Capítulo 7

                                                        Capítulo 7

                        Ser presidente do grêmio é um pequeno passo



            No dia seguinte, os rapazes acordaram cedo, devido à quantidade de exercícios físicos que fizeram no dia anterior. Ainda com o que restava da energia acumulada da partida de bola queimada, acordaram cedo, às seis e meia, e revisavam algumas matérias que teriam para o dia. Estudaram e se arrumaram, tudo num tempo muito bom, então decidiram que poderiam ver um pouco de TV. Quando ligaram, ficaram mudando os canais, até que, num susto, Lincoln entrou no quarto e gritou:

– Ponham no noticiário policial da manhã! AGORA!

            Assustados, eles encontram rapidamente um canal com um programa de notícias, e elas eram horríveis: às sete e meia da manhã de quarta feira, o corpo de Lars Dragunov e da família fora encontrado em sua casa, totalmente mutilados e massacrados. Lars tinha sinais visíveis de tortura, agressão, e a família fora chacinada e esquartejada. Os policiais e investigadores no local, Roy Terrence, chefe de polícia, Dexter Pajaranbe, o delegado, e John Loyd, o investigador, respondiam a algumas perguntas superficiais dos jornalistas.

– Sim, o caso pode ter alguma ligação com ambos os assassinatos de Maximillian De Laroux e Gustav Boskonovich, mas ainda não podemos fazer uma ligação – Afirmou o investigador Loyd – Entretanto, sabemos que é a mesma pessoa. O método empregado, brutal e “desumano” – Ele fez aspas com os dedos, ironizando a expressão usada pelos humanos –, confirma que se trata do mesmo assassino. Quê propósito ele pode ter, cometendo tais crimes, não temos certeza, mas talvez ele seja um suicida – Desafiou o investigador.

– A polícia suspeita que seja alguém de um grupo radical dos humanos?

– Eles não seriam loucos de fazer algo nessa escala. Mas não descartamos a possibilidade, além de estarmos fazendo investigações meticulosas sobre qualquer fonte de dinheiro ilícito que possa estar servindo de suborno para calar qualquer um que tente escapar aos planos, quaisquer que sejam eles. Ainda é cedo demais para afirmar alguma conspiração louca dos fanáticos, mas todas as hipóteses estão sendo examinadas friamente.

– Uma última pergunta, investigador Loyd – Perguntou a repórter apressadamente, antes que ele virasse as costas para ela – Que nome você acha que o assassino possa usar para aumentar sua imagem?

– Como é…?

– Todos os assassinos seriais usam nomes que os identificam, como se fossem super vilões do mundo real, enaltecendo o próprio ego. Às vezes a própria população adota nomes que lhes agradam, então, que nome você acha que ele usará?

– Uma pergunta perspicaz… Duvido que estejamos lidando com algum perturbado mental, que seja arrogante e egocêntrico o suficiente para adotar um codinome, se essa é a idéia que sugere. Se for alguém querendo vingança, talvez um codinome militar. Mas, como foram apenas três assassinatos – e eu espero que sejam só três, que possamos capturá-lo antes de um quarto – é cedo para que as investigações afirmem qualquer coisa.

            A parte seguinte da reportagem mostrava uma lista dos grupos radicais humanos que, segundo teorizam malucos da internet e fanáticos por guerras, poderiam ter ligações com o misterioso assassino. Alguns chamavam-no de “Exterminador”, outros de “Templário”, usando de forma pejorativa a imagem falsa que os cavaleiros templários medievais transmitiram durante as chamadas “guerras santas”. Um desses grupos era o “Arautos da Humanidade”, comandados por um eixo de igrejas católicas, protestantes, pentecostais, fundamentalistas e mesmo com grupos da extinta Israel, e seu líder, um homem mirrado e patético (aos olhos de Pedro), Johnathan Goldstein, dava palestras em eventos onde os humanos mais afoitos por guerra contra os monstros aplaudiam a cada suspiro que ele dava. A imagem de John Goldstein era assustadora, alguém com uma oratória facilmente adaptável aos ouvidos que manipulava fiéis em todos os cantos. As autoridades políticas dos humanos, contudo, não faziam muita coisa relevante para investigar o líder religioso, tampouco pretendiam puni-lo ou prendê-lo.

            Um silêncio atônito tomou conta do quarto quando a TV foi desligada por Pedro. Ele olhava para baixo, perto da tela da televisão, enquanto seus colegas olhavam para Lincoln, que carregava um fogo de ódio nos olhos. Lars era um parente distante seu, eles tinham boas relações. Agora, estavam todos mortos: suas duas filhas, ainda criancinhas (pelos padrões dos elfos), suspeitava-se que foram violentadas sexualmente pelo assassino, numa tentativa de “provar sua superioridade”. A esposa fora escalpelada, e Lars fora torturado com sombras (os elfos ficam enfraquecidos na sombra), venenos, aço forjado com carvão de ossos aquecido que lhe cortou a pele. Foi cruel além da conta.

– Estamos no caso – Pedro disse, baixinho.

– Pera, como é que é? – Capivara perguntou, com medo de ouvir a resposta.

– Cê não me ouviu? Estamos no caso, caralho.

– Tá, espera um pouco – Disse Igor, tentando colocar juízo na cabeça do amigo – Você quer me dizer que quer investigar isso? Cara, você não pode estar falando sério. Somos um bando de manés.

– Silêncio, Igor – Pedro respondeu, decidido. Quando se virou para seus amigos, sua expressão era uma mistura de fúria, teimosia e coragem: já sabiam que vinha um discurso de motivação – Já foram assassinados três do nosso povo. Um vampiro, mercador de perfumes, praticamente um inocente nas questões políticas. Mas ainda assim, um alvo que marcou o início da carreira desse açougueiro de merda. O segundo foi um lobisomem, um militar, ele era importante por conta dos Ninhos dos Mortos. O terceiro era um diplomata. Pior: parente de um dos nossos aqui. Se deixarmos que continue assim, quem será o próximo? Esse cara, quem quer que seja, tá matando gente importante por alguma razão, talvez realmente seja algum filho da puta religioso desmiolado, mas até agora, ele tem se mostrado muito além de um reles humano. O cara pode bater de frente contra um lobisomem militar, conseguiu capturar um vampiro, esquartejar uma família de elfos, sem mencionar as atrocidades que fez com eles. Ele provavelmente não é humano, e se não for, vamos massacrar ele. Se for, vai ser pior pra ele. Nós todos temos recursos que os outros não têm: anonimato, nós somos apenas alunos. Somos espertos o suficiente para nos adaptar a qualquer coisa, somos sete dos maiores povos dos não humanos. Cada um aqui tem habilidades únicas, então, ou eu faço isso sozinho, ou conto com a ajuda de vocês, meus camarradas – Pedro encerrou o discurso com essa pequena piada, fingindo sotaque russo e usando o termo da falecida União Soviética dos militares, “meus camarradas”. Sabia que tinha conquistado os amigos.

– Tô contigo – Heitor foi o primeiro a se pronunciar.

– Certo, eu não tinha nada planejado pra sexta à noite – Samuel sorriu de entusiasmo.

– Finalmente um pouco de ação – Disse Capivara.

– Bem, não vou deixar vocês se ferrarem sozinhos – Igor suspirou, resignado.

– Ninguém aqui vai se ferrar enquanto o anão estiver com vocês! – Andrey esbravejou, rindo.

– Valeu, cara – Lincoln suspirou, agradecido – Estamos juntos nessa.

– Ótimo – Pedro sorriu, um sorriso que poderia ser considerado “malvado” – Vamos investigar todas as informações da polícia. Igor, você é bom com tecnologia, sabe hackear os sistemas sem ser identificado, então vamos fuçar todos os arquivos que pudermos encontrar…

            Passaram a próxima hora da manhã planejando, e acabaram atrasados para as aulas. Se parece absurdo que sete jovens tentassem identificar o assassino de três importantes personalidades, mais absurdo seria permitir que ele continuasse a solta e contar com a polícia para prender alguém que tinha mais poderes do que um monstro. Passaram o mês de fevereiro e março estudando, e intercalando os estudos com todas as informações que podiam. As pistas deram uma esfriada, por causa da inatividade do assassino, mas, seguindo informações relevantes acerca do alvo, puderam elaborar um perfil físico a seu respeito. O primeiro ponto: seu porte físico. Ele media algo entre 1,80 m e 1,90 m, mas era difícil precisar de acordo com as câmeras de segurança, ele se movia muito rápido. Isso era outro ponto: a musculatura dele era mediana, mas seu corpo era forte o bastante para lutar com um vampiro, um lobisomem e um elfo, antes de subjugá-los.

            As coisas curiosas a seu respeito eram suas roupas e armas: a roupa fora identificada como um protótipo militar, mas de feitura e material desconhecido. Houve relatos de que pedaços da roupa foram encontrados, mas quando expostos a químicos ou luzes, se desfaziam em fumaça. A aparência, também, era curiosa: um macacão grande, de preto fosco, com equipamentos e enxertos mecânicos, para qualquer tipo de armas, como granadas, pistolas, facas (ele parecia ter uma obsessão enorme por cutelaria), e as feituras das mesmas eram impressionantes. Granadas de dispersão de gás, bombas de estilhaços, pistolas.38 e .45, equilibradas, além de ganchos que, algumas testemunhas duvidosas afirmavam, ele podia usar para escalar.

            Pedro e os amigos iam investigando, e assim março tornou-se abril. A única grande relevância do mês de abril foi o quarto assassinato: Joseph e Walma Sans-Coeur, um casal de vampiros. Ambos eram presidentes de instituições de caridade, apesar de seus sobrenomes (em francês, “sans-coeur” significa “sem coração”). Desta vez, foram crucificados com estacas de carvalho, em grandes estruturas de madeira, e deixados para arder ao sol. Seus cadáveres foram arremessados de encontro às janelas da delegacia, ainda presos aos crucifixos de madeira. O ocorrido, é claro, gerou pânico na população, que cochichava a respeito do misterioso assassino, enquanto construtores arrumavam as paredes e janelas destruídas da delegacia.

            E é claro, Pedro e seus amigos não ficaram parados feito idiotas: Igor já estava “confiscando” cópias das gravações de vídeo de câmeras das ruas, e ficaria um dia inteiro dentro do quarto, com seu laptop, testando a capacidade máxixa de seu software de invasão. Os amigos, no entanto, estavam andando pelos corredores e discutindo os próximos passos, quando se depararam com algo insólito: um anúncio no quadro de avisos, dizia que as eleições para presidente do grêmio teriam início na terceira semana de abril.

– Tá aí, essa é uma coisa que nunca fiz… – Pedro resmungou – Vou concorrer.

– Não pode estar falando sério – Capivara, ao seu lado, reclamou – Por que você iria querer ser presidente do grêmio?

– Bom, vou tentar usar isso como um cajado pra matar dois coelhos – ao dizer isso, assustou duas garotas lebres que passavam atrás dele, e elas correram para longe. Pedro olhou-as de lado, e deu de ombros.

– Certo, e como isso vai funcionar? – Perguntou Samuel.

– Em primeiro lugar, vou botar ordem nalgumas merdas aqui da Academia – começou o lobisomem, botando as ideias no lugar – Tem bebedouros pra todo lado, mas metade deles estão quebrados, não é?

– É – Concordaram os dois.

– Então, isso vai ser meu primeiro “ato de mandato”. O segundo vai ser regular o uso de equipamentos de segurança obrigatório nas aulas de natação. Não é todo mundo que sabe nadar, ou que tem tempo para comprar roupas de banho.

– Sei – Interrompeu Capivara – Cê tá pensando em dar biquínis de graça pra qualquer garota?

– Ou uma garota em específico? – Samuel sugeriu.

– Calem a boca, mas gostei da idéia – Pedro respondeu, apontando para Samuel – Mas, é mais ou menos por aí. Um presidente do grêmio, por essas bandas, é quase o braço direito do diretor. Mais para frente, talvez eu possa usar a posição como um chamariz pro assassino…

– É, ele pirou mesmo – Concluiu Capivara – Você já viu o que esse cara faz, você tem certeza de que pode bater de frente com um assassino que é mais forte que lobisomens, vampiros e elfos?

– Ele não vai poder com todos nós, vai por mim – Assegurou o lobisomem, e os três continuaram andando.

            Lincoln se mantinha concentrado nos estudos e no trabalho, ajudava os colegas com comida e bebida para manter a força, enquanto os outros usavam o conhecimento das aulas para aplicar suas teorias acerca do assassino. Mas, em meio a isso tudo, surge a campanha de eleição para a presidência do grêmio de Pedro. A corrida presidencial dos alunos foi acirrada, pois Pedro estava competindo contra Hillary Windmist, uma harpia metida a revolucionária. Ela era da raça dos abutres, portanto, estava sempre com a cara metida em tigelas de carne mal passada, além de ter uma personalidade para lá de repulsiva. Havia suspeitas de que a família dela tinha envolvimento com grupos terroristas, mas, é claro, ela negava tudo.

            Durante a campanha de Pedro contra Hillary, o lobisomem escolhera Heitor como vice, e sua chapa política eram, é claro, seus amigos. Eles toparam a ideia porque, assim, poderiam dar uma esfriada na caçada ao assassino. Enquanto faziam seus cartazes e as bugigangas eleitorais, com bottons e mesinhas para que os alunos fizessem suas perguntas e exigências, houve a primeira semana de provas. Isso deixou todos desorganizados, o que, é claro, tornou tudo mais interessante para Pedro: ele gostava de ser desafiado (apesar de ser desorganizado).

            Quando Ana tomou conhecimento de que seu amigo iria concorrer à presidente do grêmio, assegurou de que o ajudaria a bolar um discurso que poria Hillary no chinelo. Ele acreditava piamente que a harpia não usava chinelo, e Ana deu-lhe um soco no braço, que ele respondeu rindo.

            Em fins de abril, o discurso dos candidatos teria início, e após isso a votação. Pedro estava recebendo ajuda de Ana atrás do palco, que se interessou pela campanha dele após ter lido os roteiros de afazeres que os amigos bolaram (mais pelas vantagens que ele, com certeza, traria, do que por querer um biquíni de graça). Além do mais, ela criou antipatia pela personalidade egocêntrica e cínica de Hillary, pois, durante as aulas, quando os professores perguntavam algo à Ana, era Hillary quem lhe tomava a palavra. E por vezes ela tinha o irritante costume interromper o que Ana dizia, numa explicação da aula, apenas para chamar a atenção para ela.

– Fiquei surpresa por você querer ser presidente do grêmio – Ana confessou ao amigo, quando eles estavam se preparando para o discurso.

– Sério? Acha que tenho chance de vencer aquela galinha vitaminada?

– Bom, se você perder, ainda pode tornar a vida dela bem desagradável, e eu vou ajudar.

– Sério, essa garota me dá engulhos desde que chegou à Academia. Sempre foi metida, sempre discutiu comigo acerca de política, me lembro como se fosse ontem quando quase me atraquei com ela… Enfim, ela acha que as fêmeas dos monstros têm muito a aprender com os movimentos feministas dos humanos… Ultraje, é o que isso me cheira. Ela vem querer criar divisão entre os monstros, e eu juro, se ela soltar uma única vírgula sobre aquelas merdas de revolução…

– Calma, calma… – Ana massageava os ombros do lobisomem, vendo a enorme tensão muscular que ele carregava. “O que será que ele anda fazendo?”, perguntou-se. Durante os quase três meses passados, eles mantiveram a relação de amizade muito bem. Ele era um perfeito cavalheiro, educado, divertido, engraçado, além de inteligente.

            Mas ela via uma ansiedade nos olhos dele, olheiras profundas. Às vezes, em casos extremos, um mau humor repentino e um stress enorme, e por vezes ele tinha de sair correndo enquanto um dos amigos dele o chamava apressado. É claro, ela sabia que eles haviam sido requisitados pelo professor de educação física, mas não podia ser isso. Ou será? Ela não tinha muita noção dos planos esportivos do professor Gunnar, mas ainda assim, era pouco provável que ele estivesse recebendo treinamento esportivo. Afinal, nas pouquíssimas vezes em que ele usava camisetas de manga curta, regatas, ou bermudas, nunca viu um único hematoma na pele dele. “Claro, lobisomens podem se curar muito rápido, mas ainda assim…”. E, além do mais, ela não poderia perguntar algo do tipo sem se intrometer em alguma coisa que, por motivos desconhecidos, ele talvez não pudesse contar. Então, ela aceitou a situação, resignada. Mas não podia deixar de sentir admiração pelo amigo.

            Agora, o professor Logan Manto Cinzento estava dando as boas-vindas aos alunos, na sala de apresentações multimídia, discursando um pouco sobre a importância da política e da filosofia, dentro dos territórios escolares. E então, chamou:

– Agora, apresento a vocês, os dois candidatos a presidência do grêmio escolar! Pedro Fenrirsson! – Pedro entrou, acompanhado de Ana. Heitor, seu colega de chapa, estava fazendo sua musculação diária. Ele foi aplaudido pelos alunos, entusiasmados.

– E Hillary Windmist! – Descendo do alto, voando com asas de penas negras e meio ensebadas, veio Hillary, com sua colega de chapa. Ambas harpias, da espécie dos urubus, eram estranhas de se olhar: suas pernas tinham uma aparência cômica, e suas penas eram meio nojentas de se ver. Ao fundo da platéia, houve uma pequena confusão de gritos e urros de aprovação, e foi só.

            Hillary exibia um sorriso azedo, cínico, e olhava para o adversário com uma expressão de pena arrogante. O professor Logan começou a dar as pequenas regras com relação ao discurso: nada de ofensas diretas, insultos diretos, nada de mentiras, E assim foi, ditando as regras, até que perguntou:

– E agora, quem gostaria de começar?

– Eu gostaria de deixar Hillary dar suas palavras… – Disse Pedro, educadamente. Sabia que esse gesto de cortesia tirava Hillary do sério. E com efeito, ela demonstrou uma carranca de desagrado imediatamente, mas não desperdiçou a chance que seu oponente lhe dava.

            “Pior pra ele, mané machista de merda”, ela pensou, orgulhosa de ter a chance de poder discursar. Enquanto ela se punha de frente ao pequeno degrau, com o microfone á frente, o professor Logan de encaminhou para uma cadeira ao lado de Pedro e Ana, e cochichou para o rapaz:

– Mal posso esperar pra ela terminar e calar a boca…

            Os dois jovens riram, enquanto Hillary começava:

– Minhas amigas, irmãs, e estudantes do sexo masculino. Venho até aqui, humildemente, expor a situação a todos vocês, e as chances de mudar os problemas estão em minhas mãos…

            Assim teve início seu maçante discurso, acompanhado de olhos revirados do professor, resmungos de alguns na platéia, além de vários alunos terem deixado a sala (pretendiam voltar quando “aquela galinha preta ridícula calasse a porra da boca”). Hillary discursava e narrava coisas absurdas que, segundo ela, aconteciam na escola, e poderiam mudar: o uso abusivo do poder masculino, de professores, do zelador, até mesmo de alunos, perante as economias da escola. A forma agressiva como os relacionamentos, seja de amizade, seja de interesse pessoal, aconteciam livremente, oprimindo garotas inocentes que nada faziam de errado. Ela defendia uma suposta liberdade, para que garotas tivessem o “direito” de cortejar rapazes que, se não aceitassem, receberiam advertências por preconceito contra o sexo feminino. (Era tudo exagero, é claro, e ela estava embargada na idéia de que, fosse como fosse, venceria). Além disso, ela gostaria de implantar nas aulas de história e filosofia, livros abomináveis que os humanos haviam escrito: O Capital, de Marx, SCUM Manifesto, entre outras aberrações. O professor Logan, é claro, estava aborrecido até o cabelo com toda aquela coisa: ele já lera, ou, pelo menos, se forçara a ler aquelas coisas que outros chamavam de livros, e repudiava os ideais contidos neles. Mas, como não podia mandar a garota se calar, teve de calar-se e esperar.

            Após quase duas horas de discurso, ela agradeceu, e retirou-se do palanque, sendo aplaudida timidamente por alunos e alunas (que achavam o comportamento dela vergonhoso), mas recebendo urros de aprovação daquele mesmo pessoal ao fundo da platéia. O professor Logan, que em certo ponto cochilara, acordou de súbito, percebeu que Hillary tinha ficado quieta por tempo demais, e correu para o microfone, ao que foi recebido com algumas risadas.

– Muito bem, foi muito… Informativo, acredito, o discurso de Hillary…

– Típico, não vai nem mesmo me elogiar, machista desgraçado – resmungou Hillary em sua cadeira.

– Enfim, agora, vamos ao discurso do nosso outro candidato, Pedro Fenrirsson!

            Agora houve mais aplausos, e ele andou calmamente até o palanque, ajustou o microfone para sua altura, e olhou longamente para a platéia, numa expressão pensativa. Seu rosto tinha uma das sobrancelhas levantadas, inquisidor, e depois, olhou com um ar crítico para Hillary, que o respondeu com a língua. Ele sorriu, atrevido, deu um pigarro exagerado, e começou seu discurso.

– Meus colegas, rapazes e moças, jovens e mais velhos… Vocês querem mesmo deixar que ela dite todas essas asneiras absurdas sobre vocês? – Ele apontou para Hillary, que, ultrajada, reclamava com o professor sobre “regras”. Mas, já que ela usara insultos contra os alunos e o próprio professor, não tinha direito algum de reclamar sobre regras.

– Até onde vi – Continuou Pedro – Eu venho sofrendo assédio sexual de uma das alunas. Já até prometi arrancar o couro dela e fazer de tapete pro meu banheiro – A plateia riu – É, eu sei, muito engraçado. Não vi problemas como os citados pela outra candidata, a quem prefiro sequer dizer o nome. Vamos aos fatos, sim? Em primeiro lugar, há bebedouros demais para a escola, e metade deles estão com defeito. Precisamos nos manter hidratados, ótimo, então que tal se eu mandar arrumar os que estão quebrados?

            A plateia aprovou, dando vivas contidos.

– Beleza, e que tal a galera que não tem equipamento para aulas de natação? Ou que não sabe nadar? O que acham de mais equipamentos para a piscina? Cacete, posso até conseguir filtro solar pra vocês usarem nos dias de folga e tomarem sol, estirados na grama com toalhas – Os alunos riram e aplaudiram.

– O que acham também, de mais latas de lixo? Uma organização melhor para as provas dos professores? Uma reforma em algum dormitório que ficou danificado por, sei lá, uma cabeça que foi jogada junto com um corpo numa brincadeira exagerada? – Aos poucos, a platéia ria e aplaudia.

– E, se houver alguma garota aqui que quiser ter essa tal “liberdade” de assediar sexualmente os alunos, e quiser punir os coitados por recusarem as “cantadas”, que tal se agarramos as danadas pela xoxota? – os alunos riram até cair das cadeiras, sem fôlego. Ana ria também, contida, e o professor ao seu lado se controlava para não gargalhar. Hillary, por sua vez, estava vermelha feito uma pimenta – Faremos questão de, eu e meus amigos, os “sete ridículos”, supervisionar quaisquer punições contra agressões, assédio, bullying… Não fui eu quem ajudou vocês durante meus anos de estadia por aqui? Mesmo os novatos se beneficiam dos ecos de minhas atitudes, por mais agressivas que fossem. É claro, teve gente que perdeu os dentes da frente… – Novas risadas e aplausos – Mas, será justo querer acusar apenas baseando-se em idéias tresloucadas acerca de luta social? Em quê isso nos ajudou? Não somos humanos, não nos dividimos, não nos fazemos de vítimas, SOMOS MONSTROS! SOMOS UM SÓ POVO! – E terminou seu discurso, sendo recebido com vivas, ovacionado e aplaudido de pé.

– Ah, merda, antes que eu me esqueça – Ele voltou correndo ao microfone – Se eu for eleito, vou fazer questão de organizar um baile dos anos 50 pra geral. Valeu, falou, seus otários! – Novos aplausos e berros de aprovação. Todos conheciam o senso de humor dele, e adoraram as idéias dele.

            O grupo de Hillary, é claro, o estava vaiando, mas logo foram calados, devido ao barulho da maioria da platéia. Hillary já havia saído dali, e o professor Logan instruiu os alunos para fazerem a votação. Em poucas horas, todos os alunos da escola já estavam cientes da votação, e estavam indo até as salas de aula onde havia as fichas para seus candidatos. E, ao final das sete horas, todos os alunos já se encontravam na mesma sala de apresentação. A votação estava sendo contada pelos professores Logan e Jennyfer, mas não havia muito mistério, é claro. Pois, depois de setenta votos para Hillary, todos os outros votos foram para Pedro (o que, numa certa escala, era de 30% para Hillary, 70% para Pedro).

            Ao fim da votação, havia gritos esparsos de vitória, e o professor Logan foi ao palanque, posicionou o microfone e disse:

– A votação terminou. Alunos, eu vos apresento, o seu novo presidente do grêmio! Pedro Fenrirsson! – Este subiu ao palanque, para receber do professor um pequeno broche que deixava claro sua posição. E enquanto ambos apertavam as mãos, o professor sussurrou ao ouvido dele: – Eu dei aula ao seu pai, anos atrás… Ele teria orgulho de você.

            A informação, é claro, pegou Pedro de surpresa, que só conseguiu acenar e agradecer. Isso, sim era uma novidade, que foi bem recebida.

– Me conte os detalhes disso outra hora, professor – Pedro respondeu, falando em voz baixa e com uma luz de orgulho nos olhos verdes.

– Tenha certeza de que te contarei tudo.

            Depois, seus sete amigos correram para cima do palco, abraçando e lhe dando tapas nas costas, enquanto ele se soltava e ria com eles. Ana o abraçou, orgulhosa, dando pulinhos com os pés enquanto ele a erguia no abraço. O resto da noite foi tranquila: Pedro e seus amigos foram até o refeitório, pois a cozinheira Abigail esperava por eles com um banquete. Ficaram por lá, conversando por horas, e até mesmo a cozinheira fez alguns pedidos ao novo presidente. E ela seria atendida com prioridade, ele afirmou.

            Algum tempo depois, Pedro e Ana estavam sozinhos, no terceiro andar. Lá havia uma janela que, devido à sua construção, dava um pequeno espaço para sentarem-se. Eles olhavam, em silêncio, as silhuetas da cidade. As luzes que piscavam, os carros que passavam. Ana suspirava, satisfeita. Sentia-se bem, feliz pelo seu amigo. Pedro, por sua vez, estava calado e pensativo, como se estivesse organizando idéias caóticas. Em dado momento, ele murmurou:

– Eu vou pegar você, seu babaca…

– Hm? Disse alguma coisa? – Perguntou a vulpe, curiosa.

– Ah, nada de importante, acho…

– Pedro, me conta uma coisa: você andou muito estressado esses meses… E nem adianta dizer que foi a corrida eleitoral.

– Difícil explicar, se já é complicado manter meus amigos nessa história, imagine o problema que seria envolver você.

– Vai me dizer que você tá vendendo drogas e que quer achar um mau cliente?

– Que? Não, não, eu sou um menino puro – Ana riu da piada, e ele sorriu, desanimado.

– Me conta, desabafa. O que é que tá deixando você assim?

– Se tem certeza de quer que eu conte, então lá vai: eu tô caçando o assassino de monstros.

– Tá falando sério? Por quê?

– Bom… Sim. Eu sempre quis um pouco de emoção na vida, motivo meio bobo, e até fútil. Mas, desde que sou pequeno, eu ouço como nosso povo, os monstros, lutaram pra conseguir retomar o mundo. Desde pequeno, eu ouvia histórias de como os humanos conseguiam ser maus, cruéis, os “verdadeiros monstros”, assassinos e tudo mais. Eu me interesso por geopolítica, por diplomacia, militarismo… Me mantenho informado. E, tudo o que ouvi sobre os humanos ficou confirmado, depois do primeiro assassinato. Foi além de cruel, foi um ato covarde. Eu achei que a polícia poderia achar o cara, mas não… Depois, mataram o Boskonovich, ele havia comandado o regimento do meu pai, nos Ninhos dos Mortos. Então, mataram um parente do Lincoln, o Lars. Ele era um diplomata, alguém que buscava a paz. E depois dois vampiros que ajudavam as pessoas mais pobres com caridade… Tinham boas relações com os humanos. Alguém tem que achar esse filho da puta e arrancar a coluna dele.

– Caramba… – Ana suspirou, surpresa pela revelação – Sabe que isso não é o seu dever, não é?

– Sei, sei sim.

– Então, você pretende descobrir quem é e entregar pra polícia, não é?

– Não. Eu mesmo vou atrás dele e vou arrancar a cabeça do babaca.

– Não quero que você se machuque, pode se dar mal. Não sei o que faria se você morresse ou sei lá.

– Não vou morrer. Em primeiro lugar, o destino tem muitas possibilidades, muitas escolhas. Eu escolhi caçar esse babaca, como os antigos lobisomens fariam. Eu escolhi arruinar ele, e qualquer um que o esteja ajudando. Meus amigos estão do meu lado, isso é o que importa. E, além disso, agora tenho outra responsabilidade.

– Ah, é? E o que seria, Senhor Super Herói?

– Levar você ao baile anos 50 que eu vou organizar.

            Ana balançou a cabeça e riu, incrédula. Ele falava sério, o sentimento de justiça dele era quase uma concepção infantil de nobreza, pureza, coragem e bravura. Mas, se era isso que o amigo queria, então ela ficaria ao seu lado.

– Se eu puder ajudar de alguma forma, me avise – Ana comentou.

– Bom, pra mim, basta saber que você continua comigo, mesmo eu sendo um delirante aspirante a justiceiro. Você é a garota que me mantém são.

– Sou é?

– É, sim.

            Ela sorriu, agradecida. Ele olhava para ela com uma expressão estranha: indecifrável, algo como desejo, carinho, amizade, preocupação, mas também havia uma solidão nos olhos que Ana estranhou. Segurando-o pela mão, ela afagou as costas daquela mão calejada e áspera, devido a cicatrizes. Ele sorriu, tímido, e tornou a olhar para a cidade. “Em algum lugar… E eu vou te pegar”, ele pensou.

            O mês de maio começou, e isso alvoroçou os alunos. Primeiro porque algumas das promessas de campanha de Pedro já estavam sendo cumpridas: havia punições para alunos que faziam atos de agressão, assédio, e etc., havia bebedouros que, antes estragados, agora funcionavam perfeitamente. Pouco a pouco, ele fazia o que prometia e deixava a todos contentes. O diretor, é claro, elogiava a conduta do rapaz, e não escondia a satisfação que sentia pelo rapaz. Mas, como sempre tem de haver uma fruta podre na cesta, havia alguém que estava descontente com a situação: Hillary Windmist. Na segunda semana de maio, ela iniciou uma campanha, baseada em notícias falsas e até mesmo provas falsas de atividades suspeitas e ilícitas do novo presidente do grêmio.

            Pedro, entretanto, deixava ela com seus delírios. Apenas seu grupo seleto de setenta pessoas comprava suas idéias, mas, se ela chegasse ao ponto de tornar-se um desconforto real, ele tomaria providências. Assim sendo, na terceira semana de maio, os preparativos para o baile dos anos cinqüenta teve início. As pessoas mais animadas com a coisa toda eram, é claro, as garotas da escola. Em especial, as quatro amigas: Vivi, Elise, Judy e Ana. Era de comum acordo, em quase todo o colégio, que os anos 50 foram a melhor época para roupas, estilos, música, etc. Era clássico, havia um ar pacífico de tranqüilidade nos anos 50 que dava sonhos a todos.

            Ana e as amigas começaram a sair juntas para a cidade. O depósito de Ana já caíra em sua conta na escola, e agora, as quatro saíram num dia sem aula para poder visitar brechós e costureiras, a fim de encontrar roupas que lhes agradassem. A maioria das roupas femininas dos anos 50, é claro, consistiam em vestidos longos, rodados, luvas fofas, lacinhos, tiaras, etc. Tudo simples, bonito, mas glamoroso. E foi numa dessas lojas que Ana encontrou um vestido que lhe deixou de queixo caído: um vestido preto e rosa pink, que lhe cabia perfeitamente. Ela o comprou, afinal, estava mais barato do que alugar (“Quem em sã consciência aluga uma coisa que é mais barato comprar?” ela falou com Vivi, que aprovou o vestido prontamente). Depois disso, ela foi até o provador, para experimentar. O vestido coube, e quando saiu, para exibir-se para Judy, a fauna aplaudiu, adorando o estilo. Mas, de súbito, perguntou:

– Como ficaria se você usasse uma transformação?

– Como é? – Ana perguntou, confusa.

– Bom, eu explico: a maioria dos alunos na escola mantém, pelo menos um pouco, algum aspecto de sua verdadeira natureza. Eu pelo menos não posso esconder essas pernas de ovelha – Ela suspirou, um pouco aborrecida – Ainda assim, é raro os alunos esconderem sua verdadeira forma. Eu queria saber como o vestido ficaria se você usasse uma transformação, mesmo que parcial.

– Ah… Bem, é que… – Ana hesitou, não sabia se seria seguro explicar.

– Pode me contar, vou manter segredo – Judy afirmou.

– Ok. O negócio é que eu me sinto quase despida, mesmo se eu usar uma transformação parcial. A maioria dos vulpes usa pouquíssima roupa, e eu ficava desconfortável demais nos bairros onde morava. Quase todo mundo tentava me incitar a usar menos roupa e ficar mostrando a cauda, as orelhas. Eu deixo apenas os olhos à mostra, me sentiria bem desconfortável se eu saísse por aí rebolando a cauda…

– Entendo… É, aí fica complicado. Mas, menina, vamos aos fatos: você tem um lobisomem charmoso, garboso, musculoso, que quer te conquistar. Você não está mais nas regiões restritas do seu povo, está em Howlingtown. Ninguém vai exigir que você tire a roupa só por exibir a cauda de raposa. Além do mais, se alguém fizer isso, o Pedro vai esquartejar o coitado por ter te insultado.

– Ai, não sei… E se ele não gostar?

– Ah… Então você admite que se importa com o que ele pensa, também? Interessante… – A fauna tinha um sorriso malicioso nos lábios.

– Ah, qual é, é claro que me importo: ele me acha bonita. Mas ele é um lobo (além de meio bobo). E eu, uma raposa.

– Sei disso. Ele é um canis lupus, mas ainda assim, raposas são bem próximas dos canídeos. Não é por acaso, a evolução não é brincadeira. Agora, vai: me mostra um pouco sua transformação.

– Tá, tá legal, eu mostro… Só pra fazer você parar de me pressionar – Ana bufou, resignada. Fechando os olhos, ela se concentrou, como sua tia-avó a ensinou, e então imaginou sua verdadeira natureza dividindo seu corpo. Por fora, suas orelhas cresciam, se alongavam e formavam uma concha, para, então, ficarem pontudas no topo. Pêlo castanho crescia nelas e tornava-se alaranjado, quase vermelho. Ao mesmo tempo, na base de sua coluna, ela sentiu uma comichão irritante, enquanto os ossos se multiplicavam e a pele e músculos cresciam e se alongavam, junto com uma camada de pêlos castanhos que iam se avermelhando. Em alguns segundos, ela tinha grandes orelhas de raposa aos lados da cabeça (que, segundo a anatomia, estavam corretas de acordo com o formato dos órgãos internos do ouvido), acompanhadas de uma longa e enorme cauda felpuda, alaranjada, com uma ponta branca.

            Ana olhava para a amiga num misto de raiva, vergonha, timidez e incerteza. Mas Judy apenas olhava, boquiaberta e surpresa.

– Caramba… – Ela murmurou, finalmente – Você é realmente incrível…

– Ah, não exagera, tá? É só uma cauda e duas orelhas…

– Eu sei, mas, nunca tinha visto um vulpe transformado. Mesmo que parcialmente. E eu digo com toda certeza: tenho inveja de você.

– Não, com certeza não tem. Suas pernas de ovelha são lindas.

– Sei disso – Judy empertigou-se, orgulhosa – Mas você é mais bonita. Só não sabe aproveitar isso. Quando voltarmos ao dormitório, vou te ensinar uns truques de maquiagem. E tem de me prometer que vai usar essa transformação parcial no baile.

– Por que quer que eu prometa isso?

– Porque o Pedro também vai fazer isso.

            No dormitório dos rapazes, eles já haviam escolhido suas roupas com tempo de folga. Pelo menos quatro deles iam vestidos “greasers”, os badboys americanos que vestiam-se com jaquetas de couro, botas de bico fino, jeans skinny e camisetas brancas ou pretas. Os outros três (Lincoln, Igor e Heitor), iriam usando roupas de jocks, ou esportistas. Um grupo distinto, afinal, os jocks eram agressivos pelos esportes, e os greasers eram encrenqueiros natos. E, num consenso, decidiram que as jaquetas esportivas dos outros três deveriam ser de equipes diferentes, já que ninguém ali jogava futebol americano.

            Enquanto se arrumavam, Pedro saiu do banheiro, totalmente paramentado para a noite do baile: uma camiseta preta com alguns rasgos intencionais (como se ele fosse briguento), jeans skinny cinza escuro meio desbotado, botas pretas acima dos calcanhares e, obviamente, cheias de fivelas, e uma jaqueta de couro, preta, com algumas tachas afiadas a guisa de spikes. O cabelo, metodicamente penteado para trás, e a expressão de tédio no rosto, conquistou elogios dos amigos. Ele sorriu, satisfeito: estava pronto para a noite, não fosse um detalhe: ele queria mostrar mais ainda.

– E o que mais você pretende fazer pra melhorar a aparência? – Perguntou Capivara.

– Simples, meu colega orc capivaresco – respondeu ele. E em seguida, suas feições mudaram um pouco. Seus dentes ficaram alongados, especialmente os caninos, os ossos do rosto alongaram-se levemente, enquanto as orelhas foram ficando pontudas e com uma leve cobertura de pêlos pretos. Seus olhos, antes verdes, agora eram de um amarelo frio, e sua musculatura ficou evidente na camiseta preta (agora um pouco justa demais). Um lobisomem badboy, ele olhou sorrindo para os amigos, e Samuel deu um leve puxão nas suíças do rosto dele, que foi respondido com um tapa na orelha.

            Com tudo pronto, os rapazes se dirigiram para o grande salão de festas, e ganhavam elogios e assobios dos outros colegas e assovios das garotas.

            No dormitório das quatro garotas, Vivi esperava as amigas na porta. Vestia-se como uma “badgirl”, com um jeans azul-escuro desbotado, sapatos de salto alto, uma jaqueta de couro preta, uma regatinha branca e um lenço vermelho no pescoço. Seu cabelo, devidamente preso com um lenço azul, deixava as orelhas de gato a mostra, e sua cauda felina balançava preguiçosa, esperando as colegas. Elise saiu vestindo uma roupa que era quase anos 60: um vestido acima dos joelhos, verde-claro, uma boina cor de uva, combinando com um coletinho da mesma cor, botas altas até os joelhos de um roxo mais claro, e óculos de lentes redondas cor-de-rosa.

– Você parece uma cesta de frutas – comentou Vivi, olhando-a de cima a baixo.

– E você parece uma gatinha brincado de ser pantera – Elise respondeu, atrevida.

            As duas riram, é claro. E em seguida veio Judy, tentando arrastar Ana para fora, de tão tímida que ela se sentia. Judy vestia um vestido rodado azul-claro com bolinhas amarelas, chamativo demais. Por causa dos cascos de carneiro, ela não podia usar sapatos de qualquer espécie, mas deu um jeito de ficar adequada: cortou e costurou fivelas que, de certo ângulo, pareciam-se com sapatos. Usava um penteado que enaltecia seu cabelo super cacheado, com uma tiara de lacinho cor-de-rosa muito claro. Já Ana usava o vestido que comprara, sapatos de salto pretos, uma tiara com um laço do lado direito da cabeça,um par de luvinhas brancas, e a maquiagem era simples. O motivo de sua timidez era, com razão, a promessa que ela tinha de cumprir: as orelhas e a cauda.

            Ao verem isso, Vivi e Elise engasgaram, surpresas. Ela andava encabulada, enquanto as amigas pediam para dar umas voltinhas e analisar o modelito. Os movimentos eram acompanhados, é claro, pela movimentação da cauda dela, que era grande, longa e felpuda. Esta, por sua vez, fora penteada e escovada, e estava lustrosa. Vivi assoviou de surpresa, e Elise olhava com pura inveja para a amiga, mas orgulhosa de poder ver uma coisa tão rara.

– É a primeira vez que fico com ciúmes da minha cauda – Disse Vivi, sorrindo e elogiando Ana.

            Ela murmurou qualquer coisa que poderia ser “muito obrigada” ou “por favor, deixa eu me enfiar debaixo de uma pedra”. Mas, ainda assim, deixou a cauda e orelhas visíveis. As quatro foram em direção ao grupo dos rapazes, e, quando viram Pedro, Heitor, Samuel e Igor também parcialmente transformados, tiveram um susto de prazer. Samuel era uma visão assustadora, mas transmitia confiança como badboy. Igor, por sua vez, estava bem agressivo em sua roupa de jock, a pele meio cinzenta e os dentes afiados. Os olhos do rapaz estavam de um tom de verde mar de dar inveja, pra não falar das garras. Heitor, por já ser um esportista nato, era musculoso por si só. Mas, agora estava mais alto, mais musculoso, e com uma aparência de bárbaro: olhos preguiçosos, de um castanho mel, os músculos saltando da roupa, os dentes escondidos dentro da boca que se crispava num sorriso tímido.

            Mas Pedro chamou a atenção de Ana (como Judy previra): sua forma mais lupina era uma surpresa para a garota, que até agora só vira o rapaz usar os benefícios de sua natureza no quesito físico de atividades e vigor. Os dentes, os olhos dourados, as garras, era impressionante. Mais impressionante ainda, e surpreendente, foi constatar que, atrás dele, havia uma cauda lupina balançando-se lentamente para a direita e para a esquerda.

– Podemos ir? – Lincoln ofereceu um braço, ao que foi recebido por Vivi.

– Devemos, com certeza – Ela respondeu, e os outros formaram os pares que podiam. Pedro e Ana demoraram-se um pouco, ficando para trás, enquanto se olhavam.

– Você tá… Você é… Nossa… – Dizia o rapaz, tentando encontrar alguma palavra adequada.

– Eu tô morrendo de vergonha, desculpa – Ela agarrou o braço dele e escondeu o rosto. Involuntariamente, o movimento e os sentimentos dela fizeram suas orelhas se moverem para baixo, naturalmente numa atitude de proteção. Isso fez com que Pedro lhe desse um afago automático na cabeça, e ela relaxou um pouco. Ana deixou-se conduzir pelos corredores e escadas até o salão de festas.

            Enquanto andavam pelos corredores, todos os outros alunos olhavam o casal num misto de surpresa, admiração e inveja. Pedro os ignorava, concentrado que estava em guiar Ana até o grande salão de festas. A vulpe sentia-se exposta demais, e tentava segurar a cauda e enrolá-la ao redor da cintura, como se fosse um cinto. E quando Pedro percebeu isso, seguro a mão dela delicadamente, para que parasse o movimento.

            Ela o olhou, e parou de tentar se esconder. Ela sentiu que Pedro estava querendo protegê-la, mas ao mesmo tempo, fazer com que se sentisse bem o suficiente para não sentir medo do que era. “Se ele soubesse o que já passei”, pensou Ana. “Não, de jeito nenhum, isso vai fazer ele fugir…”, mas, mesmo se sentido como se estivesse nua, permitiu que o lobisomem cuidasse dela. Ana sentia um calor estranho emanar dele, não apenas o calor físico. Isso deixou-a mais calma, e quando se deu conta, já estavam no salão de festas, com Elvis Presley tocando nos alto-falantes.

            Os amigos estavam todos numa enorme mesa, e o casal foi até lá para sentarem-se e comer alguma coisa. A comida, obviamente, consistia em hambúrgueres, batatas fritas, costelas assadas com molho, milho grelhado, coisas que eram muito comuns nos anos 50 (até mesmo a comida era elogiada como a melhor de todos os anos que viriam). As bebidas tinham opções de sucos, refrigerantes, e chás. Sendo uma escola, não poderia haver bebida alcoólica, mesmo que os alunos fossem imunes ao efeito do álcool. De qualquer forma, ninguém se importou com a falta de cervejas ou whisky.

            Os outros alunos dançavam na grande pista de dança do salão, aproveitando o momento, e as músicas iam alternando entre CDs gravados e uma banda cover que alguns alunos tiveram a decência de montar previamente. Ritmos dançantes, lentos, mais calmos, tudo ficou do agrado, e vários vinham agradecer ao presidente do grêmio por esse presente. Pedro respondia a todos que ele queria algo assim tanto quanto qualquer um, e fazia piadas com os outros grupos de alunos: nerds, patricinhos, pobretões. Tudo ia nos conformes, e até mesmo os professores estavam a caráter, usando as roupas que eles haviam usado anos antes quando eram meros estudantes.

            O único problema, que foi resolvido com rapidez, foi Hillary: metida como era, com seu grupo de setenta amigos, foram todos vestidos com roupas dos militantes dos anos 50, começaram a arrumar confusão, e logo foram expulsos da festa, com um aviso do diretor de que teriam uma “conversinha sobre a conduta negativa deles” em breve.

            Pouco tempo depois, os amigos de Pedro decidiram que iriam para a pista de dança, e deixaram ele e Ana sozinhos na mesa. Já havia quase duas horas de festa em que estavam conversando, e os amigos dele sentiam a necessidade de se mover um pouco. Então, quando saíram, Pedro ficou conversando animadamente com Ana, que sentia-se mais calma e segura, uma mudança agradável. Aos poucos ela ficava mais animada, e olhava ao seu redor, para as luzes, as pessoas se divertindo ao seu redor, as professoras elogiando seu vestido, sua aparência, olhando com admiração para sua verdadeira natureza.

            “Até que não é tão ruim assim…”, concluiu a garota, e foi pega de surpresa quando Pedro perguntou:

– Tá afim? – Apontando para os outros dançando.

– O que? Eu não sei dançar! – Ana assustou-se, se sentido tímida novamente.

– Não se sinta obrigada a isso, mas eu adoraria dançar com você.

– Eu nunca dancei antes, ainda mais algo dos anos 50…

– É fácil, é só seguir meu ritmo. Topa?

– Ah, que se dane: eu topo – Ela sorriu, e mesmo tímida, e deixou Pedro guiá-la pela mão até a pista de dança.

            Enquanto o jovem lobisomem imitava alguns passos desajeitados de Elvis Presley (enquanto tocava Johnny Cash), a vulpe ria e tentava imitar, sabendo que ambos estavam passando vergonha. Mas ela se divertia, e isso a deixou mais solta para arriscar dançar com mais seriedade. Aos poucos, Pedro fazia o mesmo, e ela percebeu que ele usou o artifício da brincadeira para deixá-la melhor. “É, funcionou”, pensou Ana, resignada. Logo, os dois estavam juntos numa dança que, aos olhos dos outros, parecia ter sido ensaiada, e as músicas iam mudando de ritmo. Não importava: os dois mudavam de ritmo juntos e continuavam a dança. Aos poucos, a garota percebeu que outros casais os imitavam, como se eles estivessem conduzindo a coisa toda. Isso a deixou sem jeito, e antes que pudesse dizer algo, a próxima música era uma lenta, romântica.

            Vermelha igual a um tomate, ela olhou para o amigo, que também estava vermelho, sem saber o que fazer, e tentava, desajeitado, segurar-lhe o ombro e a cintura. A música foi tocando e ele deixava os olhos fechados, concentrado em mover os pés.

– Pedro? – Ana sussurrou, insegura.

– Hm?

– Eu tô morrendo de vergonha…

– Eu sei, também tô me sentido assim.

– Jura?

– Juro.

– Não vai ficar estranho se eu esconder meu rosto em você ou coisa parecida?

– De forma alguma.

            E ela o fez: deitou o rosto no corpo dele, deixando-se acompanhar pelos movimentos dos pés de ambos. Ela ouvia o coração dele, batendo como tambores dentro das cavernas de uma montanha. Era forte, profundo, e bem rápido. Com um arrepio, sentiu que ele deitava a cabeça dele no ombro dela. Eles não eram muito altos, mas ainda assim, ele parecia mais alto, especialmente quando usava a transformação. O gesto dele deixou toda sua pele arrepiada, especialmente a cauda, que rodopiava junto os dois. “Caramba, não sei nem se vou conseguir olhar pra ele de novo depois de hoje… Mas seria burrice me esconder por timidez”.

            Aos poucos, a música foi parando, a banda foi encerrando, e todos aplaudiram e voltaram aos seus afazeres na festa, quaisquer que fossem. Pedro e Ana ainda estavam juntinhos quando a música parou, distraídos. Quando ela levantou a cabeça para olhar, deparou com os olhos dele, que piscavam, hora verdes e brilhantes, hora amarelos e reluzentes como duas luas cheias. Ele sorriu, sem jeito, e levou-a até a mesa deles.

            O resto da noite transcorreu tranquilamente. Ana estava quieta, tímida, mas satisfeita. Pedro conversava pouco com os amigos. Ela ficava agarrada ao braço dele, como se pudesse cair, ou se afogar no próprio ar, se não segurasse em algo sólido. Mantinha a cabeça baixa, as orelhas também baixas. O lobisomem, notando isso, decidiu levá-la de volta ao dormitório. Como um cavalheiro, ele tirara a jaqueta e pusera nos ombros de Ana (coisa que nenhum greaser faria), e segurou a mão dela o caminho todo. Abriu a porta para ela, e Ana o abraçou com força, murmurando algo entre “obrigada pela festa” e “se me fizer ficar sem jeito de novo te arranco os braços”, e entrou no dormitório, fechando a porta.

            Ficou encostada na porta alguns instantes, decidindo se deveria dizer algo mais para ele, mas, quando abriu a porta, ele já tinha voltado ao dormitório. Por sorte, notou um bilhetinho que ele grudara, e havia algo escrito nele. Dizia: “essa foi nossa primeira dança. Mal posso esperar pelas próximas. Ass: Pedro”. Ela agarrou o bilhete, a jaqueta, tirou os sapatos e se jogou na cama, suspirando de alegria.

            No dia seguinte, Pedro estava se sentido como se tivesse sido atropelado por vinte mamutes. “Toda porra da vez que eu invento de beber muito chá com comida gordurosa, e depois me meto a me mexer demais, dá nisso”, ele resmungou, mas recusou-se a se arrepender. A noite passada havia sido um sonho realizado, e ele pretendia eternizar os momentos guardados na memória com vários desenhos. Era domingo, portanto, ele tinha tempo de sobra para se concentrar em várias folhas de desenho. Os amigos queriam sair por aí, mas ele resolveu ficar no dormitório. Igor o acompanhou, e continuou os estudos sobre o assassino. De todos os sete, ele é o que estava mais interessado no caso depois de ter descoberto tanta coisa interessante.

            Horas mais tarde, quando Pedro já estava no vigésimo desenho, um aviso caiu na caixa de correios deles. Ele pulou do beliche, foi até a porta e investigou o bilhete. “O professor Gunnar… Deve ser aquele lance que ele queria com a gente”, pensou o lobisomem.

– O que é? – Perguntou Igor, sem levantar os olhos do laptop.

– É do professor de educação física. Lembra que ele queria os nossos nomes?

– Sim, também lembro que o Heitor ficou de passar os nomes e que a gente esqueceu de perguntar o que é que ele queria.

– Bem lembrado, Watson – Outra piada com literatura, isso descontraiu o amigo, que respirou fundo e olhou na direção de Pedro – Deixa ver… Aqui diz que amanhã nos sete teremos o dia de folga das aulas para… Uma excursão?

– Que raios…

– Calma, diz que é uma excursão para… Puta que me pariu.

– O que, caramba? Tá me deixando ansioso.

– Os ginásios das ligas esportivas. Ele vai levar a gente na arena esportiva do Crânio Vermelho, caralho!

            Igor deixou o queixo cair, a boca aberta relevando os longos dentes de tubarão. O professor Gunnar queria levar os alunos para ver os times esportivos profissionais de suas raças, e isso era um grande anúncio.

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