Capítulo 9

                  Capítulo 9

         Se eu fosse você, teria medo de me envolver tanto



            Amanhecia. Terça-feira, outro dia comum na delegacia de Howlingtown, distrito central. Roy e Dexter estavam redigindo vários e vários relatórios, recebendo pessoas queixosas, enviando esse ou aquele policial numa patrulha, o padrão comum de um dia de trabalho. Michael e Alejandro tinham saído para comprar rosquinhas recheadas (era quase um ritual os dois fazerem isso, e anotavam os pedidos de todos os colegas antes de saírem). Já John Loyd Watson, ele estava em sua sala separada, afastada das outras, quase sem dormir a 29 horas ininterruptas. Ele digitava metodicamente em seu teclado, as palavras saindo na tela do computador, enquanto ele registrava os últimos acontecimentos.

            Seu gravador de voz estava ao lado, na escrivaninha, repetindo o som de sua voz que, horas antes, ele gravara para poder repassar as informações. Toda vez que ouvia sua voz pelo gravador, John imaginava que ela parecia distorcida e assustadora, contrastando com a calma e disciplina da voz real dele.

            “… e chegou ao meu conhecimento que”, ia repetindo o gravador, “durante as investigações dos assassinatos, houve uma brecha na segurança digital da polícia. O invasor – ou mais precisamente, invasores – roubou informações vitais que podem significar a ruína dos casos, e até mesmo em conflitos de escalas alarmantes para a sociedade. A imprensa marrom, ao que me consta, ainda não ficou sabendo dessa brecha, e posso respirar tranquilamente por causa disso. Entretanto, me espanta que um estudante e seus amigos tenham sido capazes de roubar informações dos computadores da polícia, usando softwares de quebra de senhas, quebra de firewalls, entre vários outros, com a mesma facilidade com que se abre uma porta. Com quê objetivo eles fizeram isso, não faço idéia. Posso supor, de acordo com o que descobri a respeito do usuário e de seu laptop – que eu mesmo invadi algumas horas atrás usando a minha versão dos programas, que ele tem sete usuários. São eles Clímax do Mar, Coração da Montanha, Monte Trovão, Peste, Garras, Arco de Vento e, o que me surpreendeu, um tal de ‘Filho do Lobo’. Em uma pesquisa mais aprofundada, entendi as referências dos nomes, especialmente o último. Ele é ninguém menos que Pedro Fenrirsson, filho do herói de guerra Uther Fenrirsson. Estuda no Instituto Acadêmico Mãe Lua, um local adequado para um intelecto tão curioso. Ele e seus amigos têm uma grade curricular interessante, intrigante, e, para dizer o mínimo, curiosa. As matérias escolhidas parecem coisa do tipo “jogue um dardo no alvo no escuro”, para depois colherem conteúdo e estudos dos mais variados…”

            E assim seguia, John ia batendo rapidamente nas teclas e escrevendo calmamente, enquanto o gravador repetia seus pensamentos. Com uma breve pausa, ele pegou sua caneca de chocolate quente e sorveu um longo trago, respirando fundo o cheiro doce do chocolate. “Sim, isso está melhor…”, ponderou ele, lembrando do péssimo café que lhe serviram numa lanchonete dias atrás. Depois, começou a escrever as fichas de personalidade dos alunos, pois queria descobrir o que eles queriam investigando, clandestinamente, os assassinatos em série. E pelo que John sabia, as novas informações do último ataque já foram “clonada” pelo tal Clímax do Mar, ou Igor. “Nada mais apropriado para um garoto que se torna um tubarão-branco na água”, meditou John, automaticamente.

            “E depois de muito investigar sobre eles, me perguntei se seria sensato avisar o diretor da escola, Tibérius Presas de Espada”, a gravação chegava perto do fim. “Entretanto, me pareceu ilógico fazer tal coisa. Os rapazes em nada atrapalharam as investigações, não danificaram os dados originais, tampouco avisaram o assassino, não é nem de longe a mais remota possibilidade que eles estejam aliados ao assassino. Se querem brincar de super-heróis, então veremos quem pega o assassino primeiro. Se eles chegarem a alguma conclusão, eu saberei. Meu contato na escola me manterá informado, sou grato a essa grande amiga…”

            Uma batia à porta de seu escritório o tirou de seu trabalho.

– Entre, por favor – John disse, em voz alta, enquanto salvava o arquivo e pausava a gravação.

– Sinto muito – Sua secretária era sempre muito tímida, e tinha medo dos olhos de John – Roy está te chamando para o necrotério novamente.

– Certamente, irei agora mesmo.

            Na escola, as aulas passavam normalmente como de costume. Com um único diferencial: os alto-falantes anunciavam que a professora Jenyffer esperava pelos senhores Pedro, Pedro, Heitor, Igor, Samuel, Lincoln e Igor em sua sala. O assunto era de grande urgência. E, uma vez que foram liberados pelos professores das aulas onde se encontravam, os sete foram para a sala da professora de informática.

            Lá, ela estava fuçando em um computador, provavelmente algum trabalho que ela faria questão de transmitir aos alunos. Os sete esperaram, pacientes, enquanto ela teclava, xingava, bufava e dava tapas na mesa, mesclados a “seu filho da puta!”. O que ela poderia estar fazendo na realidade, eles não sabiam.

– Desculpem meninos, não se pausa um jogo on-line – Ela respondeu às perguntas silenciosas deles, enquanto terminava uma partida de um jogo de “moba” – Enfim, já que estão aqui, vou direto ao ponto: o que é que vocês andaram fazendo com sistemas de invasão de informações?

            Pegos de surpresa pela pergunta, eles se entreolharam e ficaram em silêncio, pensando numa resposta justa. A professora Jenny pulou do banquinho (o que, para uma altura de 25 cm, era um ato corajoso) em que se encontrava, e foi andando até o fundo da sala, as marias chiquinhas do cabelo rosa pulando, e ela subiu num mecanismo esquisito. O mecanismo, é claro, era um andador automático que deixava a professora gnomo na altura dos olhos da média dos alunos.

– Não me digam que foi pra conseguir fotos íntimas das professoras? – Ela acusou, brincalhona.

– Que? Jamais, nunca a gente ia fazer uma coisa dessas – Pedro defendeu a si e aos amigos, assustado com a possibilidade.

– Eu sei que sou bonita, mas estou noiva e nada vai me fazer desistir de casar com ele – Ela continuou, ignorando Pedro.

– O que uma coisa tem a ver com a outra…? – Capivara perguntou, confuso.

– De qualquer forma – Continuou a pequena professora –, chegou ao meu conhecimento que vocês andaram fuçando computadores alheios… Mais precisamente, os da polícia.

            Eles gelaram com a afirmação. Era uma afirmação, é claro. Mas era estranho que uma professora tivesse descoberto, mesmo a melhor da escola em informática não teria acesso a informações tão sigilosas. Haviam sido cuidadosos com absolutamente tudo, não deixaram nenhuma ponta solta nas investigações.

– E aí, vão falar de uma vez? – Perguntou a professora, com os olhos azuis piscando de empolgação.

– Tá, tá legal, prof – Pedro se adiantou: se alguém iria levar uma dura, que fosse ele – A gente andou investigando os assassinatos, estamos tentando descobrir quem é o cara, se há uma ligação, um plano maior, esse tipo de coisa.

– Ah… – Ela sorriu, satisfeita – Bancando os heróis? Isso é inusitado. Em todos os meus anos de professora, nunca vi alunos que tivesse um interesse tão… Peculiar.

– Como foi que a senhora ficou sabendo? – Perguntou Capivara.

– Senhorita, por favor – Corrigiu a professora.

– Senhorita… – Capivara repetiu, desanimado.

– Ótimo, assim está melhor – Jenyffer sorriu, mais satisfeita ainda – Acontece que um amigo meu descobriu. Quase surtei de raiva por ele ter descoberto antes de mim. Mas isso não vem ao caso, vou superar ele logo, logo. O que me ocorre agora é que o diretor não será avisado.

– É sério? – Igor perguntou, esperançoso.

– Podes crer, peixão – Ela respondeu, animada – Mas, quero fazer um trato com vocês.

– Lá vem… – Todos resmungaram em uníssono.

– Quero ajudar vocês.

– Não acho que seja uma boa idéia… – Pedro respondeu, cauteloso.

– Ora essa, rapazinho, não é você quem vive dizendo que sua vida é feita de péssimas idéias? – Perguntou a professora, desafiando a ser contrariada.

– Bom, é, é, que seja. Sou eu. O problema é que a gente já tá envolvido na coisa toda, pode ser meio complicado de uma professora se envolver, ainda mais você, tão jovem e cheia de vida, noiva…

– Muito lisonjeiros seus elogios e preocupação, rapaz, mas meu trato é: eu vou ajudar vocês, com informações, recursos, o que estiver ao meu alcance – Eles engasgaram, segurando a risada. O “alcance” de alguém com menos de sessenta centímetros de altura não era grande coisa – Mas, se recusarem, terei de delatá-los ao diretor. Entendam, eu conheço vocês e sua reputação, a escola ama vocês. Mas cometeram crimes, crimes beeeeeeeeeeiiiim barra pesada.

– Puta merda… Eu falei que era má idéia – Lincoln aplicou um tapa na nuca de Pedro.

– Na-na-não, nada de violência – Censurou a professora – Pode ter sido uma má idéia no começo, mas agora é pra valer. Se o que me disseram é verdade, então, tenho orgulho de ajudar pretensos heróis. Então? Temos um acordo? – Ao dizer isso, pularam da plataforma mecanizada da professora sete tentáculos, cada um com quatro dedos, num gesto de “apertar as mãos”.

            Os rapazes se entreolharam, pensaram, e então deram de ombros numa “onda” de resignação, apertando as mãos mecânicas do aparelho de caminhar da professora gnomo.

– Muito sensato, rapazes – Ela aprovou, meneando a cabeça – Agora, por favor, me ponham a par de tudo o que vocês descobriram usando as informações da polícia, toda a teia de intrigas. E sejam rápidos, quero anotar tudo e ver como posso ajudá-los.

            Suspirando, eles começaram a contar, e ficaram assim por quase uma hora.

            No refeitório, Ana e as amigas estavam entre os rapazes, que devoravam grandes garfadas de macarronada com bolas de carne. Pareciam exaustos, e estavam comendo tanto que ficavam todos sujos e lambuzados de molho, feito crianças. Mal respiravam. As amigas de Ana olhavam a cena com assombro, e Ana balançava a cabeça, incrédula. Quando todos os rapazes foram pegar a terceira porção de macarrão, e voltaram, Ana puxou Pedro de lado, e conversou com ele aos sussurros:

– O que é que a professora de informática fez com vocês? Uma orgia?

– Como é que é o negócio? – Ele retrucou, assustado. Infelizmente, tinha uma imaginação fértil demais, e assim que Ana sugeriu uma “orgia” de sete rapazes com uma professora, ainda mais uma gnomo, um arrepio de medo e arrependimento percorreu sua espinha.

– Ela ficou lá, segurando vocês na sala dela por muito tempo – Ana respondeu, sussurrando impaciente.

– É, eu sei, e isso quase me matou – Ele respondeu, sussurrando o máximo que podia – Parece que um colega dela descobriu que a gente tá se metendo na investigação dos assassinatos.

– Puta merda, é sério?

– Sim, afinal, parece que o gajo é da polícia.

– Cacete – Ana engasgou, chamando brevemente a atenção dos outros.

– Agora a professora tá ajudando a gente – Pedro concluiu.

            Agora Ana engasgou de verdade. Precisou de alguns tapas nas costas, e depois uma massagem no local dos tapas, para voltar a respirar normalmente. Ela olhou para o amigo, incrédula.

– Uma professora? Ajudando? Por quê? – Ela sussurrou, irritada.

– Pelo que eu entendi, ela quer se vingar do tal amigo que descobriu a brecha digital antes dela – Pedro respondeu, incerto – Orgulho de gnomo, acho.

– Ela é meio surtada, não acha?

– Meio?

– É, pela altura, meio seria muita coisa ainda…

– Concordo – O lobisomem riu um pouco.

– Mas o que a gente ganha com isso?

– Ela não delata a gente pro diretor, e ninguém vai pra cadeia – incluindo o assassino. Ou seja: a gente ajuda, descobre quem é, salva o orgulho da professora, acaba com o maldito assassino e não vai pra cadeia por roubar informações da polícia.

– Justo – Concluiu Ana.

– Justo pra caramba – Concordou o lobisomem. Voltaram a comer, agora com mais fome ainda, Pedro especialmente. Em menos de trinta minutos, um interrogatório de uma hora e depois outro, de alguns minutos. Isso deixou seus nervos em frangalhos, e só comendo ele sentia que poderia se recuperar do choque de ter seus planos descobertos em tão pouco tempo. Primeiro pela garota mais incrível que ele já conhecera (e por quem nutria, sem conseguir admitir ainda, um amor profundo), e depois um colega na polícia da professora de informática. Estava ficando difícil querer agir com furtividade, pelo visto.

            Mas, agora, não havia volta: Ana estava ajudando bastante também, ela era rápida pra terminar pensamentos que ficavam rodeando uma teoria disso ou daquilo. A professora Jennyfer, então, ela seria um trunfo nas investigações. Apesar do stress e do choque, Pedro sentia que agora tinham chances reais de achar o desgraçado, fosse quem fosse.

            O alto prédio no distrito humano de Howlingtown erguia-se orgulho pelo centro da cidade. O prédio era uma fundação hospitalar e científica, o aclamado “Centro de pesquisas de doenças Future-Gen”, e lá dentro havia os maiores pesquisadores da raça humana, sempre trabalhando em curas para as doenças que, por vezes, eles mesmos criavam enquanto a evolução humana se fez presente na história. A AIDS, como era bem-sabido, foi trazida da Índia por pessoas que tiveram relações sexuais com pessoas que, por sua vez, mantinham relações sexuais com macacos em templos. Isso é apenas um exemplo, é claro.

            No alto do prédio, encontrava-se o escritório do presidente da empresa, Carlton Divanovik, e ele estava com dores de cabeça, pois o seu mais importante financiador ficara reclamando por horas e horas a fio no telefone. Ele redigia algumas anotações no computador, refazendo alguns planos e analisando algumas contas químicas que deveriam ser alteradas, para que o projeto funcionasse perfeitamente. “Novas falhas não serão toleradas”, gritava o financiador ao telefone, oras atrás, “se algo assim ocorrer de novo, eu mando te matar. E ponho alguém no seu lugar. Use bem o novo material que recolhemos, seu babaca!”, e desligava na cara dele.

            Carlton tinha 46 anos, e não sabia como as coisas chegaram a esse ponto: estar a mercê de alguém tão controlador, déspota, tirânico e fanático. “Mas, afinal”, ponderou Carlton, suspirando de insatisfação, “é pelo bem da humanidade…”, e continuou a digitar, fazendo mudanças aqui e ali no diagrama genético que ele elaborara, vinte anos atrás.

            Em outro lugar dos perímetros humanos, duas pessoas conversavam. O Crucificador está sentado numa cadeira de madeira, apodrecida e velha. Um contraste assustador com o resto da sala, que era impecavelmente limpa, refinada, além de muito cara. Ele se sente impaciente com a conversa, respondeu perguntas durante horas, está machucado e não quer mais aquele falatório, precisa do soro de cura.

            O outro, que se identificava como “Oleiro” às vezes, lhe dava sermões com passagens da bíblia, uma coisa longa e repetitiva, que o Crucificador já conhecia de cor. Mas não podia interromper o seu chefe. Ele já cometeu esse erro antes, e sofrera vários castigos, então, precisava de toda a paciência do mundo. Entretanto, sua paciência deixava-o distraído, e, quando se deu conta, o Oleiro estava agora falando diretamente com ele:

– … E eu esperava um desempenho maior de você, quando o enviei para o estúpido ogro – Ele dizia, visivelmente irritado.

– Entendo. Lamento a derrota, mas não acha que um alvo que tenha sobrevivido possa aumentar o “mito” – O Crucificador usou aspas com os dedos, fazendo o Oleiro levantar a sobrancelha direita – de um assassino? Com certeza, vão crer que foi exagero daquele monstro imundo que o assassino tenha fugido, vão achar que aquela arma de laser…

– Chega – Disse o Oleiro com calma, levantando uma mão que tremia numa raiva silenciosa – Não podemos aceitar falhas nesse trabalho. Entendeu?

– Sim, entendi sim – O Crucificador respirou fundo, exasperado.

– É por isso que estarei desligando você das atividades principais.

– Como é…? – Retrucou o Crucificador, surpreso.

– Sim, você será desativado. Mas não se preocupe com si mesmo – E enquanto dizia isso, o Oleiro buscava alguma coisa em uma de suas gavetas – Os dados colhidos com seus desempenhos anteriores serão amplamente aplicados, estudados, aproveitados ao máximo.

– Como pode fazer uma coisa dessas? – O Crucificador levantou-se num salto da cadeira, derrubando-a atrás de si – Eu só falhei uma vez, um único evento isolado! Mandar-me atrás de um ogro antes da hora foi idéia su – A frase foi interrompida antes de terminar-se com a acusação pairando no ar, devido a um enorme buraco vermelho-escuro que apareceu no meio da testa do Crucificador. O Oleiro segurava uma pistola calibre.38, balas de ponta oca, que ele guardava para momentos enfadonhos como este. Afinal, dispensar pessoal por ignorância, incompetência, trabalhos mal feitos, isso era realmente incômodo. Ficar assinando papeladas de demissões eram realmente cansativas, mas assinar atestados de óbito e mandar uma pequena soma para as famílias? Era mais rápido, mais simples, e, afinal, os corpos poderiam ser utilizados em alguma outra atividade.

O Crucificador ainda ficou em pé alguns instantes, antes de desmoronar de encontro ao chão, o buraco em sua testa fumegando, o sangue lentamente escorrendo e descendo pelo buraco e pela boca aberta do corpo. O Oleiro ainda observou atentamente a imagem e atentando aos detalhes: ele gostava de ver os olhos perdendo a cor, a pele tornado-se pálida. Quando cansou-se de seu estranho passatempo, apertou alguns botões em seu aparelho de telefone, e, minutos depois, alguém bateu à porta.

– Entre – Ele chamou, tranquilamente.

Quando a porta se abriu, o visitante não esboçou um único sinal de surpresa por ver a si mesmo, caído, morto, no chão do escritório. Mas era e não era ele, também: já não havia mais a luz azul nos olhos, a pele bem cuidada estava cercada de arranhões, a roupa de protótipo das missões estava destruída. “Uma falha desgraçada”, pensou o Crucificador, olhando seu corpo antecessor estatelado no carpete. O sangue dele misturava-se à cor escarlate do tapete.

– Qual será minha próxima missão? – Ele perguntou, sem olhar para o Oleiro, pois sua atenção estava totalmente presa ao cadáver.

– Bem, teremos de mudar um pouco nossos alvos. Ainda temos vários em mente, mas temos uma demanda enorme por mais dados. Existem algumas escolas que devemos atingir antes, são um ótimo local para conseguir nosso gado genético.

– Entendo.

– A nova roupa será preparada em breve. Seus treinamentos físicos me deram resultados satisfatórios, creio que não falhará.

– Pode ter certeza disso… – Respondeu o Crucificador, baixinho.

– Bem, pode voltar ao seu quarto.

– Certamente.

E já ia saindo, quando, por alguma razão, ele estacou a meio caminho da porta. Olhou de lado para trás, e voltou andando devagar. O Oleiro apenas observava a cena, curioso. O Crucificador ajoelhou-se bem próximo do corpo no chão, e olhou atentamente o rosto: uma versão inferior de si mesmo, que acreditava ser o original. Tolo. Com um sorriso cínico no rosto, o Crucificador abaixou-se até o ouvido do cadáver e sussurrou:

– Ao pecador que falha, o inferno.

            Levantou-se, como se não tivesse feito nada, e saiu, assoviando alguma cantiga que lhe ocorria à memória.

            Na escola, as aulas transcorriam normalmente. A professora de literatura, Alícia Sóldottir (que era irmã da professora de artes), dava uma pequena palestra à sua turma a respeito da poesia medieval, e ditava os temas dos próximos trabalhos. Ana anotava as informações com atenção, e, quando o sinal tocou para avisar que o dia havia-se encerrado, ela suspirou, cansada. Tudo o que acontecera era realmente inusitado, não de todo inesperado. Uma hora ou outra, alguém descobriria o que ela e os amigos de Pedro andavam fazendo. Era óbvio. Ela só não esperava que a professora de informática estivesse disposta a ajudar, em vez de delatá-los a todos. Agora o plano era não deixar que outros professores soubessem desse plano absurdo.

            “Às vezes tenho ganas de estrangular aquele idiota…”, Ana ponderou, pensando no amigo lobisomem. Ele agia muito por impulso na maioria das vezes, como ela constatou durante o tempo em que passaram juntos na escola. Impulsivo, ao que parecia, era um adjetivo que o perseguia, mesmo entre os professores que mais faziam da imagem dele como “favorito” da classe. Apesar disso, como ela constatou, as escolhas impulsivas dele tinham uma lógica, mesmo que caótica e desorganizada. Era quase como um enorme quebra-cabeças, todo desconjuntado, que você só entende a peça completa se olhar de longe, e prestar muita atenção à cadeia de eventos.

            Como por exemplo na vez em que ele a chamou para uma aula de química, antes das eleições do grêmio. O motivo do convite era bizarro: provar que o professor Leatherhead possuía um couro imune a qualquer tipo de corrosivo. E Pedro permaneceu pedindo que o professor de química viesse auxiliar ele e sua colega (Ana se encolhia toda vez que o enorme homem crocodilo se aproximava) a manusear “corretamente” esse ou aquele produto. No final das contas, Ana teve uma estranha surpresa: não apenas a teoria do amigo fora provada (com vários sons de praguejar do professor, que, apesar de se queimar com os produtos químicos, não dava sinais reais de ferimentos na pele grossa), como também fizera uma amostra surpresa num pequeno frasco vermelho, um perfume que surgiu acidentalmente de suas misturas. Cheirava a amêndoas, melancia e pêssego. Ana usava o inesperado presente de vez em quando, e ela notava que Pedro sempre farejava o ar com um sorrisinho orgulhoso nos lábios.

            Enquanto guardava seu material escolar, ficou repassando todas as informações lógicas que ela lembrava do caso do assassino. Teria de anotar tudo num caderno, grudar folhas extras, formando conexões comportamentais, toda uma parafernália. E teria de se enfiar na sala de informática e imprimir vários arquivos de psicologia para estudar com calma as informações. Seria uma longa noite.

– Certo, então, a professora tá dentro – Capivara disse, enquanto jogava um videogame de terceira pessoa que consistia em roubar carros, atropelar prostitutas e plantar bombas plásticas em carros da polícia.

– Sim, pelo visto… O negócio agora é saber se mais algum professor ficou sabendo – Respondeu Lincoln.

– Ué, por que acha que outro professor possa ter descoberto? – Heitor questionou, curioso.

– Estamos falando de Jenyffer “Jenny”, raça gnomo, professora de informática, de 36 anos e que tem um orgulho enorme do que faz – Retrucou o elfo.

– Oh… – Respondeu o homem urso – Acha que ela pode acabar dando com a língua nos dentes?

– Tenho minhas dúvidas – Comentou Igor – Mas é provável. Então, Samuca, olho nela.

– Por que eu? – Respondeu Samuel, indignado com a ordem.

– Você é o nosso rato – Pedro disse, do alto de seu beliche – Pode se disfarçar e perseguir ela quando for necessário, especialmente se você se meter na sala dos professores. Vigiar ela pode ser complicado, e vai deixar ela fula da vida com a gente. “Vocês não confiam em mim, a professora favorita de vocês!” – O lobisomem imitou muito mal a voz da professora e seus maneirismos de fala, gesticulando como se fosse uma mulher com vinte e cinco centímetros de altura.

            Os amigos riram da imitação, e Samuel concordou. Seria uma tarefa quase impossível. Entretanto, isso trouxe a memória de Andrey uma curiosidade.

– Predu, me diz, por que tu não se transformou ontem?

– Como é que é? Tá falando de quê, nego? – Ele perguntou, sem entender.

– Ontem, jegue. A prova esportiva lá, que o professor Gunnar fez pra tu. Você deu uma surra naquela loba, mas não se transformou em lobisomem.

– Gênio, eu me transformei sim. Não viu que eu tinha garras e presas?

– Sim, mas não tinha cara de lobo, nem um casaco de peles enorme.

– Ah, isso, você se refere a forma completa.

– É, porra, por que não se transformou?

– Não sei como.

– Não sabe como o quê? – Perguntou o anão, confuso.

– Não sei me transformar.

– Na forma de lobisomem?

– É.

– Por quê?

– Não sei, só sei que não sei.

– Como???? – Retrucou o anão, agora irritado.

– Calma, calma – Interveio Capivara, se segurando para não jogar almofadas nos dois – Pedro, sério, você não sabe se transformar na sua forma completa? Quando pretendia contar isso?

– Cara, o que isso importa? – Retrucou o lobisomem, irritado – Eu posso usar a forma intermediária, tranquilamente. Posso virar um lobo e sair por aí ganhando afagos das garotas no corredor.

– Importa porque é bizarro que você, de todos os outros lobisomens na escola, depois de todos esses anos, não saiba fazer o que a sua raça sempre fez e faz quase o tempo todo – Comentou Igor, inocentemente.

– Certo, cacete, que seja – Pedro agora estava bem irritado – O que vocês querem que eu faça? Que eu fique fazendo força, segurando a respiração como se fosse peidar e cagar nas calças? Até as veias do meu corpo começarem a estourar e eu sangre até desmaiar? Tenho quase certeza de que um de vocês sabe que existem motivadores emocionais para a transformação.

– Sim – Todos concordaram, contrariados por terem irritado o amigo.

– Ótimo, muito bom. Pelo menos isso vocês sabem – Disse o lobisomem, frustrado – Cacete, eu sei quais sentimentos me dão a possibilidade de me transformar em 25%, e em lobo completo. Ainda tô descobrindo que força me move pro lobo primitivo, mas eu nunca nem sonhei em qual sentimento me daria a forma completa. Já tentei, várias vezes, e fui parar na enfermaria por causa disso. Então, ajudaria muito se vocês não ficassem me amolando por causa disso. Fiquem satisfeitos com o que eu já sou, porra – Desligou o celular, virou-se na cama e silenciou. Não disse absolutamente nada até que sua respiração tornou-se ritmada com o sono.

            Os amigos o deixaram em paz, chateados por terem irritado ele: pelo visto, era um assunto do qual ele não gostava de falar, e acabaram minando a confiança que ele sentia. Arrependidos, voltaram aos seus assuntos sem muito interesse, antes de irem dormir.

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