A Voz do Coração
A Voz do Coração
Por: Juck Olegário
01

Matheus

Minhas mãos estavam suando enquanto entrava no shopping. Pedro, meu melhor amigo tinha me convidado para sair com ele e seus amigos da nova escola. Nova entre aspas, ele estava estudando lá já tinha um ano vinha e vinha me convidando tinha meses para sair com eles. E há meses eu arranjava desculpas. Infelizmente, dessa vez não consegui nenhuma convincente e fui obrigado a ir. Eu não costumava lidar muito bem com gente e me sentia nervoso enquanto subia até a praça de alimentação.

Conheço Pedro desde os doze anos. Estudávamos na mesma escola até ele partir para um colégio de ensino técnico e me largar pra trás. Ele era um pouco rude, mas era um bom amigo, divertido e se preocupava comigo. Mesmo agora, com mil amigos novos de um colégio bem mais interessante do que a nossa escola entediante, ele vinha tentando me incluir. Isso era legal. Eu admirava o esforço dele.

Avistei o Pedro acenando pra mim de uma mesa e respirei fundo outra vez enquanto me encaminhava até onde ele estava com os amigos. Contei seis além dele. Três garotas e três caras. A mesa estava cheia de bandejas, lanches e copos de refrigerante. Pensei em ir direto pra fila do Bob’s, mas antes que pudesse fazer isso, o Pedro veio correndo na minha direção e me puxou para onde estava.

– Relaxa que eu já peguei o seu. Sprite sem canudo, uma porção grande de batata frita e cheddar duplo, certo?

– Ketchup?

– Peguei também. – Ele riu. As luzes faziam seus olhos parecerem cinzentos, nunca soube exatamente de que cor eram os olhos do Pedro, dependendo da iluminação ficavam azuis, verdes ou cinzas. Era estranho, mas eu achava isso bonito.

Pedro tinha bochechas fundas e o rosto comprido, os cabelos loiro-escuros e a pele branca era rosada. Ele era bonito de um jeito... Como posso dizer? Se ele fosse ator de filmes adolescentes, sempre seria escalado para o papel de secundário com cara de idiota, basicamente.

– Bom… essa é a minha galera. – Declarou. – Aquelas ali são a Alexia, a Simone e a Eloá. E aqueles são o Francisco e o Juan.

– Oi. – Acenei sem graça enquanto sentava na ponta da mesa.

A garota que Pedro indicou ser Simone sorriu pra mim. Ela usava aparelho e tinha cabelos escuros lisos, olhos castanhos e uma pele bronzeada, além de um piercing no nariz.

– Oi, fofo. – A outra, Eloá riu me abraçando de lado. Meu nariz coçou com o cheiro do seu perfume. – Pedro fala bastante de você! – Sorriu, ajeitando os óculos no rosto e colocando uma mecha dos cabelos ondulados para trás da orelha.

– Ele fala muito de você também. – Murmurei, sem jeito.

Pedro pigarreou do meu lado parecendo constrangido. Eloá sorriu olhando pra ele e tive a impressão de que talvez eu não devesse ter mencionado isso. Sabia que Pedro estava interessado nela, mas não sabia se ela sabia o quão interessado ele estava, exatamente.

– Ah, e esse é o Rian. – Pedro apontou para um garoto na ponta oposta da mesa sentado perto de uma das garotas, parecendo desconfortável. – Mas, não liga pra ele. Ele é mudo.

– Meu irmão não é mudo, Pedro. – A menina de cabelo cacheado, que acho que se chamava Alexia, interveio, parecendo irritada. Ela tinha uma pele negra não tão escura, num tom como oliva, o cabelo estava preso no alto com um laço.

– Ele fala? – O Pedro arqueou a sobrancelha, pegando um hambúrguer pela metade no prato.

– Não, mas…

– Então!

– Ele é surdo, não mudo!

– É tudo a mesma coisa. – Pedro revirou os olhos. – Sei nem pra que ele tá aqui! Ninguém sabe falar com ele!

– Meus pais não queriam que ele ficasse em casa porquê...

– Foda-se. – Então se virou pra mim. – Mas, e aí, cara? Como tá lá na escola?

Olhei torto pra ele sem entender bem o porquê da grosseria gratuita com a garota e o irmão dela, mas não disse nada.

– As aulas nem voltaram ainda, mas aposto que vai tá igual sempre. – Dei de ombros.

– Esqueci que minhas aulas voltam antes das suas. – Ele deu risada.

–... E aí, a gente vai ver que filme? – Perguntei, sem saber o que mais dizer.

Enquanto todos começavam a falar um por cima do outro, tentando escolher um filme, Rian se encolheu mais no lugar, parecendo desconfortável. Ele tinha uma pele tão escura quanto a da irmã, o cabelo cacheado pintado de roxo, com mechas azuis aqui e ali, como uma arte do universo. Seus olhos eram de um castanho escuro e brilhante. Ele tinha uma expressão perdida no rosto, como se quisesse poder fugir. Eu devo ter encarado, porque ele começou a me olhar, arqueando a sobrancelha e erguendo o queixo quase como se esperasse algum desafio.

– O que você acha, Matheus? Pode ser? – Felizmente, a voz de Pedro me fez desviar o olhar.

– Hã... Pode. – Concordei, embora não fizesse ideia do que ele tinha perguntado.

***

O irmão da Alexia não parecia ansioso para ir ao cinema, mas ninguém pareceu se importar muito com isso. Ele se encolhia e olhava em volta passando a mão pelo cabelo e esfregando os olhos de um jeito que me lembrava uma criança. O cabelo dele era bonito, a cor estava bem viva e chamativa, parecia um doce ou um desenho. Era realmente impossível deixar de olhar e dava muita vontade de mexer. Reparei também em suas unhas, pintadas com um esmalte prata. Ele era realmente muito bonito.

Deixei o Pedro ir à frente com o Juan e a Simone e fui ficando para trás até estar ao lado da Alexia e do Rian. Hesitei, sentindo minha boca ficar seca enquanto pegava meu celular. Abri o bloco de notas e digitei:

“Acha que o filme vai ser legal?” e entreguei o aparelho para o garoto.

Ele arregalou os olhos, assustado enquanto pegava meu celular, parando um instante para ler. Então balançou a cabeça em negação e me devolveu, cruzando os braços e se encolhendo.

– Ele não quer conversar. – A Alexia falou, me olhando de uma forma estranha. – Não gosta quando meu pai o faz sair comigo e com um bando de ouvintes que não sabem Libras. Mas... Valeu por tentar falar com ele. Foi legal.

Forcei um sorriso, mas me senti triste. Eu não sou bom em começar conversas, sei disso e é bem difícil pra mim tomar iniciativa em qualquer assunto. Mas, Rian estava conseguindo parecer ainda mais deslocado com o grupo do que eu, o que me fazia querer poder conversar com ele e fazê-lo se sentir confortável de algum jeito. O fato de ele não querer falar comigo, me deixou triste, embora eu entendesse o porquê dele não querer.

– Deve ser bem chato ficar cercado assim. – Comentei por fim para a Alexia, sem conseguir tirar os olhos de Rian. Reparei que ele estava me observando pelo canto dos olhos, se curioso ou desconfiado, era difícil de dizer.

– Surdo tá acostumado. – Alexia deu de ombros. – Meu irmão só fala comigo, com nossos pais e com os surdos da escola.

– Onde ele estuda?

– Num colégio bilíngue de Libras e Português. – Ela respondeu, ajeitando o laço na cabeça. – Eu avisei o grupinho que meu irmão vinha. Eles podiam pelo menos ter a sensibilidade de escolher um filme com legenda, né? Mas não! Vamos ver um filme dublado idiota que o garoto surdo não vai entender! Sinceramente, às vezes eu não entendo porque sou amiga dessa gente!

– A gente já tinha comprado os ingressos quando você avisou, Alexia! – Juan bufou, se metendo. Ele era alto como um jogador de futebol e magrelo de uma forma quase preocupante. – Além do que, é difícil pra caralho achar sessão legendada!

Alexia revirou os olhos e tocou o braço do irmão antes de começar a fazer alguns sinais.

O garoto discordou com a cabeça, sem descruzar os braços.

Alexia deu um longo suspiro antes de assentir.

E eu... Bom, eu fiquei boiando porque não entendo Libras.

Na verdade, eu nunca nem pensei muito sobre isso. Eu já sabia que algumas escolas fazem ensino híbrido de Libras e Português, mas, tirando a parte da educação, nunca pensei muito sobre como era a situação. Devia ser bem chato ter que ver um filme sem nem uma porcaria de legenda, ou andar com um monte de gente que não faz o mínimo de esforço pra te entender.

Enquanto olhava para o Rian todo encolhido e fofo no canto dele, me senti mal por nunca ter pensado nisso antes.

***

Resolvi tentar de novo quando sai do cinema. Fui mais uma vez pro lado do Rian com o celular aberto no bloco de notas.

“O filme foi legal até. O que achou?” – Digitei e mostrei pra ele.

O garoto me olhou desconfiado antes de pegar o celular e digitar:

“Não sei. Não entendi nada. Não sei ler lábio e não tinha legenda.” – No final, Rian colocou um emoji triste.

Senti meu rosto ficar quente, envergonhado por ter feito uma pergunta tão idiota quando até Alexia tinha se irritado por estarmos indo ver um filme sem legenda com ele.

“Ah, verdade. Foi mal.” – Digitei, sem jeito.

Rian me encarou por um longo instante antes de estender a mão, pedindo meu celular. Cerrei os lábios entregando, sem saber bem o que ele queria.

“Mas o elenco era bonito.”

Dei risada quando li o que ele tinha escrito, pensei um instante em alguma resposta para digitar, mas quando olhei de novo, Rian estava com os braços cruzados, da mesma forma que antes do filme. Tive a impressão que ele não queria mais falar nada e senti meus ombros cederem percebendo que ele provavelmente só tinha respondido por educação.

Guardei meu celular e o observei ir para o lado da irmã.

***

Cheguei em casa exausto, mas feliz por ter passado o dia com o Pedro. Fazia meses que a gente não se via e quando você tinha dificuldade de fazer amigos, cada instante perto dos que tem, era importante. Sei que parece estranho porque ele tem esse jeito todo grosseiro, mas Pedro é, apesar de algumas ignorâncias, uma pessoa legal.

Ele era repetente, mais ou menos um ano e meio mais velho que eu. Era do tipo que se irritava fácil e arranjava briga no colégio. Sinceramente, era o tipo de pessoa de quem eu me escondia normalmente, mas aí a professora me obrigou a fazer uma prova com ele e de algum jeito acabamos virando amigos.

E, de uma forma estranha, resolvi contar pra ele que era gay. Sempre tive pessoas implicando comigo pelo meu jeito, mas o Pedro não implicava. Bom, não muito e mesmo quando implicava, dava para ver que era realmente brincadeira e não maldade. Quando outros implicavam, ele me defendia. Nunca tive necessidade de contar isso pra minha mãe porque ela sempre deixou claro que sabia sem eu dizer uma palavra, então ele foi a primeira pessoa para quem eu realmente falei com todas as letras.

Então, estávamos assistindo Vingadores e, quando ele comentou algo sobre como a Viúva Negra era gostosa, eu respirei fundo e falei que preferia o Thor. Ele apenas deu risada, mas quando percebeu que eu estava tremendo deu pause no filme e se virou pra mim, perguntando:

– Você o acha mais gostoso que ela, mas também acha ela gostosa, ou você acha só ele gostoso? – Acho que essa foi a forma sutil, mas não tão sutil dele de perguntar se eu era gay ou bi.

– Hum... O Capitão América também não é nada mal. – Quando eu falei isso, até a minha voz tremia.

– Eca! O Capitão, cara? Sério? Que mau gosto! – Ele havia revirado os olhos antes de me abraçar. – Relaxa, tá? De boa!

Engoli em seco.

– Sem problema eu ser...

– Cara, de boa. – Ele repetira e por mais idiota que fosse eu comecei a chorar.

O Pedro não disse nada, apenas continuou me abraçando até eu me acalmar e, então, como se nada tivesse acontecido, demos play no filme e voltamos a assistir.

Suspirei, afastando a lembrança reconfortante e me jogando na cama. Peguei meu celular, enviei mensagem para minha mãe avisando que estava em casa. Ela visualizou, mas não respondeu, provavelmente ocupada no trabalho. Ela sempre estava ocupada.

Hesitante, pesquisei: Videoaula de Libras.

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