podia, pois o peso dela também aumentara. Ele já estava contundido e cheio de cortes, levaria um tempo para se curar. Teria de apelar para uma jogada suja. Esperou ela tentar um soco com duas mãos, e, quando ela desferiu o golpe, ele pulou nas costas dela, rosnando e arranhando. Enquanto Aline tentava retirar o carona inesperado de suas costas, ele mordia e cortava, até conseguir o que queria: arrancar a peça de roupa superior dela.

            Quando pulou para trás, levou algum tempo até a garota loba entender o que ele fizera. Depois, tentou recuperar a peça, mesmo rasgada, e ele a jogou no rio. O porco agora mudava de forma para uma ave: era média, de um marrom desinteressante. Pedro já estava indo atrás da ave, e Aline, em sua mente de loba, tentava decidir-se se corria atrás do maldito macho que lhe arrancara a roupa, ou se tentava recuperar a peça de roupa para poder cobrir-se quando voltasse à forma humana. O pudor, é claro, falou mais alto. “Eu volto pra te arrebentar”, ela rosnou, e correu na direção oposta.

            Nas arquibancadas, a coisa toda era vista do alto e por telões. Os amigos de Pedro gritavam sua torcida, mais alto que a música que o professor Gunnar tocava. Roberto sorria e anotava os pontos positivos das estratégias de Pedro, analisava cada erro, e comentava suas opiniões com Gunnar. A equipe dos Garras, é claro, também torcia, e ficou rindo de surpresa quando o desafiante arrancou de sua colega a roupa. Uma estratégia inusitada dessas nunca fora tentada, não havia regras de penalidade, e, afinal, constava que era válido impossibilitar o inimigo “de qualquer forma que não o matasse”, portanto, anotaram a jogada para partidas futuras.

            Lincoln, inquieto em seu acento, ficava esfregando o queixo com preocupação.

– O que te preocupa, rapaz? – Perguntou o instrutor de arquearia, Terrence Hawkins, elfo de 2000 anos de idade.

– É só que… Eu sempre vi meu amigo se transformar em 25% lobo, sabe? Até mesmo a forma lupina, mas ele poderia ter usado a forma completa também.

– Pra não mencionar o lobo gigante – Acrescentou Igor.

– Entendo… – Respondeu o instrutor élfico – Seu amigo, provavelmente, ainda não despertou os sentimentos ligados às duas transformações restantes.

– Como assim? – Capivara perguntou – Isso pode prejudicar ele ou coisa do tipo?

– Não, de forma alguma – Quem respondeu fora o instrutor de combate, Joshua Presas de Ferro, ogro com quatro metros e meio de altura – É como se fosse uma puberdade, entendem? Se ele ainda não descobriu os sentimentos que agem como gatilho para as outras duas formas, então, é só ter paciência.

– É – Encorajou Terrence – Quem sabe ele não as descobre aqui mesmo? – o instrutor afagou o bigodinho louro dele, entusiasmado com a possibilidade.

            Os amigos se entreolharam, confusos. Nunca antes tinham ouvido falar numa coisa assim. Sabiam que Samuel podia se transformar quando bem entendia, em cinco formas, que variavam da humana, meio humana e meio rato, e rato completo, com duas intermediárias que eram úteis pelas habilidades de ambos os estados do corpo. Os lobisomens funcionavam como qualquer transmorfo, podiam mudar de forma. Mas não sabiam que eles eram guiados pelas emoções. O que sabiam, de fato, é que lobisomens eram extremamente passionais, se deixavam levar pelos sentimentos: raiva, fome, luxuria, ódio, alegria, coragem, etc. Só não tinham idéia de que isso estava ligado às transformações como um fator de crescimento ou psicológico.

            Na arena, Pedro corria atrás da ave. “Parece uma galinha feia”, ele pensava, enquanto pulava nas árvores e ia escalando os galhos e correndo, tomando o cuidado para não quebrar nenhum galho muito fino e cair de cara no chão. Nem sinal de Aline o seguindo, isso lhe deu mais confiança. Sua estratégia, por mais absurda que tivesse sido, dera certo. Mas, caso ela o pegasse de novo, seria cruel a vingança. Enquanto corria pelos galhos, a ave decidiu pousar num arbusto baixo, para bicar algumas frutas ali. E Pedro desceu dos galhos, se aproximando devagar da ave.

– Vem cá, vem, sua galinha metida a pavão feio… – Ele chamou a ave falsa, imaginando que podia atrair o pássaro. O que o surpreendeu foi que conseguiu: quanto mais chamava, mais a ave o olhava, e mais ela se aproximava.

– Só pode ser zoeira… – Pedro constatou, quando a ave, gorda e de penas marrons, deu um salto, batendo as asas, e o fez segurá-la nos braços – Isso deve ser algum sistema na programação do bicho, ou eu devo ter jeito com animais.

– É a programação, seu depravado – Aline disse às suas costas.

– Ah, e aí, já tá vestida? Posso me virar? – Pedro respondeu, rindo, sem se virar.

– Você é louco, foi louco por ter me arrancado a roupa, e agora vai pagar caro pelo que fez.

– É só mandar pelo correio, fia: pago o preço daquela blusinha esquisita, e ainda te mando um sutiã de brinde.

            Aline uivou de ódio, e estava realmente cansada daquele cara. Sem pensar em mais nada, apenas na sua raiva, rasgou a peça de roupa do corpo, que já estava meio rasgada, e rasgou também a bermuda: isso poderia contar como penalidade para ela, mas Aline não se importou nem um pouco. Transformou-se novamente na forma de lobisomem, completamente nua, e uivava de raiva. Pedro virou-se, como se só agora tivesse notado o perigo que estava apenas há dez metros de distância.

– Se esconde em algum canto, frango – Ele disse, empurrando o faisão para longe, e o bicho obedeceu à ordem – Agora o tio tem que enfiar a porrada em alguém.

            Aline avançou, correndo nas quatro patas: uma das muitas vantagens da forma de lobisomem era a anatomia que permitia tal forma de movimentação. Pedro usou a forma de 25% novamente, e se atracou com ela quando ela se aproximou, desferindo dentadas nas partes baixas, logo nas pernas. Ele se esquivava, dava socos para baixo, enquanto ela tentava lhe agarrar as canelas para jogá-lo longe. E conseguiu: numa mordida rápida, prendeu a perna esquerda de Pedro feito uma armadilha de urso, e balançou o corpo dele antes de jogá-lo numa pedra grande próxima dali. Ele se levantou rapidamente, sentindo seu corpo se curando. Mas ele precisava de mais. Como ainda estava com sua bermuda, tateou pelos bolsos até achar as pílulas. Botou todas elas na boca, num impulso imprudente, e em questão de segundos, estava tremendo.

            Como uma overdose de açúcar numa criança, ele sentia o corpo tinir com eletricidade, mal podendo falar. E quando se deu conta, já estava lutando novamente com Aline. Ela dava golpes com as garras, chutes, e socos, que ele defendia e logo em seguida rasgava a carne da garota, abrindo talhos no pêlo ruivo. Chegou até a dar socos nos seios dela, escondidos pela pelagem curta e espessa. O olhar de surpresa e dor no rosto dela não tinha preço para Pedro, que aproveitou isso para agarrar as pernas dela. Nada de rodopiar dessa vez, não: ele tinha algo mais pesado em mente. Derrubou o corpo de Aline ao chão, que se debatia para levantar, virou-se lentamente, e impulsionou o corpo dela para cima, feito uma roupa molhada, num arco acima da cabeça dele, e bateu-a contra o chão.

            O impacto foi seguido de um estremecimento no chão, e Aline respirava com dificuldade pelas costelas quebradas. Ela se arrastou ofegante, se encolhendo de encontro a uma enorme pedra, ganindo assustada. Quem era aquele cara? Louco, atrevido, agressivo, ele não tinha piedade alguma numa luta. Pedro se aproximou, devagar, e ela rosnava de medo numa advertência vazia.

            Pedro urrou e rosnou na cara dela, forçando-a a se encolher de novo, tentando se proteger. Graças à fraqueza de seu corpo, o vigor gasto para recuperar as costelas, Aline foi lentamente se transformando na forma humana, encolhida, suja de sangue, folhas, terra, totalmente nua. Mas o lobisomem já estava indo atrás de seu prêmio. O faisão voltou para seus braços, obediente, seguindo a programação biomecânica. Em seguida, Pedro correu de volta para seu território, seguindo os rastros de destruição e a luz negra que brilhava, como um reflexo de obsidiana. “Uma pena, nem tive chance de usar a espada”, pensou ele, desapontado. Aquele presente de seu pai teria sido lindo de se ver em combate, mas haveria mais oportunidades. Quando chegou ao local, pôs o “frango feio” no círculo entre os carvalhos, e esperou os vinte minutos.

            O tempo terminara. Pedro vencera a partida.

            No vestiário, Pedro estava se vestindo novamente, e ouvindo as análises de Roberto e Gunnar. Ambos estavam extasiados pelo desempenho do rapaz, que demonstrara coragem, astucia, ousadia e grande habilidade de adaptação. Ele recusou a oferta de treinamento especializado, mas pediu que uma vaga ficasse aberta no nome “Fenrirsson”, dizendo que, num futuro, quem sabe, um filho dele pudesse estar ali, entre os Garras.

            Roberto sorriu com a declaração. “Saiu ao pai dele… Impressionante”, ele concluiu, enquanto todos estavam no refeitório, para manter a alimentação pesada balanceada. Pedro, é claro, comeu quase o dobro do que normalmente come, faminto como estava depois de ter se movido tanto, e gasto tanta energia. Além disso, as pílulas o deixaram completamente vazio, pois gastaram toda a gordura que ele tinha. Em questão de minutos, no entanto, enquanto comia, ele já estava melhor. A exceção de Aline, todos do time dos Garras estava no refeitório, além dos amigos de Pedro e dos outros instrutores. A comida era boa, mas, segundo o paladar de Pedro, era “mecânica demais”, coisa do tipo receita básica de um homem solteiro que come coisas fáceis de cozinhar. Os caçadores, é claro, riram, e lhe ofereceram mais frango frito, que ele aceitou sem reclamar.

            Uma hora depois, estavam prontos para partir, os Garras se despediam dos alunos, assim como os instrutores: o dia de treino deles terminara. Voltariam para suas casas, cada um deles. E o professor Gunnar ia registrar os feitos de seus alunos como nota extracurricular. Ele embarcava os alunos no furgão, quando Capivara olhou para trás e avisou Pedro (que vinha logo atrás dele), de que alguém queria se despedir.

– Que? – Perguntou o lobisomem.

– Veja você mesmo – Disse o amigo orc, sorrindo e entrou no furgão.

            Lá vinha ela: Aline Fogo Furioso. A expressão no rosto era de apatia, quase de dar dó. A derrota que ela sofrera foi humilhante, destruindo o orgulho que ela conquistou com apenas dois anos de carreira como caçadora. Afinal, ser derrotada por um cara que mal saíra de um treinamento básico era de doer a alma para ela. Mas, como toda boa esportista, sabia reconhecer onde errara, e ela queria corrigir o erro.

– Ei, lobo –Echamou, chegando a três metros dele.

– Ei, o que manda…? – Pedro perguntou, desconfiado, enfiando as mãos nos bolsos do colete jeans.

– Eu queria pedir desculpas…

– Queria? Não quer mais? E desculpas pelo quê? – Ele sempre provocava as pessoas usando o vocabulário, os amigos dele consideravam que era um erro da existência terem permitido que ele aprendesse gramática, e não era de confiar que outras pessoas se arrependiam tão depressa.

– Você sabe… Por eu ter te provocado.

– Ahn… Sei, tá. Cê tá se desculpando por que não quer levar outra surra? – Ele apertou os lábios, erguendo a sobrancelha direita, cético.

– Bom, sim, não… Eu irritei você, duvidei que você era capaz. Sei lá, intimidação costuma funcionar com fracos. E eu pensei que você fosse um fraco. Nunca vi ninguém lutar como você, além de trapacear como você.

– Minha filha, eu uso a lógica dos videogames: se tá no jogo, é pra usar – Pedro se referia a jogos de tiro em primeira pessoa, os FPS (sigla de first person shooter), e havia, dentro dos servidores on-line desses games, jogadores que reclamavam de oponentes que usavam armas pesadas, como bazucas, tanques, entre outras. E havia, é claro, a regra entre os jogadores mais experientes e mesmo os menos ortodoxos: se a arma foi colocada no jogo, então é um direito usá-la, usa-a quem quiser.

– Bom, acho que vou concordar com você… Não devia ter duvidado de você. Me desculpa.

– Tá, nem esquenta. Já tô de saída mesmo, mas um dia eu volto, com um filho sei lá…

– Essa é uma ideia interessante – Aline disse, com um brilho estranho nos olhos.

– Seeeeiii… Bom, se não há mais nada a ser dito… – E já ia entrando no furgão, quando Aline chamou-o de novo.

– Espera!

– Ai meu caralho… – Pedro resmungou baixinho, mas Lincoln ouviu e riu alto – Pois não?

– Queria te convidar pra tomar um sorvete, sei lá, quando eu não tiver dia de treino, ou sair pra passear.

– Ah, sei, sei. Lamento, mas… Já tenho alguém pra convidar pra esse tipo de coisa.

– Aham, e ela é bonita, por acaso? – Aline perguntou, enciumada.

– Ela é a garota mais bonita que já vi… – Pedro respondeu, sorrindo, e entrando no furgão. Mas ele não podia perder a chance de provocar, e antes de fechar a porta, virou-se e acrescentou – E ela é mais ruiva que você. Se cuida, cabeça quente – fechou a porta do furgão, e lá de dentro se ouviu uma exigência abafada: – ‘Fessor! Liga a música mais pesada que você tiver aí e bora voltar pra escola! Cê tá me devendo uma pizza!

            Ouviu-se risadas dentro do furgão, o motor roncou e rugiu, e eles estavam a caminho. Ainda ao longe, Aline podia ouvir o som de uma banda que ela conhecia, Turisas, tocando Piece by Piece. “Combina com ele”, ela refletiu, melancólica. Caminhou devagar para sua bicicleta e foi para casa.

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